quarta-feira, 24 de junho de 2015


Brasília ú Marcel Gautherot

As cidades são um produto do tempo. São os moldes dentro dos quais a existência dos homens se resfria e condensa, dando forma duradoura, por via da arte, a momentos que, de outra forma, findariam com os vivos e não deixariam atrás de si meios de renovação e de participação mais ampla. Na cidade, o tempo torna-se visível: os edifícios, os monumentos, as vias públicas, mais claramente que o testemunho escrito, mais sujeitos ao olhar de muitos homens do que os artefatos dispersos do campo, deixam uma impressão nas mentes até mesmo dos ignorantes ou dos indiferentes. Graças ao fato material da preservação, o tempo desafia o tempo, o tempo choca-se com o tempo; os hábitos e os valores passam além do grupo vivente, assinalando com diferentes estratos de tempo o caráter de qualquer geração. Camada sobre camada, as eras passadas conservam-se na cidade até que a própria vida esteja finalmente ameaçada de sufocamento; neste ponto, num gesto claro de defesa, o homem inventa o museu.
Por força da diversidade de sua estrutura temporal, a cidade furta-se em parte à tirania de um presente único e à monotonia de um futuro que consiste em repetir apenas uma única batida ouvida no passado. Através da sua complexa orquestração de tempo e de espaço, não menos que através de sua divisão do trabalho, a cidade assume o caráter de uma sinfonia: aptidões humanas especializadas, instrumentos especializados, produzem resultados sonoros que, nem em volume nem em qualidade, poderiam ser obtidos de qualquer peça única.
As cidades nascem das necessidades sociais do homem e multiplicam tanto os seus costumes como os seus meios de expressão. Na cidade, forças e influências remotas entremisturam-se com o que é local: os seus conflitos não são menos significativos que as suas harmonias. E aqui, através da concentração dos meios de contato no mercado e no lugar de reuniões, apresentam-se maneiras alternativas de existir: os costumes profundamente arraigados da aldeia deixam de ser coercitivos, as metas ancestrais deixam de bastar integralmente; homens e mulheres estranhos, estranhos interesses e deuses ainda mais estranhos afrouxam os seus laços tradicionais de sangue e de vizinhança. Um navio que passa, uma caravana que se detém na cidade, podem trazer uma tinta nova para a lã, um novo revestimento vítreo para o prato do oleiro, um novo sistema de sinais para comunicações a longa distância ou um pensamento novo para o destino humano.

Lewis Mumford in “A cultura das cidades”. Ed. Itatiaia, 1961, pp. 14-15.


quarta-feira, 17 de junho de 2015


Florbela Espanca, 1894-1930

Fanatismo - Florbela Espanca

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver, 
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa... ”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim! ... ”

ESPANCA, Florbela Sonetos. São Paulo: Bertrand, 2002.

Aqui, numa belíssima interpretação de Raimundo Fagner:

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015





 L'Origine du monde –1866, Museu de Orsay, Paris.
Gustave Courbert, 1819-1877. 

Eu te saúdo, fenda de portentos
A luzir entre dois flancos macios;
Saúdo-te, buraco de amavios,
Que dás ao meu viver contentamento.

Enfim me libertaste dos tormentos
Do alado arqueiro e dos meus desvarios;
Só quatro noites eu te possuí e o
Poder do arqueiro fez-se em mim mais lento.

Pequeno furo, furo arteiro, furo
Tão bem guardado em matagal obscuro,
Que ao mais rebelde domas com presteza:

Todo vero galã, para te honrar,
Devia de joelhos te adorar,
Firme empunhando a sua vela acesa!

Pierre de Ronsard (1524-1585) 
(Trad. José Paulo Paes)



apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme

Paulo Leminski in. Caprichos e Relaxos. Ed. Brasiliense, 1985.
 

Painting - “Juliette” or “The Green Girl” 
— John White Alexander (c. 1897-1898)



domingo, 8 de fevereiro de 2015


Ratto delle sabine, 1574-1580 (dett.)
Jean de Boulogne (1529 – 1608)
Loggia dei Lanzi, Firenze
A Bunda, Que Engraçada

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai

pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito o que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda.

Carlos Drummond de Andrade in. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, pp. 1373-4.


 

sábado, 7 de fevereiro de 2015



CHEGADA DE RAUL SEIXAS AO CASTELO DE AVALON
 





Brilhava a lua cheia sobre o lago congelado de Avalon
Zunia o vento fustigando as garras fractais do arvoredo
Menestréis e neuromantes distraíam os convivas no salão
E na varanda um drúida recitava um cordel de Castañeda.
Era uma noite escura como as grutas de Sabá
e as fogueiras do castelo crepitavam sem parar...
A Távola Redonda celebrava o Ritual do Resplendor.
Dezesseis orientais, numa tela de cinema
começavam a traçar com hexagramas um teorema,
quando um calafrio de terror arrepiou o Rei Artur...
Alguém desconhecido se aproximava do portão
cantando feito um bêbado em dia de inundação
um rock do tipo “wo-bop-pa-baluba wop-bop bem-bum...”
E no meio da neve dos bosques os lobos uivavam:
- Rauuuuuullll...

O mago Merlin empunhou o seu binóculo.
O mago Crowley embainhou o seu punhal.
Os dragões do reino o cercaram. Os vídeo-monitores o focaram.
E ele rodeava a muralha do castelo dançando com a própria sombra
como um menino, ou como um velho;
e as imagens se alternavam nos monitores do salão
num arranjo serial da sua canção...
E ouvindo aquele bolero meio baião e meio blue,
O chinês Lao-Tsé e o judeu Leopold Bloom
discutiam quais as chances de sucesso de um filósofo zulu...
E no meio da neve do bosque os lobos uivavam:
- RauuuuuullllII...

Mas ele não gritava pras janelas, nem tocava no portão
puxava atrás de si, atada a cordas, uma carga de coisas...
E os Templários contemplaram numa tela de alta definição
a carga que o peregrino arrastava, no limite das forças...
A carroça de uns saltimbancos achada no chão de outro planeta;
um astrônomo caldeu manuseando uma luneta;
bailarinas metaleiras seduzindo a virgindade de um Xamã...
Ossadas de elefantes no cemitério dos automóveis;
um velho Dr. Frankenstein rodeado de monstros jovens
e o olho com a calma kamikaze de quem já foi no sertão...
O olho chamejante  de um alquimista tropical
que engoliu a semente do Fruto do Bem e do Mal
com um gole de Santo Daime
na taça do Santo Graal
em jejum...
E no meio da neve do bosque, os lobos uivavam:
- Rauuuulll...


Braulio Tavares in. O Homem Artificial. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, pp. 62-63.


 
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