sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Balada de Robert Johnson*

Robert Johnson (1911-1938)


 (Balada de Robert Johnson / Álbum: Flavio Guimarães - 2005).

Seu mundo era rutilância 
Seu mundo era escuridão 
Seu nome era Robert Johnson
cantador d'outro Sertão 

Vinte e sete anos vividos 
lá nos Estados Unidos 
passou veloz como a luz 
Naquela terra sombria 
onde tristeza e poesia 
se dava o nome de Blues 

Sua mãe teve onze filhos 
seu pai ele nunca viu 
O mundo em que foi criado 
lembrava muito o Brasil 

Era neto de escravos 
dos negros fortes e bravos 
colhedores de algodão 
Nunca pisou numa escola 
escreveu com a viola 
e leu com o coração 

Dizem que foi o diabo 
quem lhe ensinou a tocar 
Em um encontro marcado 
numa noite sem luar 

Cruzando as estradas tortas 
daquelas veredas mortas 
chegou na encruzilhada 
Veio com a mão vazia 
e partiu com melodias 
porteio rima e tuá 

Outros garantem que é lenda 
que o diabo não existe 
Johnson só cantava blues 
por ser um poeta triste 

Impunhava o instrumento 
recitava um sentimento 
na sua vida andarilha 
E a tristeza era uma fera 
um cão negro, uma pantera 
farejando a sua trilha 

Correu estradas de ônibus 
de caminhão e de trem 
Hora cantando sozinho 
hora em dupla com alguém 

Andava dias inteiros 
ao lados dos companheiros 
sobre o sol mais escaldante 
Porém sempre se mantinha 
vestido com boa linha 
bem cuidado e elegante 

Buscando um namorada 
procurava as mais feiosas 
As mulheres solitárias 
carentes e carinhosas 

A mulher que lhe aceitava 
com todo gosto lhe dava 
o corpo a casa e a cama 
E ele deixava que ela 
julgar-se ser a mais bela 
na ilusão de quem a ama 

Uma noite numa festa 
tocava de madrugada 
E começou um namoro 
com uma mulher casada 

Sedutor e seduzido 
cantava como um sentido 
naquele corpo moreno 
Quando um copo alguém lhe deu 
ele pegou e bebeu 
sem saber que era veneno 

Saiu dali carregado 
para o quarto da pensão 
Morreu e deixou somente 
a mala e o violão 

Não levou fama nem glória 
não deixou nome na história 
não levou riso nem mágoa 
Foi um sopro de poeira 
uma nuvem passageira 
um nome escrito na água 

Foi assim que Robert Johnson 
passou pelo nosso mundo 
Brilhou durante alguns anos 
e apagou-se num segundo 

Não deixou seu nome escrito 
no mármore nem no granito 
nas armas nem nos brasões 

O que deixou para nós 
foram os versos e a voz 
e vinte e nove canções 


(Braulio Tavares/Sebastião da Silva)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Biografias eróticas*



Todo homem possuí duas biografias eróticas. Em geral só se fala da primeira, que se compõe de uma lista de casos e de encontros amorosos.

A mais interessante é, sem dúvida alguma, a outra biografia: o bando de mulheres que nos escaparam, a história dolorosa das possibilidades irrealizadas.

Mas existe ainda uma terceira, uma misteriosa e inquietante categoria de mulheres. Elas nos agradam, nós lhes agradamos, mas ao mesmo tempo compreendemos logo que não podíamos tê-las porque, na nossa relação com elas, nos encontrávamos do outro lado da fronteira.

[Fragmento]


Milan Kundera in. “O livro do riso e do esquecimento”. Ed. Círculo do Livro, 1990. p.194.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O homem do princípio ao fim*


A décima segunda guerra mundial, como todos sabem, trouxe o colapso da civilização. Vilas, aldeias e cidades desapareceram da Terra. Todos os jardins e todas as florestas foram destruídas. E todas as obras de arte.

Homens, mulheres e crianças tornaram-se inferiores aos animais mais inferiores. Desanimados e desiludidos, os cães abandonaram os homens decaídos.

Encorajados pela pesarosa condição dos antigos senhores do mundo, os coelhos caíram sobre eles. Livros, pinturas e música desapareceram da Terra e os seres humanos ficavam sem fazer nada, olhando no vazio.

Anos e anos se passaram. Os poucos sobreviventes militares tinham esquecido o que a última guerra havia decidido.

Os rapazes e as moças apenas se olhavam indiferentemente, pois o amor abandonara a Terra.

Um dia uma jovem, que nunca tinha visto uma flor, encontrou por acaso a última que havia no mundo. Ela contou aos outros seres humanos que a última flor estava morrendo. O único que prestou atenção foi um rapaz que ela encontrou andando por ali.

Juntos, os dois alimentaram a flor e ela começou a viver novamente. Um dia uma abelha visitou a flor. E um colibri. E logo havia duas flores, e logo quatro, e logo uma porção de flores.

Os jardins e florestas cresceram novamente. A moça começou a se interessar pela própria aparência. O rapaz descobriu que era muito agradável passar a mão na moça. E o amor renasceu para o mundo.

Os seus filhos cresceram saudáveis e fortes e aprendiam a rir e brincar. Os cães retornaram do exílio. Colocando uma pedra em cima de outra pedra, o jovem descobriu como fazer um abrigo. E imediatamente todos começaram a construir abrigos. Vilas, aldeias e cidades surgiram em toda parte. E a canção voltou para o mundo.

Surgiram trovadores e malabaristas, alfaiates e sapateiros, pintores e poetas, escultores e ferreiros, e soldados, e soldados, e soldados, e soldados, e tenentes e capitães, e coronéis e generais, e lideres!

Algumas pessoas tinham ido viver num lugar, outras em outro. Mas logo as que tinham ido viver na planície desejavam ter ido viver na montanha.

E os que tinham escolhido a montanha preferiram a planície. Os lideres, sob inspiração de Deus, puseram fogo ao descontentamento.

E assim o mundo estava novamente em guerra. Desta vez a destruição foi tão completa que absolutamente nada restou no mundo. Exceto um homem, uma mulher e uma flor.

Millôr Fernandes in. O Homem do Princípio ao Fim. Ed.l&pm, 2007. pp.129-131.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Bonecas de 1900*


Uma senhorita exemplar serve ao pai e aos irmãos como servirá ao marido, e não faz nem diz nada sem pedir licença. Se tem dinheiro ou berço, acode à missa das sete e passa o dia aprendendo a dar ordens aos serviçais negros, cozinheiras, serventes, babás, amas-de-leite, lavadeiras, e fazendo trabalhos de agulha ou bilro. Às vezes recebe amigas, e até se atreve a recomendar algum livro ousado, sussurrando:

- Se você soubesse como me fez chorar...

Duas vezes por semana, à tardinha, passa algumas horas escutando o noivo, sem olhá-lo e sem pedir que chegue perto, ambos sentados no sofá, frente ao olhar atento da tia. Todas as noites, antes de se deitar, reza as ave-marias do rosário e aplica na pele uma infusão de pétalas de jasmim amassadas em água de chuva à luz da lua cheia.

Se o noivo a abandona, ela se transforma subitamente em tia e fica portanto condenada a vestir santos, defuntos e recém-nascidos, a vigiar noivos, a cuidar de doentes, a dar catecismo e a suspirar pelas noites, na solidão da cama, contemplando o retrato de quem a desdenhou.


Eduardo Galeano in. "Mulheres". Ed. l&pm, 2007, p. 125.


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A máquina extraviada*



"Velha máquina na minha cidade" 
Foto: Josenias Silva

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou - não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.

Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.

A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. E claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.

As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima - até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.

Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.

Devemos reconhecer - aliás todos reconhecem - que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo - e a máquina fica faiscando como jóia.

Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia. Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.

A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.

Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.

Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal - por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer sabe a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo?

Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso - aqui para nós - eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu - e creio que também a grande maioria dos munícipes - não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando.

O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos), peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.

J.J. Veiga in. Os melhores contos de J.J. Veiga. Ed.Global, 2000, pp. 133-6.

domingo, 18 de novembro de 2012

“Pierrô”*


Este conto de Guy de Maupassant, que li há meio século, me volta à mente quando esbarro com uma dessas situações propensas à alegoria. Porque, diante das grandes catástrofes, precisamos reduzi-las ao tamanho das pequenas tragédias, para termos a sensação de que estamos entendendo aquilo. 

Pois bem: a viúva Lefèvre mora numa aldeiazinha da Normandia, em companhia de sua criada, Rose. A velha é sovina como um cacto, e certa noite descobre, alarmada, que um ladrão pulou o muro e roubou algumas besteiras da horta. Ela fica insegura e resolve arranjar um cachorro. Oferecem-lhe vários, mas ela sempre acha o preço extorsivo. Até que um vizinho traz um filhote horroroso: “um estranho animalzinho, todo amarelo, quase sem pernas, corpo de crocodilo, cabeça de raposa e cauda em forma de trombeta, verdadeiro penacho do tamanho do corpo”. Apesar da descrição é mesmo um cachorro, e ela lhe dá o nome de Pierrô.

Pierrô cresce, e, coitado, se revela um desastre como guarda. Não late para nenhuma visita, faz festas a qualquer estranho; só late quando tem fome, e late com força. As duas, apesar de secas e empertigadas, se afeiçoam ao bicho. Até que lhes cobram um imposto sobre a posse de animais domésticos: oito francos! A viúva se escandaliza e a criada também (é avara com os vinténs da patroa, por temer que venham a lhe faltar um dia). Resolvem fazer o que se faz na aldeia: jogá-lo num poço onde morrerá de fome.

Jogam-no, mas dias depois, tomadas de remorsos e pesadelos, as duas se arrependem. Agora é tarde para tirar Pierrô dali! Elas levam pão com manteiga, atiram os pedaços no poço, e choram diante dos latidos alegres de Pierrô. Isso dura alguns dias, até que certa manhã, ao atirar o pão, elas ouvem um latido mais forte. Alguém jogou outro cão, um cão dos grandes, no poço! Cada pedaço de pão que atiram provoca um alarido lá embaixo, e ganidos de dor que elas reconhecem. Gritam: “É para você, Pierrô!”, mas de nada adianta. E por fim a viúva diz, em tom ácido: “ – Absolutamente não posso alimentar todos os cachorros que forem jogados aí dentro. Temos de desistir. – E, indignada ante a idéia de uma porção de cachorros vivendo à sua custa, ela se retirou, levando consigo o resto do pão, que comeu, enquanto caminhava”. 

C’est la vie! As autoridades não detestam os pobres; pelo contrário, têm boas intenções para com eles, e, se pudessem, fariam de tudo para ajudá-los. O problema é que pobre dá muita despesa e pouco lucro, então é melhor empurrar a todos para o fundo de um poço, a encosta de um barranco, a periferia de um subúrbio. Quando os sentimentos humanitários botam a cabeça de fora, as autoridades começam a enviar dinheiro para os pobres, mas no meio do caminho aparece um cachorro grande, insaciável, que devora tudo. Por mais que as autoridades gritem: “É para vocês, pobres!”, o cachorro grande se atravessa. E elas nada podem fazer, porque quem botou o cachorro grande ali foi, sem dúvida, outra autoridade.

Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

Salve! Consciência Negra ...





sábado, 17 de novembro de 2012

Ronda da Meia-Noite*

Reprodução de capa da edição original 
(São Paulo, Typ. Cupolo, 1925)

Da cidade, ou da vida civilizada como diriam os cronistas da belle époque, se pode esperar tudo. Dessa forma me pego a ler Sylvio Floreal (pseudônimo de Domingos Alexandre) e suas crônicas sobre a São Paulo do começo do século XX. Uma cidade "veloz e voraz" emerge  picotada dessa experiência. 

Narrador urbano. Cidade em frisson constante. Ausência de silêncio. Há sempre um passo, um detalhe qualquer na paisagem. Movimento & Vertigem.

Logo percebo que foi "noctambulando a esmo" e "cumprindo o seu dever de citadino" que Sylvio Floreal juntou  o material para lançar Ronda da Meia Noite (1925), livro no qual se pode ver lado a lado os vícios, misérias e esplendores daquela que viria a ser a maior metrópole do país, a Paulicéia desvairada de Mário e a cidade de ar metálico de todos os dias. 

Continuo a leitura. 

Aos poucos a bisbilhotice do cronista aguça a minha e logo sou informado que, dos vícios, a cocaína já era um dos mais devastadores nas primeiras décadas do século XX. 

"Afora os vícios da carne, com todo  corolário dos ingredientes que o torna encantadores e fascinantes (...) também temos os vícios originários de uma infinidade de tóxicos. Vícios catacumbais e mortíferos, porque somente matam no transviado a razão, deixando assim o gajo com o sistema nervoso lastimavelmente desarranjado, em completo tremelique, e a bússola da memória a navegar ao léu dos ventos pérfidos da loucura. A cocaína, esse olímpico veneno, como dizem os seus ardentes consumidores, de há muitos anos é usada na atmosfera penumbrosa, morna e languescente das garçonnières por alguns indivíduos que se desgraçaram em Paris, torrando a fortuna na aquisição desses e de outros vícios cultivados por lá."

Me dou conta de que não era nada extraordinário para uma grande cidade. Era o vezo lastimável de uma urbe qualquer. Um prenúncio para os dias que correm.

O espetáculo das ruas sempre me fascinam. 

Corro os olhos página à dentro.

O narrador me conta que as ruas cobertas de trilhos e passos faceiros eram uma vitrine da cidade no começo do século. Assim, na rua Direita "passam elegâncias improvisadas, atitudes berrantes, postiças, gestos imitados e decalcados, maneiras forçadas, exóticas, e mesuras, tiques, sestros e cacoetes plagiados de afogadilho, à última hora, de outras civilizações e diferentes povos. É uma galeria de filáucias, uma feira de contrastes, um mostruário de figuras humanas todas ciosas por patentear a riqueza monetária, o falso orgulho da estirpe, ou, então, simplesmente, o aplombo da indumentária. É uma perfeita orgia de exibições, onde não falta o mínimo detalhe, o mais imperceptível adereço exigido pelo pedantismo imperativo do bom-tom e das normas escorreitas da burguesíssima urbanidade."

Noutro ponto, não tão à direita, num albergue noturno na Rua Asdrubal do Nascimento, n. 28. 

"Desfilam os párias, os hilotas, os mendigos verdadeiros e os disfarçados, os malandrinhos por ofício, os vagabundos por tara e os bêbados por fatalidade. Toda a fina flor da desgraça, todas as misérias da Capital, têm ali um representante. Vão passando as mulheres - ruínas ambulantes - carcomidas pela sífilis, com ares de velhas, dessa velhice começada pelo sofrimento e acabada pelo vício; carregam filhos nos braços e no ventre. Passam viúvas autênticas e viúvas que marido nunca tiveram. Imploram uma cama para dormir."

Dos esplendores à miséria, talvez na mesma profundeza trágica do presente. 

Apelo para a arte.

Que venha o cinema e o futebol. 

"Atualmente, São Paulo, desde a plebe que se desunha no trabalho afanosamente, até as classes que brunem ociosamente as unhas, morre de amores por dois gêneros de passatempo diametralmente opostos - cinema e futebol. A miuçalha das suburras e os grandaços da avenida Paulista deliram, indistintamente, na tela com os gênios da mudez, no campo, com os paladinos do potapé e do coice."

Adorei! Paladinos. 

No Cinema, não cabem os adjetivos ("delicioso veneno visual"; "escola da vertigem"; "triunfo da nevrose"; "apoteose do absurdo", etc.) e os bolinadores. 

Neste último caso.... (risos) Bolinadores?!

Leio com atenção.

 "O espectador casquilha, dotado de safardanices vai ao cinema e desenvolve uma piratagem digitálica sem dó nem piedade, sobre certas fulanas do sexo mole, muito amigas de tais massagens feitas no escuro." Aquele, "bolinador de larga escola, astuto conhecedor da arte voluptosa de alisar finas epidermes, chega, maneiroso e cauto, senta-se, bem estendido, ao lado de uma mulher que de antemão ele sabe ou adivinha que não se esquivará às suas investidas. E lentamente começa a por em prática o seu intento, com umas encostadelas furtivas; e desse modo vai longe... Se a 'bicha' estrila, ele se afasta; se cala, avança heroicamente..."

Adeus contemplação! 

Só a boa e velha sacanagem universal!

Dos coronéis, figuras exóticas da próspera economia paulista, nada muito familiar.

"É um tipo lastimável que oscila entre o ingênuo e o devasso, esmaltado de sem-vergonhice por dentro e por fora. Internamente, tem um fundo moral de estopa embebido de vícios e trescala a almíscar de bode decrépito; externamente, oculta a senectude principiada pelos anos e completada pelas farras, sob o disfarce astucioso das pomadas, dos chinós e das dentaduras postiças."

Evoé! Cidade do Pecado! 

As "ilustres fulanas", que fizeram votos de viver à custa do sexo, "quase sempre loiras, para atrair o ouro, fascinadas pela rubínea fama criada pelo café; deslocam-se até do recanto mais ignorado do mapa-mundi e vêm até aqui com um catalogo de impurezas na alma e no sangue e as unhas afiladas e brunidas, afeitas ao traquejo de duas espécies de carícias: a de afagar 'peles' e peles! As profissionais do madalenismo, industriadas no mister de subtrair dinheiro com a gazua do sorriso, astutas e maneirosas, aparecem, instalam-se esplendidamente e lançam o seu nome felino na praça!"

Evoé! Baco!

Aprendo uma nova geografia.

"Na rua 25 de março, na baixada do Mercado, e nas ruas São Nicolau, Maria Benedita, Lourenço Gnecco e outras travessas escuras e fedorentas, funciona uma chusma de botequins pestilenciais, cada qual contanto na sua folha corrida uma esplêndida legenda negra de rolos, forrobodós e assassinatos."

Evoé! São Paulo!

"Salve! Cidade-Esperança! Desespero ditoso das improvisações."

O Passado rasga minhas pálpebras.

Fecho o livro. 

Uma cidade transborda.


[Texto de Josenias Silva, Mestre em História do Brasil]

_______
* Sylvio Floreal. Ronda da Meia-Noite: vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo: Boitempo, 2002. 190p.


Quem tem medo da morte?*


"Nada perece e nada morre, a não ser o revestimento, a forma, o invólucro carnal, em que o Espírito, encarcerado, se debate, luta, sofre, aperfeiçoa-se. Morre a forma - essa carcaça - mas rebrilha a alma - esse gnomo de luz; e o que é a existência do corpo - um sopro - perante a existência da alma - a eternidade? Mortos andamos nós, os vivos, mortos na vida, para ressurgir vivos na morte" 

Alberto Veiga

O Donjuanismo*


Se amar bastasse, as coisas seriam simples. Quanto mais se ama, mais se consolida o absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher por falta de amor. É ridículo representá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação e esse aprofundamento. Por isso, cada uma delas espera lhe oferecer o que ninguém nunca lhe deu. Em todas as vezes elas se enganam profundamente e só conseguem fazê-lo sentir necessidade dessa repetição. "Por fim", exclama uma delas, "te dei o amor". Não surpreende que Don Juan ria dela: "Por fim? Não" - diz ele -, "outra vez". Por que seria preciso amar raramente para amar muito?

Albert Camus in. O mito de Sísifo. Ed. Record, 2010, p. 83.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

O Grito*


"O grito era a única realidade ali - um desabafo, um reequilíbrio de emoções, uma esperança, o sinal de uma vida vivida. Podia sentir isso: e passou também a viver em função dos gritos, assim como tinha até então vivido em função do prato quente de sopa. 

E o grito seria uma nova etapa temporal de seu cárcere - o tempo de seu corpo, de suas emoções limitadas entre as quatro paredes escuras."

Assis Brasil in. Os que bebem como os cães. Ed. Ronoir, 2010, p. 26.

A parte sensível*



domingo, 11 de novembro de 2012

Dos olhares*


[o olhar] É a grande arma da faceirice virtuosa. É possível dizer tudo com o olhar, e no entanto sempre se pode desmentir um olhar, pois não se pode repeti-lo textualmente.

Stendhal in. Do Amor. Ed. Ediouro, s/d, p. 81.

sábado, 10 de novembro de 2012

Na hora do Lobo*



Quando um homem consome a madrugada
rabiscando umas folhas de papel
e ele sabe que a vida é tonelada
oscilando na ponta de um cordel;
ele sabe que o fim de toda estrada
não desagua no inferno nem no céu,
e ele pensa na feira, na empregada,
água e luz, condomínio e aluguel;
quando um homem fatiga a voz cansada
com palavras da Torre de Babel
e ele entende que a coisa mais amada
se transmuda na coisa mais cruel;
quando a taça em que bebe está quebrada,
tanto vidro a boiar em tanto fel
e no peito uma dor desatinada
essa dor que é tão nítida e fiel;
quando um homem de boca tão calada
sente a mente girar num carrossel,
ele escreve através da madrugada
com cuidados de abelha que faz mel:
sua vida, talvez, foi destinada
a salvar estas folhas de papel.


Braulio Tavares in. O Homem Artificial: poemas. Ed. Sette Letras, 1999, p.9.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O barato do Barão*



Em 5 de dezembro de 1930, um jornal carioca trouxe uma notícia de grande monta. Em plena República, um decreto presidencial conferia o título de barão a um cidadão, tendo ao lado um estudo genealógico e o brasão da nova casa nobiliárquica, composto por “uma máscara contra gases asfixiantes e mau hálito” e um machado pingando sangue numa tigela com os dizeres “não é sopa”.
Não importa que o jornal fosse um semanário de humor, que o título se destinasse ao dono do periódico e que o decreto fosse criado por ele próprio. Tão logo se autoproclamou Barão de Itararé, Apparício Torelly jamais deixou seu baronato, vindo a conquistar, com esta alcunha, cadeira cativa na Câmara Alta do humor brasileiro.
A coruscante trajetória desse jornalista, político e humorista é o tema da biografia “Entre sem bater: A Vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé” [Casa da Palavra, R$ 55]. O desafio do autor, Cláudio Figueiredo, não foi pequeno. Nas 480 páginas, ele fez caber a vida de um sujeito que jogava sinuca com Villa-Lobos, foi modelo de Portinari, apresentou Jorge Amado a Zélia Gattai, criou jornais, muitas vezes escritos só por ele mesmo, afrontou o presidente Getúlio Vargas, foi sócio e inimigo de Assis Chateaubriand, vereador, pesquisador da febre aftosa e autor de centenas de máximas, muitas delas ainda circulando com frescor pela internet.
“O que se leva da vida... É a vida que se leva”, sentenciava Apporelly, como era chamado. Ele levou uma das mais agitadas, desde o princípio. Filho de brasileiro com uruguaia, neto de americano descendente de russos com índia charrua, com parentes italianos e portugueses, Fernando Apparício de Brinkerhoff Torelly (“Sou uma autêntica Liga das Nações”) nasceu em 29 de janeiro de 1895, em algum lugar entre uma fazenda uruguaia e Rio Grande (RS), onde foi registrado e cresceu.
O livro reúne fartas novidades sobre a infância e a juventude de Apporelly. Uma delas é a trágica morte de sua mãe, aos 18, quando ele tinha 18 meses. Dona Amélia “pôs termo aos seus dias, desfechando um tiro de revólver na cabeça”, descreveu um jornal local. Foi a primeira das cinco tragédias com mulheres que enfrentaria.
O pai, severo e distante, de classe média, enviou-o a um internato jesuíta em São Leopoldo (RS), onde o menino deu mostras de quatro traços marcantes do futuro Barão: 1) o contestador, que enfrentava padres com questões teológicas e com o trombone que tocava na banda escolar; 2) o “grande humorista”, que despontara no papel de Soldado Gamela numa peça de “conclusão solene do ano letivo de 1911”; 3) o criador de jornais: no colégio inventou seu primeiro periódico, “O Capim Seco”. Escrito a mão, teve só um número, de um exemplar; 4) o autor de textos curtos, divertidos e nonsense.
Graça

O Barão foi um autor sem obra -à exceção de um livro de poemas que lançou aos 19-, como vaticinara Graciliano Ramos em 1936, ao conhecê-lo na Casa de Detenção carioca. A recém-reeditada biografia “O Velho Graça” [Dênis Moraes, Boitempo, 360 págs., R$ 52] relembra: “[ Apporelly] tencionava compor a biografia do Barão de Itararé. [...] Correram semanas. Não se resolvia, porém, a iniciar a obra, coordenar as ironias abundantes que lhe fervilhavam no interior. Impossível dedicar-se a tarefa longa, julguei.”
Figueiredo não só topou a parada como a encarou duas vezes. Em 1987, publicou “As Duas Vidas de Apparício Torelly” (Record). Passou 20 anos sem voltar ao tema, até que, em 2007, encasquetou de voltar à pesquisa. Ao retornar ao Arquivo Público fluminense e pedir o prontuário de Apporelly, teve uma surpresa. O período de 1934 até 1950 era substancioso, mas, depois disso, os relatórios da polícia política rareavam até a última entrada, de 1961.
Última, não -penúltima. O item mais recente, de 14 de junho de 1985, era sobre o próprio Figueiredo, que naquele dia pedira o prontuário do Barão para o livro anterior -e recebera uma parte ínfima dos papéis. Ao voltar à carga anos depois, localizou documentos pessoais, agora depositados no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. E pôde, enfim, ouvir a voz do Barão, em pedaços de uma gravação feita nos anos 50 pela escritora Antonieta Dias de Moraes. O áudio raro estava com uma parente dela, em São Carlos (SP) -a voz não era cavernosa como a efígie barbuda de seu dono pode sugerir.
“Resolvi escrever o novo livro do zero. Com a vantagem de ter podido usar depoimentos colhidos para o anterior, como o de Luís Carlos Prestes”, relata o biógrafo.
A polícia política, diz ele, fez “um ótimo serviço para mim”: “O investigador ia lá, a cada conferência dele, sentava incógnito na 35ª cadeira e anotava tudo. Foi uma grande contribuição para a preservação da memória dele”, brinca Figueiredo, perfeccionista como seus talentosos irmãos Rubens (escritor premiado e tradutor de “Guerra e Paz”) e Reinaldo (cartunista e membro do “Casseta & Planeta”, ele ilustrou a capa deste ilustríssimo semanário).
A Manha

O biógrafo ainda mergulhou na leitura da maior criação de Apporelly, o jornal “A Manha”. Com a estreia do projeto Hemeroteca Digital Brasileira (hemerotecadigital.bn.br), em setembro, uma boa amostra da manhosa publicação está disponível on-line).
Criado em 1926 como suplemento do jornal “A Manhã”, de Mário Rodrigues, pai do dramaturgo Nelson, “A Manha” logo virou independente, sob a batuta onisciente de “Nosso querido diretor”, como Apporelly se referia a si mesmo.
O jornal circulou até fins de 1935, quando o Barão foi preso por ligações com o Partido Comunista Brasileiro, então na clandestinidade. Posto em liberdade em 1936, já ostentando a volumosa barba que cultivaria até o fim da vida, ele retomou o jornal por um curto período, até que viesse nova interrupção, ao longo de todo o Estado Novo (1937-45). Voltaria em edições espasmódicas até 1959.
“Apporelly sempre foi uma pedra no sapato do Getúlio, a quem se referia como 'G. G. Túlio Vargas'“, diz Lira Neto, biógrafo do presidente. Vargas marcou a trajetória do humorista até onde menos se percebe. Se foi em Itararé (SP) que sediou seu baronato, havia aí uma piscadela para o líder gaúcho. Foi lá que aconteceu -ou deixou de acontecer- um episódio importante na Revolução de 1930, a “batalha que nunca houve”.
Figueiredo avalia a relação dos dois como “tortuosa”. Eles se conheceram nos tempos de colégio, em Porto Alegre, quando Apporelly vivia na mesma pensão que Benjamin, irmão de Getúlio. Opositor fervoroso do ditador, o que lhe custou prisão e silêncio, em 1969, em entrevista ao jornalista e tradutor Remy Gorga, Filho, o Barão disse sobre Getúlio: “Vivo, inteligente, tinha um porte de estadista raro. Ele era povo, não latifundiário. Getúlio sempre foi o pai da pátria”.
Apporelly também teve incursão pela política “stricto sensu”, aventura que durou menos de um ano. Com o fim do Estado Novo, candidatou-se, em 1947, a vereador do Distrito Federal (o Rio), com o lema “Mais leite! Mais água! Mas menos água no leite!”. Com 3.669 votos, foi o oitavo mais votado do PCB, que conquistou 18 das 50 cadeiras. Mas o Partidão logo sofreria sanções: em janeiro de 1948, seus vereadores foram cassados. “Um dia é da caça... os outros da cassação”, anunciou “A Manha”.
Outro caso clássico deu nome à nova biografia do humorista. Em 1934, ele foi sequestrado e espancado por oficiais da Marinha. Ao reassumir seu posto, mandou pregar na porta da redação uma placa com os dizeres “Entre sem bater”.
O filósofo Leandro Konder, 76, conheceu Apporelly e escreveu o breve “Barão de Itararé: O Humorista da Democracia”.”O humor do Barão me possibilitava evitar a chatice frequente da produção cultural do pensamento de esquerda”, disse Konder à Folha.
A historiadora Isabel Lustosa chama a atenção para o novo enfoque ideológico do humorismo de Apporelly: “A tradição humorística anterior a ele era conservadora. O humor dele já nasceu com esse compromisso com a esquerda”. Segundo ela, “A Manha” propôs um tipo de humor mais moderno que o de revistas como “Careta”, “Fon-Fon” e “Malho”, embora tenha bebido nessa fonte.
Figueiredo compara o humor do Barão ao de Agamenon Mendes Pedreira, “homem de imprensa” criado pelos cassetas Hubert e Marcelo Madureira. “O Barão foi estagiário do Agamenon, que é um homem de Neandertal do humor brasileiro”, brinca Madureira, que diz ter lido “Entre sem Bater” “de uma sentada” e “com profundo prazer”. “Nunca falamos: 'Vamos imitar o Barão'. Mas 'A Manha' influenciou muito o 'Pasquim', que nos influenciou demais.”
O Barão de que fala Madureira é, sobretudo, o que brilhou até meados dos anos 40. O biógrafo crava uma data precisa: 9 de junho de 1944. Para celebrar os 25 anos de jornalismo de Apporelly, organizou-se um banquete no prédio da Associação Brasileira de Imprensa, no Centro do Rio, que foi um verdadeiro “desembarque na Normandia” de intelectuais: Portinari, Drummond, Niemeyer, Samuel Wainer, Vinicius de Moraes e Oswald de Andrade.
O cardápio, desenhado pelo cartunista paraguaio Guevara, parceiro de Apporelly em “A Manha”, indicava, além dos pratos, a programação da cerimônia, que incluía a execução de “A Marselhesa”. Figueiredo sustenta que a esse apogeu seguiu-se uma linha descendente no humor do Barão.
“As melhores fases do seu trabalho sempre coincidiram com os períodos de maior liberdade e efervescência na vida brasileira, como o fim dos anos 20, a primeira metade da década de 1930 e a redemocratização, em 1945”, disse à Folha. “Seu afastamento da vida pública e o mergulho do país no clima da Guerra Fria podem ter contribuído para o início da decadência, sua e do seu jornal.”
O humorista foi deixando o humor de lado e passou a se interessar por uma velha paixão, a ciência, e pelo esoterismo. No final dos anos 1950, andou às voltas com estudos sobre a filosofia hermética, as pirâmides do Antigo Egito e a astrologia, campo no qual desenvolveu certo “horóscopo biônico”.
Recluso, encastelou-se ao final da vida num apartamento no bairro carioca de Laranjeiras, com livros do chão ao teto, como relembra Remy Gorga, Filho, que lá esteve em 1969. “Parecia que aquelas torres de livros iam nos soterrar a qualquer momento.” Em 1971, em 27 de novembro, aniversário do levante comunista que motivara sua prisão nos anos 30, Apporelly morreu, dormindo em sua cama.
***
[Cassiano Elek Machado, é repórter especial da Folha de S.Paulo / Reproduzido do suplemento “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo]

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Bundamel bundalis bundacor bundamor*




Bundamel bundalis bundacor bundamor
bundalei bundalor bundanil bundapão
bunda de mil versões, pluribunda unibunda
                     bunda em flor, bunda em al
                     bunda lunar e sol
                     bundarrabil

Bunda maga e plural, bunda além do irreal
arquibunda selada em pauta de hermetismo
                     opalescente bun
                     incandescente bun
meigo favo escondido em tufos tenebrosos
a que não chega o enxofre da lascívia
e onde
a global palidez de zonas hiperbóreas
concentra a música incessante
do girabundo cósmico.

Bundaril bundilim bunda mais do que bunda
Bunda mutante/renovante
que ao número acrescenta uma nova harmonia.
Vai seguindo e cantando e envolvendo de espasmo
o arco de triunfo, a ponte de suspiros
a torre de suicídio, a morte do Arpoador
                    bunditálix, bundífoda
bundamor bundamor bundamor bundamor.


Carlos Drummond de Andrade. in. Poesia Completa. Ed. Nova Fronteira, 2007, p. 1378.

O Bosque de Birnam*



Macbeth é um nobre escocês que certa noite hospeda o rei em seu castelo. Quando o rei está dormindo, Macbeth entra no quarto, corta-lhe a garganta e assume o trono da Escócia, de espada em punho, olhando em redor com aquela cara de “Que foi que viu? Vai encarar?!” Como dizia Dom Pedro Dinis Quaderna, uma maneira muito européia e fidalga de tornar-se rei.

Preocupado, Macbeth vai se consultar com as feiticeiras locais, e elas lhe dizem que, entre outros sinais, ele só será derrubado do trono “quanto o bosque de Birnam chegar a Dunsinane”, que é o castelo onde ele mora. É um pouco como dizer – quando a Floresta da Tijuca chegar ao Palácio do Catete. Macbeth sente firmeza e começa a praticar os maiores despautérios, até que os outros nobres mobilizam as tropas e marcham contra seu castelo. Ao passarem por Birnam, eles, sem sequer saberem da profecia, cortam os galhos das árvores e os empunham, para disfarçar o número de seus soldados. Macbeth recebe o alarma, vai até a muralha de Dunsinane, e o que vê no horizonte? O bosque de Birnam marchando na direção do seu castelo.

É vezo das profecias parecerem impossíveis e depois se concretizarem graças a um pulo-do-gato qualquer. Há um livro notável e pouco conhecido de Malba Tahan intitulado Sob o Olhar de Deus, que em sua primeira edição tinha o título “O Aviso da Morte”, mais descritivo do seu conteúdo. Célio Musafir, um escritor de sucesso, recebe uma noite a visita da Morte, que faz um pacto com ele: quando chegar a hora de levá-lo embora, lhe dará um aviso. Aliviado com esta promessa, Musafir passa a viajar, ter aventuras, fazer caçadas, escalar montanhas, etc., confiante de que a Morte cumprirá a palavra. Anos depois ela volta a lhe aparecer e diz que está na hora. Ele reclama que não recebeu aviso nenhum. E a Morte diz: “Meu amigo! E aquelas avalanches na montanha, e aquele tigre que quase o alcançou, e aquele seu barco que naufragou, etc. – isso não foi aviso suficiente de que eu estava chegando perto?!”

Compreensivelmente, ele diz que não entendeu assim. Quer um aviso claro, inconfundível; e a Morte diz: “Então tá bom. Escolha o aviso”. Ele pensa um pouco e diz: “Quero que o aviso seja esta cena: uma mulher de preto, sentada num piano, à luz de velas, tocando a Marcha Fúnebre de Chopin”. A Morte aceita: “Tá legal. Quando chegar sua hora, você verá exatamente isso”. E desaparece.

Musafir respira aliviado e pensa: “Bom, tudo que eu tenho a fazer daqui em diante é deixar de ir a concertos de piano”. E vai à janela, para fechá-la e ir dormir. Quando chega lá, vê do lado oposto da rua que na mansão em frente está havendo uma festa: pela janela ele vê a sala da mansão, e bem ali, no meio, adivinhem o quê. Ele vacila, cambaleia, leva a mão ao coração e (a frase final é uma citação de Dante) “caiu como um corpo morto cai”. Bem feito. Ele, um homem culto, leitor dos clássicos, deveria saber que o bosque de Birnam sempre chega a Dunsinane.

  
Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Tamara de Lempicka*



Tamara de Lempicka
Le turban vert, 1930
Oil on canvas
40 x 32 cm

Bela, emancipada, moderna e escandalosa, personagem das noitadas nova-iorquinas e dos salões parisienses de Arte, Tamara de Lempicka encarnou a 'folia' dos 'anos loucos' – as décadas de 20 e 30 do século passado. Sua vida e sua obra trafegaram entre os hotéis de luxo, os automóveis conversíveis, os amores bissexuais, os lazeres chic, e as amizades graúdas – D'Annunzio, Greta Garbo, Picasso, Jean Cocteau e André Gide, entre outras celebridades da época.

Eram esplendores que camuflavam o abuso de cocaína, a depressão, as dificuldades nas relações familiares e, por fim, a solidão. Maria Gurwik-Górska, ou 'Tamara de Lempicka', nasceu em Varsóvia, na Polônia, em 1898. Sua mãe, Malvina Decler, era uma socialite de origem polaca; seu pai, um advogado judeu nascido na Rússia. Mas logo se divorciariam. Maria estudou em Lausanne, na Suíça, e cresceu paparicada pela avó Clementine, uma senhora rica que elevava sua auto-estima incentivando-a a se tornar uma menina 'extraordinária'. Em 1911, é Clementine quem a acompanha em sua primeira viagem à Itália. Visitam Florença, Roma, Veneza e desembarcam em Montecarlo onde, todas as noites, a avó se diverte no Cassino. Após a morte de Clementine, Maria se muda para a casa de uma tia em São Petersburgo onde, num baile de máscaras, conhece o nobre advogado polonês Tadeusz Lempicki. Em 1916, numa cerimônia à qual se refere como 'fábula' – mas que provavelmente não passou de um simples matrimônio civil –, Maria conquista o solteiro mais cobiçado da cidade e, 4 anos após, dá à luz sua filha Kizette.

É em Paris, no entanto – para onde foge após a Revolução bolchevique –, que Maria encontraria seu verdadeiro destino. Adota um novo nome – 'Tamara de Lempicka' – e, em 1918, vai estudar Pintura na Académie de la Grand Chaumière, tornando-se discípula do pós-impressionista Maurice Denis e do neocubista André Lhote. Do primeiro, herdará o colorido brilhante e sólido; do segundo, o desenho geométrico e a maneira de decompor os volumes. Em 1922, expõe no Salão de Outono – sua primeira coletiva –, mas seu estilo já é inconfundível. Os volumes agigantados, a atenção aos detalhes, o delineamento simples, e a materialidade quase explosiva de seus temas já consubstanciavam um estilo pessoal. São retratos que, freqüentemente, utilizam a técnica do trompe-l’oeil, alternando efeitos que vão de um gélido glamour à palpitante sensualidade. Amigos, amantes e sua adorável filha Kizette – com quem nunca conseguiria manter uma relação equilibrada –, animam suas telas.

Em 1925, realiza sua primeira exposição individual, em Milão, e exibe seus trabalhos na primeira mostra art déco de Paris. De 1926 à metade dos anos 30, se transforma numa verdadeira diva. Já divorciada do primeiro marido, vive uma vida de sonhos. Seus retratos se valorizam e os jornais lhe dedicam extensas matérias. Sua casa-estúdio parisiense, decorada pela irmã arquiteta, torna-se um exemplo de modernidade e elegância. Pegando carona em seu sucesso, a empresa Revlon – fabricante de cosméticos –, lhe dedica uma marca de batom. Por essa época, retrata o Rei Alfonso XIII da Espanha e a Rainha Elizabeth da Grécia. Em 1933, se casa com o Barão Raoul Kuffner – seu ex-mecenas –, e em 1939 se transfere para Beverly Hills, na California. As festas e o jet set hollywoodiano não bastam para salvá-la da depressão, que agora se expressa também em suas telas. Em 1941, após conseguir retirar a filha da Paris ocupada pelos nazistas, organiza em Nova Iorque uma mostra focada em temas religiosos e na 'gente comum': um retumbante fracasso. Em 1943, se muda para a Big Apple. Mais tarde, ainda tenta novos caminhos, através do Abstracionismo e da pintura a espátula, técnica esta que adota nos anos 60. Mas a crítica e o público não a seguiriam. Após a morte do marido, em 1962, para de pintar e se muda, primeiro para Houston, no Texas, e em 1978 para Cuernavaca, no México, aonde viria a falecer, em 1980.

Conforme expresso em seu testamento, suas cinzas foram dispersas, pela filha Kizette e o Conde Giovanni Agusta, sobre o vulcão Popocatepetl. Entre os admiradores e colecionadores de sua obra figuram personalidades como o ator Jack Nicholson e a cantora Madonna, que a homenageia nos videoclips de Express Yourself e Vogue.

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