Brasília, 1958. Foto: Marceu Gautherot/Dedoc
Brasília
chega aos 52 anos, no próximo sábado, 21, malfalada e cansada de guerra. Nem
parece, mas já teve uma era da inocência. A poeta americana Elizabeth Bishop a
visitou em 1958, dois anos antes da inauguração. Bishop morava no Rio de
Janeiro, com sua amada Lota Macedo Soares, e viajou para Brasília numa pequena
comitiva organizada pelo Itamaraty, cujo integrante mais ilustre era o escritor
inglês Aldous Huxley. O pouco conhecido (e, ao que consta a este colunista, não
traduzido) relato de viagem que a poeta escreveu em seguida lembra certos
filmes que tentam reconstruir o mundo antes da criação, com os mares reclamando
seus espaços, continentes em formação e dinossauros. Bishop flagra Brasília na
véspera de si mesma. O equivalente aos dinossauros eram a “confusa e barulhenta
cena” dos caminhões e tratores que, noite e dia, se empenhavam em fazer brotar
do solo as futuras Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios.
A
Brasília de Bishop é calor, suor e poeira – uma poeira vermelha, que se levanta
em nuvens à passagem dos veículos e impregna as roupas e os tapetes do Brasília
Palace Hotel, onde ela ficou hospedada. A poeta se surpreende com a secura e a
desolação do local. Comparado com qualquer outro espaço habitável deste país “fantasticamente
bonito”, escreve, o lugar parece “notavelmente pouco atrativo e pouco
promissor”. Não há “nem montanhas, nem colinas, nem rios, nem árvores”,
tampouco “o sentimento de grandeza, de segurança, de fertilidade, do
pinturesco” ou qualquer outra das qualidades “que se imagina capazes de dar
beleza e caráter a uma cidade”. Mundo em criação que era, Brasília não tinha
ainda o seu lago. As únicas dádivas que a “Mãe Natureza” proporcionou ao lugar,
conclui a poeta, são “o céu e o espaço”.
Havia
apenas dois prédios prontos – o Brasília Palace Hotel e o Palácio da Alvorada.
As colunas do Palácio da Alvorada deslumbraram os visitantes. Huxley
deslocou-se para examiná-las de vários ângulos. Outros membros da comitiva as
tocaram e fotografaram à exaustão. Bishop as descreve com imagens de poeta: “Se
alguém imagina uma fileira de enormes pipas brancas, postas de cabeça para
baixo, e então agarradas por mãos gigantes e apertadas em todos os seus quatro
lados, até que sejam elegantemente atenuados, pode ter uma ideia delas
razoavelmente acurada”. Já o interior do palácio não lhes agradou. Bishop
critica a decoração e a falta de conforto. Alguém lhes conta que o secretário
de Estado Foster Dulles, em recente visita, quase caíra da escada sem corrimão
que conduz ao andar superior. Huxley já experimentara os perigos da notória
ojeriza de Oscar Niemeyer pelos corrimões. Horas antes, escorregara na escada
do hotel, e comentará que “é uma vergonha abandonar tão útil invenção” quanto o
corrimão, conhecida há milhares de anos.
A
comitiva foi conhecer a “Cidade Livre”, a improvisada cidade de madeira onde
verdadeiramente transcorria a ação – ali moravam as pessoas que trabalhavam na
construção da cidade, e ali se estabeleceram, para servi-las, os mercados, os
bares, as farmácias, as lojas. Os homens andavam de jeans, botas altas e
chapéus de aba larga. O Brasil, onde, segundo observa Bishop, raras são as
construções de madeira, surpreendia-se com o cenário de faroeste, mostrado nas
fotos das revistas. Para a poeta, tratava-se da “velha e familiar cidade de
fronteira da Metro-Goldwyn-Mayer”. A comitiva foi informada de que, ao ser
criada, no ano anterior, a Cidade Livre tinha 400 habitantes; agora tinha 45
000. Possuía até cinema, e personagens improváveis. A comitiva conheceu uma
delas – uma condessa polonesa, ninguém menos do que isso, jovem e bonita,
refugiada de seu país e dona de um inglês impecável.
A
condessa Tarnowska lhes serviu de cicerone e anfitriã na Cidade Livre. Ela era,
justamente, a dona do cinema local. Disse que “amava” viver ali. E contou-lhes
uma história que ocorrera em seu cinema, pouco tempo antes, quando estava em
cartaz o filme E Deus Criou a Mulher, com Brigitte Bardot. A projeção caminhava
normalmente, até que, na mais esperada cena, no momento mesmo em que a Bardot
desfazia o primeiro botão da roupa, parava. As luzes então se acendiam e o
projetista avisava: “Queiram as senhoras e senhoritas, por favor, deixar a
sala”. As mulheres saíam e aglomeravam-se lá fora, na rua de terra, sem
calçada. A projeção continuava só para os homens. Terminada a cena de nudez,
parava de novo, e as senhoras e senhoritas eram avisadas de que estavam
liberadas para voltar. Pudor era o que não faltava, na Brasília daquele tempo.
Roberto
Pompeu de Toledo. in. Veja. ano 45, n. 16, 18 de abr. 2012, p.166.