terça-feira, 17 de fevereiro de 2015





 L'Origine du monde –1866, Museu de Orsay, Paris.
Gustave Courbert, 1819-1877. 

Eu te saúdo, fenda de portentos
A luzir entre dois flancos macios;
Saúdo-te, buraco de amavios,
Que dás ao meu viver contentamento.

Enfim me libertaste dos tormentos
Do alado arqueiro e dos meus desvarios;
Só quatro noites eu te possuí e o
Poder do arqueiro fez-se em mim mais lento.

Pequeno furo, furo arteiro, furo
Tão bem guardado em matagal obscuro,
Que ao mais rebelde domas com presteza:

Todo vero galã, para te honrar,
Devia de joelhos te adorar,
Firme empunhando a sua vela acesa!

Pierre de Ronsard (1524-1585) 
(Trad. José Paulo Paes)



apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme

Paulo Leminski in. Caprichos e Relaxos. Ed. Brasiliense, 1985.
 

Painting - “Juliette” or “The Green Girl” 
— John White Alexander (c. 1897-1898)



domingo, 8 de fevereiro de 2015


Ratto delle sabine, 1574-1580 (dett.)
Jean de Boulogne (1529 – 1608)
Loggia dei Lanzi, Firenze
A Bunda, Que Engraçada

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai

pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito o que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda.

Carlos Drummond de Andrade in. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, pp. 1373-4.


 

sábado, 7 de fevereiro de 2015



CHEGADA DE RAUL SEIXAS AO CASTELO DE AVALON
 





Brilhava a lua cheia sobre o lago congelado de Avalon
Zunia o vento fustigando as garras fractais do arvoredo
Menestréis e neuromantes distraíam os convivas no salão
E na varanda um drúida recitava um cordel de Castañeda.
Era uma noite escura como as grutas de Sabá
e as fogueiras do castelo crepitavam sem parar...
A Távola Redonda celebrava o Ritual do Resplendor.
Dezesseis orientais, numa tela de cinema
começavam a traçar com hexagramas um teorema,
quando um calafrio de terror arrepiou o Rei Artur...
Alguém desconhecido se aproximava do portão
cantando feito um bêbado em dia de inundação
um rock do tipo “wo-bop-pa-baluba wop-bop bem-bum...”
E no meio da neve dos bosques os lobos uivavam:
- Rauuuuuullll...

O mago Merlin empunhou o seu binóculo.
O mago Crowley embainhou o seu punhal.
Os dragões do reino o cercaram. Os vídeo-monitores o focaram.
E ele rodeava a muralha do castelo dançando com a própria sombra
como um menino, ou como um velho;
e as imagens se alternavam nos monitores do salão
num arranjo serial da sua canção...
E ouvindo aquele bolero meio baião e meio blue,
O chinês Lao-Tsé e o judeu Leopold Bloom
discutiam quais as chances de sucesso de um filósofo zulu...
E no meio da neve do bosque os lobos uivavam:
- RauuuuuullllII...

Mas ele não gritava pras janelas, nem tocava no portão
puxava atrás de si, atada a cordas, uma carga de coisas...
E os Templários contemplaram numa tela de alta definição
a carga que o peregrino arrastava, no limite das forças...
A carroça de uns saltimbancos achada no chão de outro planeta;
um astrônomo caldeu manuseando uma luneta;
bailarinas metaleiras seduzindo a virgindade de um Xamã...
Ossadas de elefantes no cemitério dos automóveis;
um velho Dr. Frankenstein rodeado de monstros jovens
e o olho com a calma kamikaze de quem já foi no sertão...
O olho chamejante  de um alquimista tropical
que engoliu a semente do Fruto do Bem e do Mal
com um gole de Santo Daime
na taça do Santo Graal
em jejum...
E no meio da neve do bosque, os lobos uivavam:
- Rauuuulll...


Braulio Tavares in. O Homem Artificial. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, pp. 62-63.


 
photo: teddy locquard


Na hora do Lobo

Quando um homem consome a madrugada
rabiscando umas folhas de papel
e ele sabe que a vida é tonelada
oscilando na ponta de um cordel;

ele sabe que o fim de toda estrada
não desagua no inferno nem no céu,
e ele pensa na feira, na empregada,
água e luz, condomínio e aluguel;

quando um homem fatiga a voz cansada
com palavras da Torre de Babel
e ele entende que a coisa mais amada
se transmuda na coisa mais cruel;

quando a taça em que bebe está quebrada,
tanto vidro a boiar em tanto fel
e no peito uma dor desatinada
essa dor que é tão nítida e fiel;

quando um homem de boca tão calada
sente a mente girar num carrossel,
ele escreve através da madrugada
com cuidados de abelha que faz mel:
sua vida, talvez, foi destinada
a salvar estas folhas de papel.

Braulio Tavares in. O Homem Artificial. Rio de Janeiro: Ed. Sete Letras, 1999, p. 9.


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