sábado, 22 de setembro de 2012


Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Bertolt Brecht in. “Poemas do Exílio”, 1939.

A Náusea*



Já não posso duvidar de que alguma coisa me aconteceu. Veio como uma doença, não como uma certeza comum, não como uma evidência. Instalou-se pouco a pouco, sorrateiramente: senti-me um pouco estranho, um pouco incomodo, e isso foi tudo. Uma vez no lugar, não mais se mexeu, aquietou-se, e pude me persuadir de que não tinha nada, que era um alarme falso. Eis que agora a coisa se expande.

[...]
Em minhas mãos, por exemplo, há algo de novo, uma determinada maneira de segurar meu cachimbo ou meu garfo. Ou então é o garfo que tem agora uma determinada maneira de ser segurado, não sei. Ainda há pouco, quando ia entrando em meu quarto, parei de repente, porque sentia em minha mão um objeto frio que retinha minha atenção através de uma espécie de personalidade. Abri a mão, olhei: estava segurando apenas o trinco da porta.

Esta manhã, na biblioteca, quando o Autodidata veio me cumprimentar, levei dez segundos para reconhecê-lo. Via um rosto desconhecido, apenas um rosto. E depois havia sua mão, como se fosse um grande verme branco, em minha mão. Soltei-a logo, e o braço descaiu frouxamente.

Também nas ruas há uma quantidade de ruídos estranhos que persistem.

Portanto, ocorreu uma mudança durante essas últimas semanas. Mas onde? É uma mudança abstrata que não se fixa em nada. Fui eu que mudei? Se não fui eu, então foi este quarto, esta cidade, esta natureza; é preciso decidir.


Jean-Paul Sartre in. “A náusea”. Ed. Circulo do Livro, 1989, pp.15-16

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Escrever e Respirar*



Suponhamos que daqui a 100 anos a atual crise ambiental se agravou a um tal ponto que a poluição envenenou a atmosfera de modo irremediável. Para sobreviver, a humanidade construiu imensas usinas produtoras de cilindros de oxigênio, que são acoplados aos nossos narizes desde o momento em que o cordão umbilical do bebê é cortado na maternidade. Todo ser humano vive feito um mergulhador, com aquele trambolho de metal numa mochila às costas e os tubos flexíveis conduzindo aos pulmões o gás indispensável à vida.  É de graça? Quem dera. As indústrias e os governos cobram, e cobram caro por isso. Mas todo mundo paga, ou melhor, quem está vivo é porque consegue pagar. Os que não conseguiram não pertencem mais à paisagem.

Um belo dia, um grupo de indústrias independentes inventa um processo químico de limpar a atmosfera e num piscar de olhos, em 20 ou 30 anos, o ar volta a ser uniformemente respirável, ou pelo menos fica igual a este ar que respiramos em 2012. E agora? O mundo entra em crise.  Dezenas de milhões de desempregados superlotam a Praça Tahir, a Plaza de Mayo, Wall Street, o Vale do Anhangabaú. “Queremos de volta a indústria do oxigênio”, bradam eles, arquejantes (e meio bêbados, claro, seus pulmões não estavam acostumados àquela overdose). Os governos arrancam os cabelos porque vão ficar sem os 71% de impostos que cobravam sobre a indústria respiratória. Filósofos ponderam: “Respirar de graça empobrece o senso de responsabilidade dos cidadãos. E esse desperdício de oxigênio não-respirado, francamente!”.

É uma crise assim que a tecnologia digital está precipitando num mundo que estava deixando de ter Cultura para ter Indústria Cultural. Os aspectos industriais e suas prioridades tomaram a frente, e a gente criou este universo surrealista em que a Cultura, que é o compartilhamento livre de informações e contatos entre as pessoas e os grupos, virou uma “commodity”, e nos preocupamos mais com a geração de empregos do que com a geração de idéias. É uma grave crise para todo mundo que ganhava dinheiro com música, filmes e livros – por uma coincidência sinistra, as três coisas com que eu próprio ganho a vida. O que fazer?  Ser contra? Não, amigo. Descobrir maneiras alternativas de ganhar dinheiro. Cultura é oxigênio, não pode ser nem estatizada nem privatizada, pertence aos animais individuais que somos, e não a Instituições. Na nossa cultura, aceitamos como normal que não se ganhe dinheiro para pular carnaval ou para fazer sexo.  Por que essa atitude não pode ser estendida a outras atividades?  Por que tudo tem que ser medido em termos de dinheiro?  Há mil outras maneiras de ganhar dinheiro.


Braulio Tavares. in Mundo Fantasmo

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Tentação*



[...] Visto que a satisfação dos impulsos equivale à felicidade, torna-se causa de grave sofrimento quando o mundo exterior nos deixa na indigência, quando se recusa a saciar nossas necessidades.


Sigmund Freud in. “O mal-estar na cultura” Ed. L&PM, 2010, p. 67.

A função da arte/1*




Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.

Viajaram para o Sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

- Me ajuda a olhar!

Eduardo Galeano in. “O livro dos abraços”. Ed. L&PM, 2010, p. 15.


domingo, 16 de setembro de 2012

A pobreza da riqueza*


        "Em nenhum outro país os ricos demonstram mais ostentação que no Brasil. Apesar disso, os brasileiros ricos são pobres. São pobres porque compram sofisticados automóveis importados, com todos os exagerados equipamentos da modernidade, mas ficam horas engarrafados ao lado dos ônibus de subúrbio. E, às vezes, são assaltados, seqüestrados ou mortos nos sinais de trânsito. Presenteiam belos carros a seus filhos e não voltam a dormir tranqüilos enquanto eles não chegam em casa. Pagam fortunas para construir modernas mansões, desenhadas por arquitetos de renome, e são obrigados a escondê-las atrás de muralhas, como se vivessem nos tempos dos castelos medievais, dependendo de guardas que se revezam em turnos.
        Os ricos brasileiros usufruem privadamente tudo o que a riqueza lhes oferece, mas vivem encalacrados na pobreza social. Na sexta-feira, saem de noite para jantar em restaurantes tão caros que os ricos da Europa não conseguiriam freqüentar, mas perdem o apetite diante da pobreza que ali por perto arregala os olhos pedindo um pouco de pão; ou são obrigados a restaurantes fechados, cercados e protegidos por policiais privados. Quando terminam de comer escondidos, são obrigados a tomar o carro à porta, trazido por um manobrista, sem o prazer de caminhar pela rua, ir a um cinema ou teatro, depois continuar até um bar para conversar sobre o que viram. Mesmo assim, não é raro que o pobre rico seja assaltado antes de terminar o jantar, ou depois, na estrada a caminho de casa. Felizmente isso nem sempre acontece, mas certamente, a viagem é um susto durante todo o caminho. E, às vezes, o sobressalto continua, mesmo dentro de casa.
        Os ricos brasileiros são pobres de tanto medo. Por mais riquezas que acumulem no presente, são pobres na falta de segurança para usufruir o patrimônio no futuro. E vivem no susto permanente diante das incertezas em que os filhos crescerão. Os ricos brasileiros continuam pobres de tanto gastar dinheiro apenas para corrigir os desacertos criados pela desigualdade que suas riquezas provocam: em insegurança e ineficiência. 
        No lugar de usufruir tudo aquilo com que gastam, uma parte considerável do dinheiro nada adquire, serve apenas para evitar perdas. Por causa da pobreza ao redor, os brasileiros ricos vivem um paradoxo: para ficarem mais ricos têm de perder dinheiro, gastando cada vez mais apenas para se proteger da realidade hostil e ineficiente. 
        Quando viajam ao exterior, os ricos sabem que no hotel onde se hospedarão serão vistos como assassinos de crianças na Candelária, destruidores da Floresta Amazônica, usurpadores da maior concentração de renda do planeta, portadores de malária, de dengue e de verminoses. São ricos empobrecidos pela vergonha que sentem ao serem vistos pelos olhos estrangeiros.
        Na verdade, a maior pobreza dos ricos brasileiros está na incapacidade de verem a riqueza que há nos pobres. Foi esta pobreza de visão que impediu os ricos brasileiros de perceberem, cem anos atrás, a riqueza que havia nos braços dos escravos libertos se lhes fosse dado direito de trabalhar a imensa quantidade de terra ociosa de que o país dispunha. Se tivesse percebido essa riqueza e libertado a terra junto com os escravos, os ricos brasileiros teriam abolido a pobreza que os acompanha ao longo de mais de um século. Se os latifúndios tivessem sido colocados à disposição dos braços dos ex-escravos, a riqueza criada teria chegado aos ricos de hoje, que viveriam em cidades sem o peso da imigração descontrolada e com uma população sem miséria.
        A pobreza de visão dos ricos impediu também de verem a riqueza que há na cabeça de um povo educado. Ao longo de toda a nossa história, os nossos ricos abandonaram a educação do povo, desviaram os recursos para criar a riqueza que seria só deles, e ficaram pobres: contratam trabalhadores com baixa produtividade, investem em modernos equipamentos e não encontram quem os saiba manejar, vivem rodeados de compatriotas que não sabem ler o mundo ao redor, não sabem mudar o mundo, não sabem construir um novo país que beneficie a todos. Muito mais ricos seriam os ricos se vivessem em uma sociedade onde todos fossem educados.
        Para poderem usar os seus caros automóveis, os ricos construíram viadutos com dinheiro de colocar água e esgoto nas cidades, achando que, ao comprar água mineral, se protegiam das doenças dos pobres. Esqueceram-se de que precisam desses pobres e não podem contar com eles todos os dias e com toda saúde, porque eles (os pobres) vivem sem água e sem esgoto. Montam modernos hospitais, mas tem dificuldades em evitar infecções porque os pobres trazem de casa os germes que os contaminam. Com a pobreza de achar que poderiam ficar ricos sozinhos, construíram um país doente e vivem no meio da doença. 
        Há um grave quadro de pobreza entre os ricos brasileiros. E esta pobreza é tão grave que a maior parte deles não percebe. Por isso a pobreza de espírito tem sido o maior inspirador das decisões governamentais das pobres ricas elites brasileiras. 
        Se percebessem a riqueza potencial que há nos braços e nos cérebros dos pobres, os ricos brasileiros poderiam reorientar o modelo de desenvolvimento em direção aos interesses de nossas massas populares. Liberariam a terra para os trabalhadores rurais, realizariam um programa de construção de casas e implantação de redes de água e esgoto, contratariam centenas de milhares de professores e colocariam o povo para produzir para o próprio povo. Esta seria uma decisão que enriqueceria o Brasil inteiro - os pobres que sairiam da pobreza e os ricos que sairiam da vergonha, da insegurança e da insensatez. 
        Mas isso é esperar demais. Os ricos são tão pobres que não percebem a triste pobreza em que usufruem suas malditas riquezas".

Texto de Cristóvam Buarque     


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Sobre o esquecimento*



            ".... A atualidade é um acontecimento destinado a ser esquecido rapidamente. Um mundo obsessionado pela atualidade é um mundo obsessionado pelo esquecimento."

Milan Kundera

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Quando eu me chamar saudade*



Sei que amanhã quando eu morrer
Os meus amigos vão dizer
Que eu tinha um bom coração.
Alguns até hão de chorar
E querer me homenagear
Fazendo de ouro um violão.
Mas depois que o tempo passar
Sei que ninguém vai se lembrar
Que eu fui embora.

Por isso é que eu penso assim
Se alguém quiser fazer por mim
Que faça agora.
Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga
Para aliviar meus ais.
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais.

(Nelson do Cavaquinho/ Guilherme de Brito)
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