sexta-feira, 29 de junho de 2012

Ao deus Verme*

Laurence Olivier interpretando Hamlet

[Fragmento do diálogo entre Hamlet e Horácio diante de uma caveira no cemitério. Cena I, Ato V.]


Hamlet

Essa caveira possuía língua, e outrora podia cantar! Como esse pícaro a atira ao solo, qual se fosse a queixada de Caim, que cometeu o primeiro assassínio! Essa pode ter sido a cabeça de um cavilador, que esse asno agora sobrepuja; de alguém que teria gostado de enganar a Deus, não pode?

Horácio

Pode, meu senhor.

Hamlet

Ou de um cortesão, capaz de dizer: "Bom dia, dileto senhor! Como estás, bom senhor?" Este pode ter sido o fidalgo tal, que gabava o cavalo do fidalgo qual, quando tinha a intenção de pedi-lo, não pode?

Horácio

Pode, meu senhor.

Hamlet

Ora, é isso mesmo; e agora pertence à fidalguia Vérmina, desqueixado e golpeado no cocuruto com a pá de um sacristão; eis uma boa mudança: fôssemos hábeis para vê-la! Custou tão pouco a formação desses ossos, que servem apenas para jogar a malha? Só de pensar nisso os meus me doem.

[...]

Hamlet

Eis outra. Não será - quem sabe - a caveira de um causídico? Onde estão agora suas distinções, suas sutilezas, seus processos, seus direitos de posse e subterfúgios? Como é que suporta que esse rude pícaro lhe pespegue cacholetas com uma pá imunda, e não lhe fala num processo por lesões corporais? (Pega a caveira.) Hum! esse indivíduo talvez tenha sido em seu tempo um grande comprador de terras, com seus títulos debitórios e obrigações de solver, com suas ficções legais para transformar em domínio pleno a propriedade vinculada, seus duplos fiadores, seus expedientes para invalidar gravames: esse é o final de tais chicanas, e o resultado de tais simulações, ficar com o solerte crânio cheio de pura sujeira? Não lhe quererão os garantes simples nem duplos garantir as compras que excedem o comprimento e a largura de um contrato em pergaminho denteado? As próprias escrituras de suas terras dificilmente caberão nesta caixa (Bate na caveira.) e o próprio dono não possui mais terra do que cabe nela, não?

Horácio

Nem mais um nada que seja, meu senhor.

...

W.Shakespeare. in. A tragédia de Hamlet: príncipe da Dinamarca. Ed. Abril, 1976. p. 203-5. 

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