sábado, 28 de abril de 2012

Safo e o homoerotismo feminino*

Safo e Erina no Jardim de Mitilena, Simeon Salomon
Londres, Tate Gallery

O "amor grego", com seu arquivo de maravilhosos escritos sobre o desejo e seu repertório de belas imagens de corpos masculinos do mundo clássico, assegurou uma fonte privilegiada de ideias com as quais o Ocidente pudesse conceber o desejo masculino e a masculinidade em geral. Em comparação, a história do desejo feminino é muito menos articulada.

A história do amor entre mulheres demonstra como qualquer noção de simetria entre o desejo masculino e o feminino seria altamente enganosa. Não há equivalentes às instituições do amor grego, que são básicas para o desejo masculino. Os homens têm o ginásio, o simpósio e outros espaços públicos da cidade para, sob o olhar cuidadoso da sociedade que tanto encoraja quanto policia o comportamento erótico, praticar um elaborado ritual de corte; as mulheres não possuem esses tipos de arenas. Escritores do sexo masculino que idealizam o amor por meninos descrevem o desejo entre mulheres como horrendo, imoral, contrário à natureza e simplesmente nojento. Mesmo quando o artista do século II Luciano escreve um diálogo ficcional no qual uma cortesã chamada Lena revela que foi seduzida por uma rica mulher, a personagem se envergonha do ato propriamente dito e se atrapalha com ele. Embora o ato seja descrito para o leitor de maneira provocante, o vocabulário utilizado carrega a ameaça constante de revelar a aversão e a lubricidade subjacentes. Existe outra razão pela qual a "homossexualidade" como um termo que vale para os dois gêneros não ter utilidade para a Atenas clássica. O homoerotismo feminino permaneceu uma prática não nomeada por todo o mundo clássico - embora muitas vezes descrito de maneira insultante -, sem nenhum status social exceto aquele conferido a uma perversão ultrajante e reprimida.

Na verdade, é impossível encontrar na cidade clássica, qualquer exemplo de uma mulher que desejasse a outra sexualmente. A ideia era suficientemente conhecida, mas os poucos escritores gregos - todos do sexo masculino - que chegam a mencioná-la consideram-na monstruosa. Em nossos registros históricos sobre Atenas clássica, com tantos casos de homens que amavam meninos, não há nenhum exemplo efetivo de uma mulher real que amasse mulheres. Podemos apenas imaginar um mundo escondido do desejo feminino.

Contudo, de uma época anterior à cidade clássica e de uma ilha no mar Egeu, dessa história de outra forma silenciada, emerge, sim, uma figura única, um ícone incomparável na obsessão da cultura moderna pela Grécia clássica para entender o desejo. Essa é Safo, e é ela quem domina todos os nossos conceitos sobre o desejo feminino clássico. Alguns de seus poemas imortalizam seu desejo por belas meninas. Se seguirmos a atração de Safo, descobriremos muito mais que a santa padroeira das mulheres que amam mulheres.

Apesar de não sabermos quase nada sobre Safo - ou talvez por isso mesmo -, ela se tornou um ícone para a reflexão sobre a sexualidade feita através do prisma grego. Quando juntamos tudo o que com certeza sabemos sobre ela, mal somos capazes de construir uma narrativa biográfica. Ela viveu por volta do século VI a.C. e escreveu poesias de amor na ilha de Lesbos, algumas das quais foram escritas para mulheres. Tudo o mais que passa por biografia é inventado por estudiosos antigos ou modernos com base em sua poesia, ou, já que existem apenas alguns fragmentos e uns poucos poemas que ainda podem ser lidos, com base em projeções imaginativas. 

As histórias vêm em todas as formas e tamanhos. Ela se apaixonou por um homem chamado Fáon e se atirou de um despenhadeiro em um desespero suicida; foi professora de um grupo de meninas a quem ensinou; ela era baixa, de pele escura e feia; teve uma filha chamada Cleide; teve uma amante chamada Cleide; foi uma poetisa que desempenhou todos os papéis de um poeta da época, compondo canções para casamento, para festas e bebedeiras, pequenas sátiras e letras insensíveis; foi uma poetisa que criou uma nova estética feminina, removida das esferas masculinas da guerra e da violência, em um novo e exuberante espaço de sensualidade e sensibilidade, que celebrava relações pessoais entre mulheres. Geralmente leitores clássicos consideravam Safo o maior dos escritores de poemas líricos, a décima musa, e ela foi admirada com paixão por toda Antiguidade. Sua obra, qualquer que seja a dinâmica de gêneros de suas histórias de amor, foi cantada por homens em simpósios durante séculos, embora seja difícil imaginar exatamente como se sentia um homem daquela sociedade patriarcal ao recitar seus poemas.

Mais que qualquer outra figura, Safo mostra como a sexualidade moderna utiliza a Grécia como espelho no qual se encontrar. Ela constitui um modelo de como o Ocidente utiliza a Grécia antiga para pensar sobre o desejo. Uma vez que tão pouco é de fato conhecido sobre a Safo real, ela se torna uma tela perfeita para a projeção de uma imagem do desejo.


Simon Godhill. in. Amor, Sexo & Tragédia. Ed. Jorge Zahar, 2007, pp. 72-74.


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Anunciação*


Cena do Filme O dia em que a terra parou (The Day the Earth Stood Still) - 1951.

Na bruma leve das paixões
Que vêm de dentro
Tu vens chegando
Prá brincar no meu quintal
No teu cavalo
Peito nu, cabelo ao vento
E o sol quarando
Nossas roupas no varal...

Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais...

A voz do anjo
Sussurrou no meu ouvido
Eu não duvido
Já escuto os teus sinais
Que tu virias
Numa manhã de domingo
Eu te anuncio
Nos sinos das catedrais...

Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais...

Alceu Valença. in. Anjo Avesso. 1983. (Ariola)


Afrodite Calipígia*

Afrodite Calipígia, Museu Nacional, Nápoles 

[...] A estátua conhecida como "Afrodite calipígia" oferece uma dinâmica de exposição distinta. Ela está de costas para o observador, levantando a toga para mostrar as nádegas despidas. A deusa olha por cima do ombro direito para espiar, ela mesma, o próprio corpo. "Afrodite calipígia" significa "Afrodite de bela bunda". A estátua dirige seus próprios olhos, e o olhar do observador, para o ponto cuidadosamente exposto e realçado. Ela precisa da toga levantada para enquadrar o que precisa ser visto. A obra dirige os olhares para a parte erotizada do corpo da deusa. As deusas Atenas e Ártemis, por outro lado, nunca são representadas nuas, e os mitos nos advertem que homens como Actaeon, que as viu no banho, mesmo por acidente, foram brutalmente dilacerados. Contemplar Afrodite causa desejo no observador - porém é ainda mais arriscado ver outras deusas despidas.

Simon Goldhill. in. Amor, Sexo & Tragédia. Ed. Jorge Zahar, 2007, pp. 42-43.


quinta-feira, 26 de abril de 2012

Fundação da publicidade*


O médico russo Ivan Pavlov descobriu os reflexos condicionados.

Ele chamou de aprendizagem a esse processo de estímulos e respostas:

a campainha toca, o cão recebe comida, o cão segrega saliva;

horas depois, a campainha toca, o cão recebe comida, o cão segrega saliva;

a operação se repete, hora após hora, dia após dia, até que a campainha toca, o cão não recebe comida, mas segrega saliva.

Horas depois, dias depois, o cão continua segregando saliva, quando a campainha toca, diante do prato vazio.


Eduardo Galeano. in. Espelhos. Ed. L&PM, 2009, p. 239.


Os 100 anos do “Eu”*



Em 1912, Augusto dos Anjos, um modesto professor de escolas públicas, pediu uma grana emprestada ao irmão, juntou com algumas economias que vinha guardando, e publicou seu único livro de poemas: “Eu”. Esse título minúsculo e gigantesco parecia o anúncio de um enorme narcisismo, mas era o contrário disso.  O poeta fala de si, mas sem nada dos suspiros afetivos e dos arroubos emocionais dos sonetos de seus contemporâneos.  A impressão que se tem é que o  Eu do título é o Universo, e o poeta que assina o livro não passa de um simples amanuense escolhido para ser seu porta-voz. A vastidão cósmica de suas imagens lembra Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick.

Augusto dos Anjos é o primeiro poeta de ficção científica do Brasil, e o maior, até hoje.  Seus poemas são tentativas de visualização de milhões de anos de história das espécies vivas, num Cosmos de forças obscuras ao qual ele, num esforço lírico compreensível, procura muitas vezes atribuir uma consciência semelhante à consciência humana. Leituras filosóficas e científicas se misturam nos seus versos com uma ambientação urbana repleta de mendigos, prostitutas, cães vadios, tuberculosos, bêbados, urubus.  Entre a nobreza decadente dos engenhos da Zona da Mata e o panorama sombrio e insalubre das cidades que conheceu (João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro) sua poesia mistura influências contraditórias e até hoje únicas em nossa literatura.  É como ter Olaf Stapledon, o autor de Star Maker,caminhando pelos becos por onde caminharam Lima Barreto e João Antonio.

Augusto não foi imune ao lirismo do seu tempo, aos modismos do seu tempo.  Basta ver suas Poesias Completas para perceber que ele podia ser tão piegas quanto qualquer outro poeta daquele momento. Era capaz do mesmo sentimentalismo açucarado, do mesmo romantismo da-boca-pra-fora, composto de clichês verbais e de sinetas pavlovianas destinadas a emocionar os leitores já familiarizados com elas.  Mas ao recolher uma pequena parte de sua produção para compor o Eu, o poeta acertou em praticamente tudo.  Seu senso crítico lhe indicou com clareza em que pontos era diferente dos seus contemporâneos – e superior a eles. Cada poema ali contido é um paralelepípedo de novidade numa balança crítica que só servia para comparar pozinhos de um lirismo homeopático. O único “defeito” do Eu é não poder ter incluído poemas importantes que Augusto escreveu entre 1912 (ano em que o livro saiu) e 1914, ano de sua morte. (Acho que eu teria incluído alguns poemas pré-1912 também, mas é mero detalhe.) O que impressiona no único livro de Augusto não é o quanto foi novo quando surgiu, é o quanto ainda é novo cem anos depois.


Braulio Tavares. in. Mundo Fantasmo

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A leitura do mundo*



“Não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.”


Paulo Freire


Saudade tem idade, sim*



Dizem que  a gente começa a envelhecer quando objetos e hábitos do passado passam a frequentar nossa imaginação. Não concordo, pois apesar de me sentir jovem, sinto cada vez mais saudade de velhos e bons tempos quando tudo, ou quase tudo, era muito mais fácil, por incrível que pareça!
Se não vejamos. Não faz tanto tempo assim, telefone era pra gente falar com alguém lá do outro lado da linha. Com  a chegada da modernidade a uma velocidade quase tão poderosa como a do som,  fomos obrigados a  aprender que falar ao telefone é apenas um detalhe, porque, na verdade, ele virou uma fonte de informação e entretenimento, a tal ponto que até colocamos uma ligação em “hold’, ou em compasso de espera, enquanto fazemos  uma consulta no Google.
E o que dizer das câmeras fotográficas? Como era romântico a gente revelar as fotos  e poder tocar em tantas recordações, manuseando as imagens num papel brilhante e colorido?  Depois do clique, tínhamos que esperar alguns dias pela revelação das fotos com uma enorme ansiedade. E quando as pegávamos, quanta emoção em ver registrados no papel o passeio ou a festinha de aniversário? Dali para o álbum, as fotos ficavam  protegidas por folhas de plástico transparente. Ali elas estavam sempre a mão, podíamos revê-las ou compartilhá-las com outros amigos e parentes.
Agora, mal ligamos para as fotos que tiramos. A facilidade é tanta que apenas clicamos no “play”  da própria  máquina para checar se a luz ficou boa ou se saímos bem na foto.  E pronto. Dali elas vão para uma pasta no arquivo de fotos do computador e ali ficam para sempre ou até que, não as tendo arquivado nas "nuvens" ou em dispositivo externo, as perdemos para sempre no primeiro colapso do computador.
E o que dizer dos textos, antes batidos nas "pretinhas" das Olivetti e Remington, com o carrinho pesado e a alavanca para mudar de linha?  Acho até que elas nos inspiravam para contar as histórias com mais criatividade e emoção.  Agora, já não fazemos força. As teclas obedecem ao mais leve toque de nossos dedos. Depois o computador faz o resto, arquiva tudo e a gente só tem que lembrar em que pasta foram armazenados nossos sonhos e pensamentos.
Evidentemente, essas são apenas elocubrações sobre o que tínhamos antes e o que estamos presenciando nesses tempos de  verdadeira revolução tecnológica, tão rápida que muitas vezes temos dificuldade em  assimilá-la.
Não sei se acontece com todo mundo, mas vejo-me,  muitas vezes, meio perplexa e até um pouco renitente diante de tantas mudanças. Mal a gente consegue aprender a lidar com determinada engenhoca,  moderna e sofisticada, lá vem outra para tornar obsoleta ou, no mínimo, ultrapassada a de apenas um ano atrás. 
Claro que todos celebramos a modernidade. O mundo e a humanidade têm que andar para frente. O que vale nem é mais tanto o presente, e sim o futuro imediato, a transformação enlouquecedora das coisas e até mesmo dos homens. Ao lado da modernidade da máquina, existe também a da humanidade, a jovialização corre lado a lado com tudo disso e  o jeito é acompanhar os novos tempos nem que seja só pelas ondas da web.
Mas olha, se você pensa como eu, se sente falta  daqueles objetos nem tão antigos assim, mas que eram mais verdadeiros e  estimulavam a nossa imaginação, dá só uma olhada em alguns deles aqui embaixo, para matar a saudade que, ao contrário do que dizem, tem idade sim!



Leila Cordeiro. in. Direto da Redação

terça-feira, 24 de abril de 2012

As perguntas da memória e da saudade*



A vida segue. Quantas vezes afirmamos que o tempo passa e somos pouco espertos com relação as suas tramas? Não há desistências gerais, pois o mundo está sempre recebendo pessoas. Há controles, desânimos, cuidados com as taxas de natalidade. Não se pode ficar preso às andanças do desejo, sem arriscar outros caminhos. É preciso criar diálogos para nos aproximarmos dos mistérios, decifrarmos respostas cruciais que nos atormentam. É difícil. Existem vazios, falta de fôlegos, atmosferas turbulentas, temores de frustração. Somos oceanos instáveis e profundos. Sabemos navegar o necessário e, às vezes, vacilamos no meio das tempestades. Não nos livramos dos momentos de saudades e arrependimentos.

O jogo dos sentimentos não se enquadra em cartografias consolidadas. Cabe questionar o que se move, se há espaço para acreditar em tipologias e descansar a cabeça no travesseiro perdido no armário antigo. Impedir que as perguntas surgissem é impossível. Por vezes, nos distraímos e nos colocamos fora de qualquer combate. Ninguém está longe das ilusões, cultivando fortalezas inexpugnáveis. A memória pede idas e vindas, é impaciente, lança-se com suas narrativas surpreendentes acudindo os esquecidos e os apáticos. Nossa gramática é pequena para conseguir contar as aventuras das saídas e entradas nos labirintos.

As tragédias não se compõem, apenas, na literatura. Elas são encenadas no cotidiano, vestem-se de incompletudes, ressuscitam seus mitos e chamam seus espectadores anônimos. Inconformismos e transcendências possuem disfarces nunca definitivos. Se o desenho da vida não é único, a repetição é uma ameaça à dor. Tudo tem uma relatividade que nos arrasta para confundir décadas com séculos. Dizer que a vida é um sopro é ser devoto da eternidade. Portanto, o reino da suspeita não se afasta da história, as fragilidades não permitem que os sentidos arrebatem o perfume da onipotência.

A teimosia é a atriz principal das cenas de resistência. Como se entregar ao ritmo de qualquer destino se o mundo circula estimulado pela travessia dos conflitos? O esclarecimento é, sempre, incompleto, mas ajudar a configurar visões e a adormecer enfraquecendo os pesadelos. Colhemos antecipações. Elas não são profecias. As pessoas partem e nós partimos. Nada de testemunhar realidades sem tocar em magias e pretensões. A confusão se faz, mas não se fixa. A pausa ameniza os sinais ofuscantes das amarguras, transfere o tempo do calendário para o tempo da fuga. A redenção absoluta mora nas utopias políticas e religiosas.

Os desgovernos do mundo não merecem celebrações. Querer que o definitivo ocupe lugares é nos afundarmos na mentira mais perigosa. A eternidade namorou uma estrela que pulava entre as escuridões para não perder seu encanto. Talvez seja uma brincadeira de divindades assustadas com o vadio do medo. Apenas, as aparências cercam nossas agonias. No meio das incertezas, as perguntas não se calam com as respostas. A saudade é o sentimento maior que atravessa o coração, porque o deslocamento das perdas não cessa. Não adianta quantificar. A medida da falta é extravagante, como a lágrima irreverente do corpo sem respiração.


Antonio Rezende. in. Astúcias de Ulisses


O Oleiro e o Poeta*


O caso da rua El-Kichani parecia realmente muito sério. Uma rixa inesperada surgira entre o jovem Fauzi, o poeta, e o oleiro Nagib. Os curiosos amontoavam-se junto à casa do oleiro. Cruzavam-se as interrogações: - “Que foi? Como foi? Brigaram?”. Um guarda, para evitar que o tumulto se agravasse, resolveu levar os dois litigantes à presença do cádi, isto é, do juiz.
Esse juiz, homem íntegro e bondoso, interrogou em primeiro lugar o oleiro, que parecia o mais exaltado:
- Mas afinal, meu amigo? De que se trata? Parece-me que foste agredido. É verdade?
- Sim, senhor juiz - confirmou o oleiro desabridamente. – Fui agredido em minha própria casa por esse poeta. Estava, como de costume, trabalhado em minha oficina, preparando dois novos vasos coloridos que pretendia vender ao príncipe Rauzi, quando ouvi um ruído surdo e a seguir um baque. Percebi logo de que se tratava. O poeta Fauzi, que cruzava naquela ocasião a rua Bardauni, havia atirado violentamente uma pedra e partira um dos vasos - um vaso já pronto, que estava a secar junto à porta! Ora, senhor juiz, isso é um absurdo, um crime! Estou no meu direito. Exijo uma indenização!
Voltou-se o juiz para o poeta e interpelou-o serenamente:
- Que tens a alegar, meu amigo? Como justificas o teu estranho proceder?
- Senhor cádi - respondeu o jovem, o caso é muito simples e quero crer que a razão milita a meu favor. Há três dias passados voltava eu da mesquita quando, ao cruzar a rua Bardauni, em que mora o oleiro Nagib, percebi que ele declamava um de meus poemas. Notei com tristeza que os versos estavam errados. O oleiro mutilava, isto é, quebrava os meus versos. Aproximei-me dele e delicadamente ensinei-lhe a forma certa, que ele repetiu sem grande dificuldade. No dia seguinte, ao passar novamente pelo mesmo lugar, ouvi ainda o oleiro a repetir os mesmos versos deturpados, isto é, com a forma erradíssima. Cheio de paciência, tornei a ensinar-lhe a forma correta, e pedi-lhe que não tornasse a mutilar os meus poemas. Hoje, finalmente, regressava eu do trabalho quando, ao passar pela rua Bardauni, percebi que o oleiro declamava a minha linda poesia estropiando as rimas e mutilando vergonhosamente os versos. Não me contive. Apanhei de uma pedra e parti com ela um de seus vasos. Como vê, senhor juiz, o meu procedimento não passou, afinal, da represália de um poeta, que se sente ferido em sua sensibilidade artística por um indivíduo grosseiro.
Ao ouvir as alegações do poeta, o juiz, dirigindo-se ao oleiro, declarou:
- Que esse caso, Nagib, sirva de lição para o futuro! Procura respeitar as obras alheias a fim de que os outros artistas respeitem as tuas obras. Se te julgavas com o direito de quebrar o verso do poeta achou-se também o poeta com o direito de quebrar o teu vaso. Lembra-te de que o poeta é o oleiro da frase, ao passo que o bom oleiro é o poeta da cerâmica!
E a sentença do ilustre cádi foi a seguinte:
- Determino, pois, que o oleiro Nagib fabrique um novo vaso de linhas perfeitas e cores harmoniosas, no qual o poeta Fauzi escreverá um de seus lindos versos. Esse vaso será vendido em leilão e a importância da venda repartida igualmente entre ambos.
A notícia do caso espalhou-se pela cidade. O oleiro vendeu muitos vasos com versos do poeta Fauzi e ambos tornaram-se prósperos e ricos. Mas continuaram sempre bons amigos. O oleiro mostrava-se arrebatado ao ouvir os versos do poeta. Encantava-se o poeta com os vasos admiráveis do oleiro.
Uassalã!


Malba Tahan. in. Os melhores Contos. Ed. Best-Seller, 2006, pp. 93-96.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

O mal-estar na cultura*


Ao longo das últimas gerações, os homens fizeram progressos extraordinários nas ciências naturais e nas suas aplicações técnicas, consolidando o domínio da natureza de uma maneira impensável no passado. Os detalhes desses progressos são de conhecimento geral, e não é necessário enumerá-los. Os seres humanos têm orgulho dessas conquistas e têm o direito a tanto. Mas eles acreditam ter percebido que essa recém-adquirida disposição sobre o espaço e o tempo, essa sujeição das forças naturais, a realização de um anseio milenar, não eleva o grau de satisfação prazerosa que esperam da vida, que essa disposição sobre o espaço e o tempo não os tornou, segundo suas impressões, mais felizes. Dessa constatação, deveríamos nos contentar em extrair a conclusão de que o poder sobre a natureza não é a única condição da felicidade humana, assim como não é a única meta dos esforços culturais, sem derivar disso que os progressos técnicos não possuem valor para a economia de nossa felicidade.

Sigmund Freud. in. O mal-estar na cultura. Ed. L&PM, 2010, pp. 83-84.


sábado, 21 de abril de 2012

"Besta é Tu" - Novos Baianos*


Novos Baianos

Novos Baianos - Influenciados pela contracultura e pela Tropicália, o grupo foi uma das maiores referências musicais brasileiras entre 1969 e 1979. Com uma grande mistura de ritmos e estilos o grupo conseguiu destacar-se como a síntese da musicalidade brasileira naquele contexto. Em 2007, o disco Acabou Chorare (1972) foi eleito pela revista Rolling Stone como o melhor disco da história da música popular brasileira. Confira abaixo um dos maiores sucessos desse grupo que marcou a história da MPB.




Música: "Besta é Tu" 
Compositores: Luiz Galvão/Moraes Moreira / Pepeu Gomes
Disco: Acabou Chorare, Som Livre, 1972.

A era da inocência*

Brasília, 1958. Foto: Marceu Gautherot/Dedoc

Brasília chega aos 52 anos, no próximo sábado, 21, malfalada e cansada de guerra. Nem parece, mas já teve uma era da inocência. A poeta americana Elizabeth Bishop a visitou em 1958, dois anos antes da inauguração. Bishop morava no Rio de Janeiro, com sua amada Lota Macedo Soares, e viajou para Brasília numa pequena comitiva organizada pelo Itamaraty, cujo integrante mais ilustre era o escritor inglês Aldous Huxley. O pouco conhecido (e, ao que consta a este colunista, não traduzido) relato de viagem que a poeta escreveu em seguida lembra certos filmes que tentam reconstruir o mundo antes da criação, com os mares reclamando seus espaços, continentes em formação e dinossauros. Bishop flagra Brasília na véspera de si mesma. O equivalente aos dinossauros eram a “confusa e barulhenta cena” dos caminhões e tratores que, noite e dia, se empenhavam em fazer brotar do solo as futuras Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios.

A Brasília de Bishop é calor, suor e poeira – uma poeira vermelha, que se levanta em nuvens à passagem dos veículos e impregna as roupas e os tapetes do Brasília Palace Hotel, onde ela ficou hospedada. A poeta se surpreende com a secura e a desolação do local. Comparado com qualquer outro espaço habitável deste país “fantasticamente bonito”, escreve, o lugar parece “notavelmente pouco atrativo e pouco promissor”. Não há “nem montanhas, nem colinas, nem rios, nem árvores”, tampouco “o sentimento de grandeza, de segurança, de fertilidade, do pinturesco” ou qualquer outra das qualidades “que se imagina capazes de dar beleza e caráter a uma cidade”. Mundo em criação que era, Brasília não tinha ainda o seu lago. As únicas dádivas que a “Mãe Natureza” proporcionou ao lugar, conclui a poeta, são “o céu e o espaço”.

Havia apenas dois prédios prontos – o Brasília Palace Hotel e o Palácio da Alvorada. As colunas do Palácio da Alvorada deslumbraram os visitantes. Huxley deslocou-se para examiná-las de vários ângulos. Outros membros da comitiva as tocaram e fotografaram à exaustão. Bishop as descreve com imagens de poeta: “Se alguém imagina uma fileira de enormes pipas brancas, postas de cabeça para baixo, e então agarradas por mãos gigantes e apertadas em todos os seus quatro lados, até que sejam elegantemente atenuados, pode ter uma ideia delas razoavelmente acurada”. Já o interior do palácio não lhes agradou. Bishop critica a decoração e a falta de conforto. Alguém lhes conta que o secretário de Estado Foster Dulles, em recente visita, quase caíra da escada sem corrimão que conduz ao andar superior. Huxley já experimentara os perigos da notória ojeriza de Oscar Niemeyer pelos corrimões. Horas antes, escorregara na escada do hotel, e comentará que “é uma vergonha abandonar tão útil invenção” quanto o corrimão, conhecida há milhares de anos.

A comitiva foi conhecer a “Cidade Livre”, a improvisada cidade de madeira onde verdadeiramente transcorria a ação – ali moravam as pessoas que trabalhavam na construção da cidade, e ali se estabeleceram, para servi-las, os mercados, os bares, as farmácias, as lojas. Os homens andavam de jeans, botas altas e chapéus de aba larga. O Brasil, onde, segundo observa Bishop, raras são as construções de madeira, surpreendia-se com o cenário de faroeste, mostrado nas fotos das revistas. Para a poeta, tratava-se da “velha e familiar cidade de fronteira da Metro-Goldwyn-Mayer”. A comitiva foi informada de que, ao ser criada, no ano anterior, a Cidade Livre tinha 400 habitantes; agora tinha 45 000. Possuía até cinema, e personagens improváveis. A comitiva conheceu uma delas – uma condessa polonesa, ninguém menos do que isso, jovem e bonita, refugiada de seu país e dona de um inglês impecável.

A condessa Tarnowska lhes serviu de cicerone e anfitriã na Cidade Livre. Ela era, justamente, a dona do cinema local. Disse que “amava” viver ali. E contou-lhes uma história que ocorrera em seu cinema, pouco tempo antes, quando estava em cartaz o filme E Deus Criou a Mulher, com Brigitte Bardot. A projeção caminhava normalmente, até que, na mais esperada cena, no momento mesmo em que a Bardot desfazia o primeiro botão da roupa, parava. As luzes então se acendiam e o projetista avisava: “Queiram as senhoras e senhoritas, por favor, deixar a sala”. As mulheres saíam e aglomeravam-se lá fora, na rua de terra, sem calçada. A projeção continuava só para os homens. Terminada a cena de nudez, parava de novo, e as senhoras e senhoritas eram avisadas de que estavam liberadas para voltar. Pudor era o que não faltava, na Brasília daquele tempo.


Roberto Pompeu de Toledo. in. Veja. ano 45, n. 16, 18 de abr. 2012, p.166.


sexta-feira, 20 de abril de 2012

Como ensinar literatura na escola*



Em minhas – na falta de melhor nome – aulas, a primeira coisa que aprendi foi não falar de literatura como um produto que sai dos livros. Deixe-se isso para os professores de cursinhos, que pensam ensinar enquanto põem o estudante a decorar nomes, datas, movimentos e obras principais. Isso não é literatura, não serve à literatura, nem serve ao conhecimento. Serve a um sistema estéril e formador de burros. Não se deve jamais falar de literatura com esse nome cheio de pompa e reverência, A Literatura. Fale-se da vida, dos problemas vividos por todos nós, velhos, jovens, crianças, homens, mulheres, animais e gente.
Só se deve falar sobre aquilo que apaixona a gente. Se o professor não descobriu a lírica de Camões, se não maturou no peito Manuel Bandeira, se não é capaz de curtir Machado de Assis, se não se emociona até as lágrimas com Lima Barreto, mantenha distância desses criadores. O silêncio sobre eles fará um dano menor que a citação burocrática. Melhor para o mestre seria cantar Roberto Carlos, equilibrar mesas na ponta do nariz, imitar cornetas com um pente sobre a boca, fazer graça com arrotos cavalares. Seria mais pedagógico.
Um autor deve ser apresentado a partir de um problema. Nada como o conto Missa do Galo, de Machado, para todos os adolescentes. Eles entenderão até a última linha, vírgula e pontinho das reticências. Eles vão respirar todos os movimentos implícitos e insinuados da conversa da mulher solitária com um jovem. Eles são esse jovem. Eles sonham com essa noite ideal em que os espere uma senhora sozinha. Elas compreendem esse jovem e essa mulher. O conto tem todos os elementos de promessa de sexo e conflito com o pecado antes de uma missa devota.

Os contos, quando lidos, devem ser muito bem lidos. Com pausas, entonações, vozes, risos, pulos – o que o diabo achar necessário - como um ator de rádio. Isso quer dizer que o professor comanda a narração, faz uma leitura prévia, e pede para que ela continue em volta. Digo que começa com o professor porque nas escolas se perdeu o necessário e fundamental hábito de leitura em voz alta. Então é comum que um jovem estudante não saiba o valor de um ponto, de uma exclamação, de uma vírgula, de uma pausa – o valor ponderado de uma palavra em determinado contexto. Como poderão entender a maravilha de Manuel Bandeira, na infância com o coração a bater, se não souberem que a moça nua lhe fez o primeiro... ALUMBRAMENTO?

Mas entendam, a dramatização dos textos nada tem de dramático. Quero dizer, nada é artifício, artificioso, operístico, melodramático, falso. Ou se fala do que se conhece e do que se vive ou não se fala. Ponto. Deve-se falar do amor, sempre. E nisso não vai nenhum romantismo. Deve-se falar do amor, sempre, porque toda obra é a sua busca ou a sua negação, a sua falta ou plenitude.
Apesar de até aqui ter falado de minha própria experiência, devo terminar com duas coisas ainda mais pessoais. Primeira: não consigo até hoje falar de Andersen com isenção e distância, quando me refiro ao conto A pequena vendedora de fósforos. Aquela trajetória da pequena menina que sai a vender fósforos em uma véspera de Ano Bom, nas ruas geladas de uma cidade, que vislumbra pelo vidro embaciado das janelas a ceia posta nas casas burguesas e com profunda fome fica encantada... E me fere mais, e aí não consigo ir adiante, quando Andersen realiza aquela imagem extraordinária: enregelada, morta, a pequena vendedora sobe “em um halo de luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe... longe da Terra, para um lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem medo”.

Segunda. Certa vez, li para alunos com idades em torno de 11 anos o meu conto Daniel. Claro, expurguei os termos mais chulos, grosseiros. Quando eu li 

“Da turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob protestos, ele crescera pelos lados, elastecendo um círculo de carnes. Em seu rosto largo destacavam-se sobrancelhas peludas, que se uniam simetricamente num ponto de inflexão, ficando a sobrancelha esquerda e a sobrancelha direita ligadas como asas dum pássaro, movendo-se no espaço da fronte”,

na sala não se ouvia uma só riso, apenas respirações ofegantes. Então eu ia para o quadro e desenhava as sobrancelhas, à Monteiro Lobato, para eles verem. Depois, já ao fim, quando acrescentava que Daniel raspara aqui e ali o seu estigma, e que “a cirurgia dera nascimento a dois pontos de interrogação deitados, quase dois acentos circunflexos incompletos, sem acomodação”,voltava ao quadro para desenhar os dois pequenos ganchos que ficaram no lugar das sobrancelhas do personagem.

O melhor digo agora no fim. Vocês não vão acreditar no lirismo de que é capaz a infância. Os meninos rebatizaram o conto. Em lugar de Daniel, eles me pediam sempre para ouvir, de novo,  O menino-passarinho.


Urariano Mota. in. Direto da Redação


Fotos: um de muitos*

Hitler em 1914, foto de Heinrich Hoffmann

Munique, Odeonsplatz, agosto de 1914.

A bandeira imperial ondula nas alturas. Ao seu amparo, uma multidão se junta no êxtase da germanidade.

A Alemanha declarou a guerra. Guerra, guerra, gritam todos, loucos de alegria, ansiosos por chegar o quanto antes aos campos de batalha.

Num ângulo inferior da foto, perdido na multidão, aparece um homem em estado de graça, olhos no céu, a boca aberta. Quem o conhece poderia contar-nos que se chama Adolf, é austríaco, feioso, que fala com voz fininha e está sempre à beira de um ataque de nervos, que dorme numa água-furtada e que sobrevive vendendo nos bares, mesa por mesa, as aquarelas que pinta copiando paisagens de almanaques.

O fotógrafo, Heinrich Hoffmann, não o conhece. Não tem a menor ideia de que nesse mar de cabeças sua câmara registrou a presença do messias, o redentor das raças dos nibelungos e das valquírias, o Sigfried que vingará a derrota e a humilhação desta Grande Alemanha, que cantando marcha do manicômio ao matadouro.



Eduardo Galeano. in. Espelhos. Ed. L&PM, 2009, p. 244.


quarta-feira, 18 de abril de 2012

No pé da página*


Houve um tempo em que os livros eram copiados a mão nos mosteiros, em folhas de pergaminho. Obras importantes eram passadas a limpo por escribas hábeis, com caligrafias meticulosas que, vistas hoje, parecem ter sido impressas com tipos móveis, pela sua regularidade, harmonia e clareza. Ser escriba medieval exigia, além da caligrafia perfeita, boa cultura (para não cometer erros de grafia, e para poder eventualmente corrigir os erros da cópia que estava servindo de modelo), paciência e resistência física; porque em geral o escriba tinha que passar o dia inteiro debruçado sobre uma mesa, molhando a pena no tinteiro e desenhando letras após letras, hora após horas, dia após dia, ano após ano. Não era um serviço para qualquer um; e pelo menos uma grande obra literária, O Nome da Rosa de Umberto Eco, fez justiça a esses operários do saber, de um mundo que não existe mais.

O número da primavera da revista Lapham’s Quarterly (http://bit.ly/GDbCwa) traz uma matéria sobre o lado emocional desses artesãos anônimos: os comentários que eles deixavam anotados nas margens ou no cólofon das obras que copiavam. Ninguém é de ferro, não é mesmo? Esses monges de 800 anos atrás também não eram, e deixavam rabiscados, aqui e ali, seus pequenos protestos. “Estou com muito frio”, anota um. “Esta é uma página difícil dá muito trabalho para ser lida”, anota outro, lembrando-nos que estas cópias impecáveis eram muitas vezes feitas a partir de manuscritos muito velhos, danificados, com trechos arrancados ou ilegíveis. Alguns se queixam de pequenos problemas técnicos: “O pergaminho é peludo”, “A tinta é rala”, “Pergaminho novo, tinta rala, e não digo mais nada”. Alguns fazem uma autocrítica: “Esta página não foi escrita muito devagar”.


Mais comovente são os desabafos mais longos, que expressam bem o sentimento provocado por esse trabalho estafante: “Agora acabei tudo, pelo amor de Deus me deem algo para beber”. “São Patrick de Armagh, libertai-me do ofício de escrever”. “A escrita é um trabalho enfadonho. Ela enverga nossas costas, cansa nossa visão, torce o nosso ventre e as nossas ilhargas”. “Eu estava gelado enquanto escrevia, e o que não pude copiar aos raios do sol terminei à luz de velas”. “Assim como a visão do porto é bem vinda ao marinheiro, a da última linha o é para o escriba”. “Isto é tão triste! Oh, pequenino livro. Chegará um dia em que alguém lerá esta página e dirá: A mão que a escreveu não existe mais”. São pequenas queixas de homens anônimos que humanizam essas obras centenárias. É como encontrar na argamassa de uma catedral a marca de uma mão ou de dois joelhos humanos.



Braulio Tavares. in. Mundo Fantasmo


Dancem macacos, dancem!*



Há bilhões de galáxias no universo observável e cada uma delas contém centenas de bilhões de estrelas, em uma dessas galáxias orbitando uma dessas estrelas há um pequeno planeta azul e este planeta é governado por um bando de macacos. Mas esse macacos não pensam em si mesmos como macacos. Eles nem se quer pensam em si mesmos como animais, de fato, eles adoram listar todas as coisas que eles pensam separá-los dos animais: Polegares opositores, autoconsciência, eles usam palavras como Homo Erectus e Australopithecus.

Você diz to-ma-te eu digo to-ma-ti. Eles são animais, certo?

Eles são macacos. Macacos com tecnologia de fibra ótica digital de alta velocidade mas ainda assim macacos. Quero dizer, eles são espertos, você tem que conceder isso. As pirâmides, os arranha-céus, os jatos, a Grande Muralha da China, isso tudo é muito impressionante, para um bando de macacos.

Macacos cujos cérebros evoluíram para um tamanho tão ingovernável que agora é bastante impossível para eles ficarem felizes por muito tempo, na verdade, eles são os únicos animais que pensam que deveriam ser felizes, todos os outros animais podem simplesmente ser.

Mas não é tão simples para os macacos, pois os macacos são amaldiçoados com a consciência e assim os macacos têm medo, os macacos se preocupam, os macacos se preocupam com tudo mas acima de tudo com o que todos os outros macacos pensam. Porque os macacos querem desesperadamente se encaixar com os outros macacos. O que é bem difícil, porque a maior parte dos macacos se odeia.

Isto é o que realmente os separa dos outros animais. Estes macacos odeiam. Eles odeiam macacos que são diferentes, macacos de lugares diferentes, macacos de cores diferentes.

Sabe, os macacos se sentem sozinhos, todos os 6 bilhões deles.

Alguns dos macacos pagam outros macacos para ouvir seus problemas. Os macacos querem respostas, os macacos sabem que vão morrer, então os macacos fazem deuses e os adoram. Então os macacos começam a discutir quem fez o deus melhor, e os macacos ficam irritados e é quando geralmente os macacos decidem que é uma boa hora de começar a matar uns aos outros.

Então os macacos fazem guerra. Os macacos fazem bombas de hidrogênio, os macacos têm o planeta inteiro preparado para explodir, os macacos não sabem o que fazer.

Alguns dos macacos tocam para uma multidão vendida de outros macacos. Os macacos fazem troféus e então eles os dão para si mesmos como se isto  significasse algo.

Alguns dos macacos acham que sabem de tudo, alguns dos macacos lêem Nietzsche, os macacos discutem Nietzsche sem dar qualquer consideração ao fato de que Nietzsche era só outro macaco.

Os macacos fazem planos, os macacos se apaixonam, os macacos fazem sexo e então fazem mais macacos. Os macacos fazem música, e então os macacos dançam, dancem macacos, dancem! Os macacos fazem muito barulho, os macacos têm tanto potencial. Se eles pelo menos se dedicassem. Os macacos raspam o pêlo de seus corpos numa ostensiva negação de sua verdadeira natureza de macaco.

Os macacos constroem gigantes colméias de macacos que eles chamam de "cidades". Os macacos desenham um monte de linhas imaginárias na terra. Os macacos estão ficando sem petróleo, que alimenta sua precária civilização. Os macacos estão poluindo e saqueando seu planeta como se não houvesse amanhã. Os macacos gostam de fingir que está tudo bem.

Alguns dos macacos realmente acreditam que o universo inteiro foi feito para seu benefício, como você pode ver, esses são uns macacos atrapalhados.

Estes macacos são ao mesmo tempo as mais feias e mais belas criaturas do planeta, e os macacos não querem ser macacos, eles querem ser outra coisa, mas não são.

Ernest Cline

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Assista ao vídeo (ótimo para sala de aula), que de forma bem humorada e inteligente discute nossa "humana" condição:

Dance Monkeys, Dance!



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