domingo, 27 de maio de 2012

A literatura entre escombros*



Vivemos em um mundo fluido, raso e fragmentado, que se pulveriza e se desmancha. O mundo das imagens feéricas, do noticiário em "tempo real", das grandes (e ilimitadas) redes virtuais. O mundo da simulação, do duplo e do etéreo. Nesse mundo disperso e desprovido de limites, a literatura parece perder o sentido. Para que serve, então, a literatura hoje? A literatura está morrendo? Será ela devorada pelos blogs, pelo Face Book e por outros artefatos do mundo virtual? Chegando à pergunta que mais nos atormenta: a literatura tem futuro? Podem os jovens ainda acreditar na potência da literatura? 

Aposto, com ênfase, no futuro da literatura. Mais ainda: aposto em sua força no presente. Em um mundo entre escombros, em que tudo se parte e se dispersa, a literatura, na contramão, oferece coesão e sentido. Em um mundo no qual tudo nos joga para fora, ela nos joga para dentro. Em um mundo extrovertido, dominado pelas imagens, pelos índices e pelas superfícies, ela nos conduz a um precioso exercício de introspecção. Quanto mais o mundo se fragmenta e se liquefaz (para pensar nas ideias de Zymunt Bauman), mais a literatura se oferece como um posto de resistência. Quanto mais o sujeito e seu corpo se vêem presos _ como tristes aranhas _ às redes virtuais e às jogadas comerciais, mais a literatura se oferece como um território de liberdade interior e de subjetivação. 

Volto à pergunta que mais nos inquieta: como levar os jovens a entenderem isso? Cegos pelas luzes do contemporâneo, eles vivem em uma espécie de presente perpétuo, no qual tudo se equivale e tudo se repete. Tornaram-se prisioneiros do instante. Através do Face Book, do Twitter, dos blogs e de outros recursos virtuais, eles vivem perseguidos por um presente onipotente, no qual o passado se torna um resto insuportável e o futuro é só uma miragem. 

Arrastados pela web _ detidos em uma sucessão de janelas ("windows") que se desenrolam em abismo,eles têm, cada vez mais, uma imensa dificuldade de parar. E portanto: dificuldade de pensar. Sem pensamento, sem introspecção e meditação, ninguém se torna um leitor. O leitor é aquele que para e _ como um nadador perfilado em seu trampolim _ prepara seu salto sobre (ou dentro de) um livro. Sem silêncio, contenção e divagação, não há literatura (não há leitor) possível. 

Como levar os jovens a entender que, na contramão do mundo veloz que os arrasta, existe um lugar onde é possível voltar a si (como alguém que acorda depois de um desmaio) e se aproximar de si mesmo? Infelizmente _ e a culpa não é deles _ os jovens costumam ter uma visão "morta" de literatura. Quando pensam em um poeta como Castro Alves, por exemplo, vêem apenas os velhos bustos de bronze, roídos pelo tempo e sujos pelos pombos, que se erguem em tantas praças "Castro Alves" existentes no Brasil. 

Esquecem-se (ou ignoram) que Castro Alves foi um jovem romântico, apaixonado pela vida e de espírito rebelde, cheio de vigor e de desejo, para quem a poesia era não só uma máquina de fazer sonhar, mas um instrumento de sedução e de afirmação. Morreu aos 24 anos _ em pleno fogo da juventude _ e deixou-nos uma obra corajosa e radical. Por que _ nas escolas, nos colégios, nas universidades _ insistimos em lhes dar só a primeira imagem do poeta, cheia de ferrugem e cheirando à morte? Por que insistimos em assassinar Castro Alves e sua poesia? 

Para atrair os jovens para a leitura e a literatura, precisamos, primeiro, convencê-los de que a literatura está viva. Mais que isso: que ela tem o poder de interferir e dar sentido às suas vidas. A leitura é uma espécie imóvel de viagem interior. Considero que a literatura, mais que um trabalho ou um ofício, é um ato e uma travessia _ uma viagem para dentro. Na literatura não há certo ou errado: há o singular. Para cada leitor, um mesmo livro será, sempre, um livro diferente. O "Madame Bovary" que leio não é o  mesmo romance, "Madame Bovary", que você lê. A minha "A metamorfose" não é a sua "A metamorfose". O escritor paraguaio Augusto Roa Bastos sintetizou isso assim: "Cada livro é um livro diferente na cabeça de cada leitor". Dizia mais: que, a rigor, os livros não existem, existem apenas aqueles que os lêem. 

Por que? Porque para ler não é necessário _ e é até perigoso _ seguir regras, modelos, "leituras autorizadas", prescrições de especialistas. Ao contrário: quando um leitor lê um livro, ele o reinventa. Podemos dizer até: ele o reescreve dentro de si. Apostilas, exercícios, correção de provas, receituários só separam o leitor de seu livro. A imagem mais perfeita do leitor é a daquele menino que, trancado em seu quarto, escondido sob seu cobertor e munido apenas de uma lanterna, refugia-se do mundo para ler. Para viajar através de seu livro. Só há literatura, portanto, em silêncio e solidão. Quando abre um livro, o leitor faz isso sempre por sua conta e risco. 

É, de fato, muito perigoso ler. A leitura pode provocar fortes impactos interiores, danificar clichês e superstições, e instaurar novas (e inesperadas) maneiras de observar o mundo. Mas, como nas grandes aventuras a mundos desconhecidos e remotos, a viagem através dos livros também promete surpresas e maravilhas. Promete algo ainda mais precioso: em meio a um mundo fragmentado, veloz e superficial, a leitura (a literatura) promete um reencontro consigo mesmo. Uma "queda em si", como prefiro dizer. Ao ler, o sujeito volta a ser dono de si mesmo. Ao ler, ele se reencontra. Ao ler, ele se conecta, outra vez, a um sentido. A literatura oferece uma multiplicidade de sentidos _ em um mundo que, em geral, nos parece reto e indiferente. Em meio ao uníssono do contemporâneo, no qual todas as coisas se equivalem, a literatura nos apresenta à diversidade e à dissonância. Entre escombros e em meio ao vazio, ela pode nos salvar. Não é fácil, porém, convencer os jovens disso. Não existe outra maneira de conhecer o prazer da leitura senão lendo. Aqui é inevitável recorrer ao velho clichê: é como andar de bicicleta, ou como surfar, só se aprende andando, ou surfando. 

A melhor maneira de aproximar os jovens da literatura não é, portanto, submetê-los a compêndios, a apostilas e a cânones. Mas levá-los, desde os primeiros momentos, a se defrontar com os próprios livros. Não existe outro caminho para a experiência da leitura senão a própria leitura. A literatura é a própria salvação da literatura. 


José Castello. in. Literatura na Poltrona


sábado, 26 de maio de 2012

A Outra - Los Hermanos*


Vídeo-dança com a música A Outra, de Los Hermanos:



Com:
Camila Koschdoski e Marcio Jahú

Roteiro, Direção e Edição:
Vitor Medeiros

Direção de Fotografia:
Érica D'Alessandro e Tássia Pacheco

Direção de Arte:
Laís Sauerbronn e Renato Acácio

Direção de Produção:
Amanda Wanis

Ass de Direção:
Douglas Bastos

Coreografia:
Camila Koschdoski e Marcio Jahú

Colorista: 
Pedro Santos

Projeto orientado pela professora Elianne Ivo Barroso para a disciplina "Edição e Montagem" 

* Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói, 2009.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Ao Deus Kom Unik Assão*


Eis-me prostado a vossos peses
que sendo tantos todo plural é pouco.
Deglutindo gratamente vossas fezes
vai se tornando são quem era louco.
Nem precisa cabeça pois a boca
nasce diretamente do pescoço
e em vosso esplendor de auriquilate
faz sol o que era osso.

Genuncircunflexado vos adouro
Vos amouro, a vós sonouro
Deus da buzina & da morfina
que me esvazias enchendo-me de flato
e flauta e fanoipéia e fone e feno.
Vossa pá lavra o chão de minha carne
E planta beterrabos balouçantes
de intenso carneiral belibalentes
em que disperso espremo e desexprimo
o que em mim aspirava a ser eumano

Salva, deus compacto
cinturão da Terra
calça circular
unissex, rex
do lugarfalar
comum.
Salve,meio-fim
De finrinfinfim
Plurimelodia
Distriburrida no planeta.
Nossa goela sempre sempre sempre escãocarada
engole elefantes
engole catástrofes
tão naturalmente como se.
E PEDE MAIS.

A carne pisoteada de cavalos reclama
pisaduras mais.
A vontade sem vontade encrespa-se exige
contravontades mais.
E se consome no consumo.

Senhor dos lares
e lupanares
Senhor dos projetos
e do pré-alfabeto
Senhor do ópio
E do cor-no-copo
Senhor! Senhor!
De nosso poema fazei uma dor
que nos irmane, Manaus e Birmânia
pavão e Pavone
pavio e povo
pangaré e Pan
e Ré Dó Mi Fá Sol-
apante salmoura
n'alma, cação podrido.
Tão naturalmente como se
Como ni
ou niente.

Se estou doente, devo estar doentes.
Se estou sozinho devo estar desertos.
Se estou alegre deve estar ruidosos.
Se estou morrendo, devo estar morrendos?

Cumpro. Sou
geral.
É pouco?
Multi
versal.
É nada?
Sou
al.
Dorme na tumba a cultura oral.
Era uma vez a cultura visual.
Quando que vem a cultural anal
na recompensa aldeia tribal?

O meio é a mensagem
O meio é a massagem
O meio é a mixagem
O meio é a micagem
A mensagem é o meio
de chegar ao Meio.
O Meio é o ser
Em lugar dos seres, isento de lugar,
Dispensando meios
de fluorescer.

Salve, Meio. Salve, Melo.
A massa vos saúda
em forma de passa.

Não quero calar junto do amigo.
Não quero dormir abraçado
ao velho amor.
Não quero ler a seu lado.
Não quero falar
a minha palavra
a nossa palavra.
Não quero assoviar
a canção parceria
de passarinho/aragem.
Quero komunikar
em código
descodificar
recodificar
eletronicamente.

Se komuniko
que amorico
me centimultiplico
scotch no bico
paparico
rio rico
salpico
de prazer meu penico
em vosso honor, ó Deus komunikão.

Farto de komunikar
Na pequenina taba
subo ao céu em foguete
até a prima solidão
levando o som
a cor, o pavilhão da komunikânsia
interplanetária interpatetal.
Convoco os astros
para o coquetel
os mundos esparsos
para a convenção
a inocência das galáxias
para a notícia
a nivola
o show de bala
o sexpudim
o blabladum.

E quando não restar
O mínimo ponto
a ser detectado
a ser invadido
a ser consumido
e todos os seres
se atomizarem na supermensagem
do supervácuo
e todas as coisas
se apagarem no circuito global
e o Meio
deixar de ser Fim e chegar ao fim,
Senhor! Senhor!
Quem vos salvará
de vossa própria, de vossa terríbil
estremendona
inkomunikhassão?


Carlos Drummond de Andrade. in. As Impurezas do Branco. Ed. Record, 2005.


segunda-feira, 21 de maio de 2012

Vênus*

Cena do filme Vênus Negra (Vénus Noire), 2010

Foi arrancada da África do Sul e vendida em Londres.

E foi debochadamente batizada de Vênus dos Hotentotes.

Por dois xelins era possível vê-la, trancada numa jaula, nua, com suas tetas tão compridas que davam de mamar pelas costas. E pagando o dobro dava para tocar sua bunda, que era a maior do mundo.

Um cartaz explicava que aquela selvagem era metade humana e metade animal, a encarnação de tudo aquilo que os civilizados ingleses viram, felizmente, não são.

De Londres passou a Paris. Os especialistas do Museu de História Natural queriam averiguar se aquela Vênus pertencia a uma espécie localizada entre o homem e o orangotango.

Tinha vinte e poucos anos quando morreu. Georges Cuvier, célebre naturalista, fez a dissecação. Informou que ela tinha crânio de macaco, cérebro escasso e cu de mandril.

Cuvier desprendeu os lábios da vagina, penduricalho enorme, e meteu-os num frasco.

Dois séculos depois, o frasco ainda estava sendo exibido, em Paris, no Museu do Homem, junto dos genitais de outra africana e de uma índia peruana.

Bem pertinho estava, em outra série de frascos, os cérebros de alguns cientistas europeus.


Eduardo Galeano. in. Espelhos. Ed. L&PM, 2009, pp. 194-195.


domingo, 20 de maio de 2012

A arte de envelhecer segundo Cícero*


Envelhecer é um pesadelo para as pessoas. Há uma luta inútil e muitas vezes patética pela juventude eterna. E uma indústria prospera por trás dessa batalha: dos cirurgiões plásticos aos fabricantes de tintura para cabelos. Um medicamento afirma poder devolver a potência da juventude a homens de meia idade ou anciões, outro promete deter a queda dos cabelos e até restabelecer franjas que o tempo levou. A mídia, compreensivelmente, uma vez que o tema é campeão de audiência, dá um amplo espaço aos vendedores de juventude. Basicamente, o que explica tudo isso é a angústia que nos toma quando percebemos que não somos tão jovens assim. Temos uma opinião negativa da velhice. Daí a origem da nossa aflição, que não é um assunto novo.
Desde sempre a humanidade se deixou atormentar por esse fantasma. Muitos filósofos se detiveram sobre o tema e se esforçaram para nos ajudar a lidar melhor com a passagem do tempo. Um deles foi Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.c.), estadista e pensador romano que se transformou no símbolo supremo da oratória. Em sua obra Saber Envelhecer (L&PM), Cícero enumera as vantagens desprezadas da velhice. Na dedicatória, ele diz: “Senti tal prazer em escrever que esqueci dos inconvenientes dessa idade; mais ainda, a velhice me pareceu repetidamente doce e harmoniosa”.
Cícero comenta um fato incontestável: “Todos os homens desejam avançar a velhice, mas ao ficarem velhos se lamentam. Eis aí a conseqüência da estupidez”. Depois ele toca em outro ponto crucial, que vale para tudo na vida: uma vez que somos submetidos a obstáculos e desafios, e que a sorte instável ora nos ergue e ora nos derruba, o que muda mesmo é a maneira com que cada um de nós lida com sua cota de agruras. Um mesmo aborrecimento é leve para uns e insuportável para outro. Afirma Cícero: “Os velhos inteligentes, agradáveis e divertidos suportam facilmente a idade, ao passo que a acrimônia, o temperamento triste e a rabugice são deploráveis em qualquer idade”.
Cícero é mordaz e divertido. Quando toca na questão da alardeada perda de memória dos anciões, ele contrapõe: “A memória declina se não a cultivarmos ou se carecemos de vivacidade de espírito. Os velhos sempre se lembram daquilo que interessa: promessas, identidade dos seus credores e devedores, etc”. Permanecer intelectualmente ativo é uma forte recomendação dele. Cícero lembra que Sófocles em idade avançada ainda escrevia suas tragédias. No fim da vida, Sócrates aprendeu a tocar lira. Catão, na velhice, descobriu a literatura grega. “Acaso os adolescentes deveriam lamentar a infância e depois, tendo amadurecido, chorar a adolescência? A vida segue um curso preciso e a natureza dota cada idade de suas qualidades próprias. Por isso, a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo.”
Ler Cícero vale muito mais que qualquer botox.


Paulo Nogueira. in. Diário do Centro do Mundo


sábado, 19 de maio de 2012

Meu vício é você*



Boneca de trapo, pedaço da vida
Que vive perdida no mundo a rolar
Farrapo de gente que inconsciente
Peca só por prazer, vive para pecar

Boneca, eu te quero com todo pecado
Com todos os vícios, com tudo, afinal
Eu quero esse corpo que a plebe deseja
Embora, ele seja prenúncio do mal

Boneca noturna que gosta da lua
Que é fã das estrelas e adora o luar
Que sai pela noite e amanhece na rua
E há muito não sabe o que é luz solar

Boneca vadia de manha e artifícios
Eu quero para mim seu amor, só porque
Aceito seus erros, pecados e vícios
Pois, na minha vida, meu vício é você...

 Nelson Gonçalves. in. Eternamente Nelson, 2010. DVD/Sony BMG

Assista/Ouça no vídeo abaixo:




quinta-feira, 17 de maio de 2012

Freud e a mente humana*



O século XX foi cruel com Freud, embora ele seja considerado uma das maiores "cabeças" do período. É moda dizer que foi refutado e que a maioria das suas "teorias" caiu por terra — apesar de ele ter consagrado a psicanálise. Hoje em dia, lê-se por aí que Freud é mais visto como "filósofo" do que como cientista (Wittgenstein, um filósofo contemporâneo seu, sempre duvidou que houvesse ciência em seus procedimentos). A neurociência chegou para impor suas "verdades"; mas a verdade é que Freud propôs um dos melhores modelos para a "mente humana" de que se tem notícia.

Todo mundo conhece o "id", o "ego" e o "superego". Os três caíram no gosto popular. O id seria o que resta de "animal" em nós ("animal" entre aspas, porque os verdadeiros animais não têm culpa). Michael Kahn, autor de Freud básico (um guia extremamente confiável, lançado recentemente pela editora Record/Civilização Brasileira), compara o "id" ao "monstro" do conto Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O médico e o monstro), de Robert Louis Stevenson. O id quer realizar todos os nossos desejos e não entende que uma recusa ao "prazer momentâneo" pode se converter em "prazer duradouro". Aí entra o ego. 

O ego ou a "consciência" faz a mediação (no jargão futebolístico: o "meio-de-campo") entre o id, insaciável, e o superego. Este último serviria para nos punir e para frear nossos instintos, com base na experiência. Kahn dá um exemplo ótimo: aprendemos, quando crianças, com os nossos pais, que não devemos transgredir certas normas sociais; no início, somos punidos e corrigidos por eles; mais tarde, sua mera presença nos faz lembrar de como devemos nos comportar; com o tempo, incorporamos as lições dos nossos pais em nós, de tal forma que o superego assume o papel de "vigia" dentro da nossa cabeça. 

O superego é aquela voz que nos diz que "alguém pode estar olhando" (como na frase de Mencken). Kahn sugere a imagem de um "porteiro", que decide (como no conto de Kafka) quem deve ou não atravessar a "porta da consciência". Mas o superego pode ser traiçoeiro, crescer demais na vida de uma pessoa e, por meio da "culpa", impedir que ela se desenvolva como ser humano. O superego pode ainda protelar um "desejo" indefinidamente, de modo que ele se transforme em "recalque" — e lá vai o sujeito engrossar o coro dos "recalcados". 

Freud é tomado, junto com Darwin e Marx, como uma das "bestas do apocalipse", porque ajudou a enterrar o que restou de "religiosidade" no século passado. E, realmente, depois de estudar Freud, fica difícil concordar que a "culpa" (como vista, por exemplo, pela igreja católica) possa trazer algum benefício ao indivíduo. Kahn evoca a vida de santos que, para livrar-se de "pensamentos pecaminosos", impunham castigos ao próprio corpo — para eles, a fonte de todo o "mal". Tinham razão; mas, pensando neles, Freud balançaria a cabeça negativamente, como se dissesse: "Tsc, tsc, tsc...". 

Os "desejos" simplesmente existem em nós. Não têm qualquer origem "moral". Brotam junto com os pensamentos e não devem ser tomados como um indício de "má conduta" ou de "mau comportamento". Aqueles santos, que se autoflagelavam, não diferenciavam os seus "atos" das suas "vontades". Para Freud, um dos "custos" da civilização era justamente esse: impor que as últimas não se convertessem nos primeiros — e garantir uma convivência harmônica entre os seres humanos. Contudo, sem a pretensão de querer anular "desejos inconvenientes"; afinal, eles poderiam nos dar pistas para uma das forças mais poderosas que regem a nossa vida: o inconsciente. 

O "inconsciente" não foi uma invenção de Freud, como aponta Kahn. Já existia na obra de poetas; e, justamente, aqueles com melhor acesso ao inconsciente seriam os "artistas". Muitas das nossas motivações ao longo da existência, por mais que as "racionalizemos", emanam do nosso inconsciente. Ele é a chave, por exemplo, para entender por que cometemos sempre os mesmos erros; por que reagimos a determinadas situações de forma semelhante; e, principalmente, por que não superamos certas dificuldades que nos acompanham desde a infância, até a idade adulta. 

Freud, no contato com seus pacientes, descobriu que os "sonhos" eram o melhor caminho para o inconsciente. Através da sua "interpretação", por meio de associações de palavras, curou muita gente da chamada "compulsão à repetição", permitindo que pudessem viver plenamente. Afinal de contas, as relações que construímos desde que somos crianças e adolescentes tendem a se refletir, futuramente, nas ligações que continuaremos a estabelecer em etapas posteriores. Assim, um "trauma" ou um "complexo" mal resolvido pode redundar em problemas, cuja origem, depois, só ficará clara através da sondagem do inconsciente. 

Portanto, é central na obra de Freud o "complexo de Épido". Ele fica claro se tomarmos o caso dos "meninos" mais do que das "meninas". Esses, para completar seu "desenvolvimento psicossexual", precisariam, em algum momento na puberdade, suplantar a figura do "pai" e conquistar a da "mãe". (Aquele que não fosse bem sucedido nesse instante sofreria as conseqüências.) A "conquista" da mãe, para o jovem rapaz, é a prova de que ele pode, posteriormente, conquistar outras garotas e, metaforicamente, "assumir" o lugar do pai (na família que irá constituir depois). Freud acreditava que os homossexuais "falhavam" ao tentar sobrepujar a figura do pai — o que provocaria, neles, uma identificação com o mesmo, de modo que passariam a vida "(re)conquistando" o pai (através de outros homens) e não a mãe. Do mesmo jeito, aquele que "falhasse" ao tentar conquistar a mãe se converteria num "dom juan" — que procuraria, em todas as mulheres que encontrasse, a figura da genitora, para subjugá-la ao final. (Talvez por esse motivo, Freud afirmasse que o "conquistador inveterado" está a um passo do homossexual [vide Lord Byron].) 

Kahn, igualmente terapeuta, narra casos de pacientes que, à medida que o tratamento avançava, "projetavam" nele a imagem do pai ou da mãe. Alguns adotavam uma postura "desconfiada", agindo, em relação a ele, como "filhos rebeldes"; outros formavam um vínculo de tamanha afetividade que terminavam querendo estabelecer relações amorosas. Há, particularmente, no livro, a história de uma moça cujo "corpo" lhe enviava sinais do inconsciente: ela comparecia às sessões cada vez mais arrumada e ansiava por que Kahn a "desejasse", como o pai que não a desejou — a fim de suplantar um "complexo" que a impedia de relacionar-se com rapazes de sua idade. (Uma vez percebido isso, foi desatado o nó que levou à "cura".) 

Freud chamou o fenômeno de "transferência" — e ele é bastante comum até os dias de hoje (vide os filmes de Woody Allen). Como dito anteriormente, a representação do "pai" e da "mãe", junto com os primeiros vínculos que estabelecemos, vão ecoar pela vida afora: na escola, no trabalho, na família, etc. Freud via em toda e qualquer afeição um potencial "erótico". Nas relações familiares inclusive (como o nosso Nélson Rodrigues, aliás), podendo explodir em descargas aparentemente sem sentido, mas segundo um padrão previsto no inconsciente. Não à toa, Freud considerava o amor da "mãe" pelo "filho" um dos mais perfeitos para a mulher — porque ele se realizava sem a consumação carnal (que proporciona sempre tantas frustrações). 

Ainda com relação ao "pai", Freud teve dúvidas ao nomear o "complexo de Édipo". Baseando-se na obra-prima de Sófocles, percebeu que poderia muito bem chamá-lo de "complexo de Laio". Pois, como um dos protagonistas da história, os "pais" se sentiam ameaçados pelos "filhos" recém-chegados e temiam, como efetivamente acontece, que estes tomassem o seu "lugar", usurpando do "rei" o trono. Kahn fala de culturas em que, quando o bebê nasce, o pai é afastado do leito — o que evoca a imagem da "sucessão". Os "pais" então, inconformados com a perda da "posição", e enciumados diante do amor que a mãe naturalmente dedica ao recém-nascido, voltar-se-iam contra os próprios "filhos", em represália. 

Freud e Kahn retornam ao "pai" e à "mãe", ainda uma vez, para discorrer sobre a experiência do luto. Freud achava "positivo" que a perda de um ente querido fosse vivida plenamente. Notava que, em sociedades onde os rituais do luto eram seguidos à risca, os indivíduos superavam mais facilmente a perda. A seu ver, era necessário esgotar as lembranças do ente (por exemplo, em conversas), incorporando, inclusive, hábitos ou mesmo pertences daquele que se foi, num processo denominado "introjeção". Quem não atravessasse a contento a experiência do luto ficaria preso num mundo "irreal", teria problemas para confrontar-se com o "mundo exterior" e não construiria novas relações, no lugar daquela que se rompeu. 

É, em resumo, uma pena que todo o estudo, empreendido por Freud, sobre a natureza humana, atualmente se restrinja a alguns clichês, muitos conceitos equivocados e à firme convicção de que a ciência, definitivamente, o "ultrapassou". A descoberta de Freud (que era muito mais que "sexo" e "charutos") pode ser ainda reveladora, ajudando muita gente — com ou sem terapia — a se conhecer e a viver melhor com suas próprias idiossincrasias. Nesse sentido, Freud básico, de Michael Kahn, apresenta-se como uma bela introdução.


Julio Daio Borges. in. Digestivo Cultural


segunda-feira, 14 de maio de 2012

Invejar é humano, porém... *



A inveja é um afeto sobre o qual costuma-se dizer que é humano como dizemos de tudo o que é errado como reza o ditado. Deste modo, estabelecemos o significado – perigosíssimo – do que é ser humano, como algo imperfeito e passível de falhas. Também derramamos um balde de perdão sobre aquilo que antigamente e de um ponto de vista religioso, chamávamos, pecado. Daí a dizer-se que é preciso ser perdoado por se ser humano, não se precisa de muitos passos. É também lógico, deste momento em diante, considerar que para se ser um ser humano é preciso errar, ou “pecar”. A conseqüência é a curiosa permissão ao erro. Passa-se do “ser errado” ao “dever-ser errado”. O que se conquista com isso, espera-se, é a humanidade. Porém, o contrário também pode ser válido: reduzir a humanidade à minha capacidade de errar. Neste ponto, o conceito de humanidade é que não vale mais nada, pois serve apenas a minha própria incompetência para ser melhor ou como esconderijo para a permissividade.

Mal democrático

A inveja - que já foi pecado no passado, quando a religião aparecia como esfera principal da experiência humana - hoje é apenas erro, pois vivemos numa sociedade secularizada. Que assim seja é bastante mais confortável, até porque atualmente somos capazes de medir a “tão humana” inveja pelos parâmetros do bem e do mal. Fazemos isso porque a inveja é muito comum, tão comum que muitos consideram-na natural. Tão natural que se tornou banal e, como tal, menos grave. Tão comum que, desavisados, podemos considerá-la boa, já que é um afeto democrático, ou seja, um afeto partilhado. E nosso anseio de sermos iguais, mesmo que pelo mal, ganha força. Grande engodo.

A cor da inveja

Fala-se de inveja branca como contrária da inveja má. Quem faz tal diferenciação pode até estar correto se for capaz de perceber o real modo de ser da inveja. Mas o termo é, sem dúvida, inadequado. Toda palavra, deve-se desconfiar, guarda sua história, seu sentido e, a cada vez que é pronunciada ou escrita, aciona sua função. É preciso fazer uma correção inicial e urgente: uma inveja boa, a rigor, já não seria inveja. Muito menos porque eu a admito ela seria melhor. Admitir que se fez algo errado é bom, mas não torna o erro melhor.

Foi Santo Agostinho, o filósofo da Patrística que, no terceiro século da idade média, percebeu pela primeira vez a conexão da inveja com a constituição primeira do ser humano. No famoso texto dasConfissões ele narra sua dúvida sobre a inocência das crianças que, primeiro anseiam pelos peitos de sua mãe e, logo maiores, ao verem o irmão pequeno que os possui, sentem inveja. A partir daí Santo Agostinho explicou sua conversão e fundou uma ética, a de que todo homem de bem deveria ser santo e, portanto, eliminar de si, com consciência e lucidez, um afeto negativo como este, mesmo que ele faça parte da constituição mais íntima do humano.

Santo Agostinho elaborou uma frase que informa sobre o significado menos banal da inveja: Video, sed non invideo, ou seja, vejo, mas não in-vejo. A inveja tem nexo com o ver. Se vejo, posso invejar. Se vejo, devo não in-vejar. Ver e não invejar seria o mérito daquele que vê. Ora, a inveja nasce do desejo de se ter o que o outro tem e, como quase dez séculos mais tarde disse Santo Tomás, é a tristeza que advém da felicidade do próximo. O in-vejoso tem uma espécie de olho grande, um “olho gordo”, mau, para tudo o que cabe a outrem. Tudo o que não se refere a ele.

Para Santo Tomas, a inveja é a mãe de diversos outros afetos terríveis com o ódio e filha da soberba que é a incapacidade de julgar-se igual aos demais por considerar-se melhor que eles. Ela nunca é boa, pois, nascida de um afeto mau ela produz ações destrutivas: a maledicência, a competitividade, a falta de caridade, ou seja, de amor ao próximo. Em seu lugar fica o amor doentio de si, a que chamamos narcisismo.

Invejar é ressentir

Como muitos de nossos afetos negativos, a inveja está associada ao ressentimento. Desde a antiguidade de Agostinho se diz que aquele que inveja é como uma traça que rói as vestes como quem destrói o amor. Ela age ocultamente. Seu silêncio de ressentido não é inerte. Revela-se em suas falas e ações destrutivas mergulhadas no ódio ao outro. Mas de quem seria a responsabilidade por um tal afeto?

Rói-se de inveja, sempre em silêncio e fingindo não sentir nada, aquele que não consegue esquecer. Mas esquecer o quê? A visão de seu lugar ocupado por outrem. É como a criança que guarda a mágoa de ter sido preterida pela mãe que precisava dar atenção ao irmão mais novo. O que o pequeno Agostinho da narrativa sentia, não era apenas o desejo do seio que lhe tinha sido afastado, mas a perda da centralidade que o seio lhe dava. Aquele que não souber ver com bons olhos, o que equivale a partilhar o amor com seu irmão, não saberá ser amigo. O invejoso, em geral, não tem amigos, ele quer o seio só para si.

Inveja boa sem inveja?

A inveja superada chama-se desejo. O desejo é o contrário do egoísmo. O desejo tem algo em comum com a inveja, pois também envolve um olhar e um querer dele advindo. Porém, enquanto a inveja é sinuosa e oculta sua ação sobre a passividade aparente, o desejo é direto. O desejo não engana nunca.

 
Marcia Tiburi. in. Revista Vida Simples. Dezembro de 2006. Ed. 48. pp. 50-51.



Perversão*


A perversão é uma das três grandes estruturas da psicopatologia psicanalítica. Ao lado da psicose e da neurose, ela representa um tipo específico de subjetividade, desejo e fantasia. Comparativamente, seu diagnóstico é mais difícil e controverso: consideram-se a extensão e variedade de seus sintomas, bem como sua alta suscetibilidade à dimensão política. Nas perversões podemos incluir aproximativamente três subgrupos: as perversões sexuais, as personalidades antissociais e os tipos impulsivos. Essa subdivisão é problemática e apenas descritiva, pois cruza categorias originadas em diferentes tradições clínicas.

Devemos distinguir uma perversão ordinária de uma perversão extraordinária, representada pelos “tipos concentrados” com os quais a perversão foi historicamente associada, para, em seguida, ser excluída, silenciada e expulsa da condição humana. Aquela que seria a forma mais forte de perversão, como confronto e desafio à lei, é, na verdade, expressão de um tipo coletivo de exagero da lei, baseado na atração pela forma, desligada e deslocada de seu conteúdo.

“Perversão”, assim, seria o nome para o que nos desperta indignação. Mas, porque o estado social “normal” não representa necessariamente o bem ético, torna-se difícil pensar a perversão de modo simples. A anomalia que nega a norma pode ser um desvio progressivo, útil ou benéfico. Além disso, mesmo a dissociação entre a norma e seu oposto, entre real e ideal, entre o bem e o mal, é justamente uma das características da perversão.

Tipologia da perversão

Isso posto, há três famílias principais da perversão. A primeira refere-se ao exagero ou à diminuição de algo, que, sob justa medida, seria tolerável e até mesmo desejável. O perverso, assim, estereotipa um comportamento, fixa-se em um modo de estar com o outro e de orientar sua satisfação. Tome-se o exemplo de um sujeito que, para encontrar satisfação sexual, deve empregar adereços como calcinhas, vestir-se com roupas do sexo oposto, admirar partes específicas do corpo do parceiro ou manipulá-las de modo bizarro. Tudo isso, sem “exagero”, seria parte admissível de um encontro sexual, mas, quando sua presença torna-se coercitiva, necessária e condicional, percebemos que há uma espécie de excesso. A parte toma conta do todo.

A segunda família de perversões decorre da idéia de desvio. Trata-se aqui da metáfora da vida como um caminho, no qual o perverso “toma um atalho” ou elege para si “outra via”. Ele se desgarra dos outros, torna-se alguém fora da ordem, fora do lugar adequado. Curiosamente, essa negação da “norma” funciona como reafirmação de sua força. Se a primeira perversão é definida pelo traço de exagero, a ideia central do segundo tipo é a de deslocamento, inversão e dissociação.

A terceira classe de perversão é formada pelos que marcam seu compromisso com a transgressão, com a violação da lei, da moral ou dos costumes. Essa transgressão não é efeito secundário, mas decorre da identificação do sujeito com a lei. Alude-se aqui à lei materna (em oposição à lei paterna) para designar essa relação de passividade radical e de disposição soberana sobre o corpo do outro. Apesar da extrema variedade histórica e antropológica, há duas maneiras básicas de perversão da lei: afirmá-la por meio de uma negação ou negá-la por meio de uma afirmação.

Perversão e lei

No primeiro caso, a lei está escrita em alguma parte, intérpretes confiáveis e executores fiéis. Dessa perspectiva, exagera-se o caráter formal da lei, de maneira que sua execução deixe de aparecer como efeito de agentes empíricos dotados de sensibilidade. Ou seja, cria-se uma exceção à lei dentro da lei. Não importa se o modo de relação com o objeto é contrário à lei social instituída (como a pedofilia ou o assassinato do parceiro sexual); se ele é indiferente a essa lei (como o sujeito que obrigatoriamente deve “tatuar” sua parceira com uma caneta Bic durante o intercurso sexual para encontrar orgasmo); ou se ele é parasitário da lei socialmente instituída (como no filme O Cheiro do Ralo, no qual o fetiche do cheiro se especifica como traço adicional nas relações de compra e venda de objetos). O importante é que, do ponto de vista do sujeito, afirma-se a lei para negá-la.

A segunda forma de perversão da lei aparece quando o sujeito nega a lei para afirmá-la em outro nível. A satisfação não decorre de uma “falsa submissão a uma falsa lei”, mas da elevação do sujeito à condição de autor da lei.Esse é o caso dos que se identificam com o objeto para causar angústia no outro, ou seja, para dividir o outro e assim fugir à sua própria divisão. São as chamadas personalidades psicopáticas, hoje personalidades antissociais, nas quais predomina o sadismo: nego a lei socialmente compartilhada para afirmar uma lei maior, cuja enunciação está em minhas mãos.

A questão se complica se observamos que a lei considerada como fato positivo para a definição de perversão não é apenas a lei como ordenamento jurídico, nem a lei como conjunto de costumes, mas a lei que, a cada momento, é a pré-condição que orienta nossa escolhas, juízos e desejos. Mesmo que ela não esteja escrita nem encontre corpo em um código formal ou informal, essa lei está pressuposta a cada vez que agimos. O problema da perversão torna-se mais interessante se observarmos que a lei que orienta a vida desejante do sujeito, a partir de seu inconsciente, não é outra que uma versão da lei social corrente, institutiva das relações de autoridade e pertinência, de ordem e de poder, de família e de Estado. Uma é versão da outra, uma père-version (versão do pai) como diria Lacan (psicanalista francês, 1901-1981).

A matriz das perversões

A psicanálise chama de supereu essa lei interna ou essa voz que interdita certos tipos de satisfação, obrigando a outros. O supereu é a matriz ordinária de nossas perversões particulares e, ao mesmo tempo, a língua na qual expressamos e somos expressos pela lei social. Segundo essa tese, nossa consciência crítica, tida por muitos como a maior realização da razão humana, é ao mesmo tempo um olhar no qual nos aprisionamos, a voz do exagero e engrandecimento (das exigências, dos ideais e das expectativas normativas) e o núcleo de nossa satisfação e de nossa culpa em transgredir.

Por exemplo, vibrar em êxtase vendo um formigueiro pegar fogo não é um ato ilegal, mas sugere um tipo de gozo associado com a perversão. Qualquer criança explora esse tipo de satisfação, até que seus pais a convidem à seguinte “inversão de perspectiva”: “Imagine se você fosse uma formiga? Iria gostar de ver a casa pegar fogo?”. Esse tipo de inversão faz com que abandonemos uma gramática da satisfação – nesse caso o sadomasoquismo – em prol de outra. Cada um de nós possui uma história composta de gramáticas como estas: exibicionismo e voyeurismo, heterossexualidade e homossexualidade, feminilidade e masculinidade. Há gramáticas pulsionais mais simples, tais como ingerir e expelir, dar e receber, bater e apanhar, e há gramáticas mais complexas e mais abrangentes tais como ser e ter ou aceitar ou recusar.

Contudo, a tese psicanalítica é a de que a sexualidade infantil possui a característica de ser perversa, por explorar, exagerar e transgredir os diferentes modos de satisfação, e de ser polimorfa, por admitir muitas formas, plásticas e mutáveis.  A perversão no adulto diferencia-se disso por seu caráter de fixidez (uniforme) e pela função subjetiva de desautorização da lei. Assim, a perversão não é só uma questão de infração procedimental da lei, mas refere-se ao tipo de intenção (ou de desejo), ao modo como nos colocamos, e situamos o outro, diante do que fazemos.

É nesse ponto que a definição popular de perversão argumentará que ela ocorre justamente por falta de sentimentos morais como a culpa, a vergonha e o nojo. Daí a ausência de arrependimento, de reparação e de consideração pelo outro que historicamente fez dos perversos os ícones da maldade. Eles não apenas praticam o mal, mas, principalmente, gostam de fazer mal aos outros, especialmente quando se comprazem em causar angústia, terror e tortura. Ora, o que acontece aqui não é a ausência de supereu, que poderia ser curada com a administração massiva da lei,  mas a construção de uma espécie de supereu ampliado, como se algumas de suas funções fossem experienciadas, de modo deslocado, fora do sujeito, ou seja, no seu infeliz e circunstancial parceiro.

Perversão e experiência comum

Os mais diferentes e insólitos tipos de satisfação estão presentes em todos nós, de forma atenuada, disfarçada ou restrita. Não é pela ausência ou presença dessas tendências que podemos definir a perversão. Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos. O problema para definir a perversão, nesse sentido, é que temos de resolver o chamado paradoxo ético do ato. Não basta saber se ele é conforme ou contrário à lei, mas saber qual tipo de experiência ele produz em quem o realiza e o tipo de posição que ele confere ao outro.

Há vários exemplos de como o gozo, ou seja, o tipo de satisfação ordenado pelo supereu constitui uma perversão particular e ao mesmo tempo um fator político incontornável. Há, por exemplo, um fascínio espontâneo por aquele que se coloca no lugar de supereu.  A atração exercida por líderes e “celebridades”, assim como pelos sistemas totalitários, sejam eles nações, instituições, corporações ou mesmo empresas e grupos, baseia-se neste sentimento de que eles expressam em exterioridade nossa própria relação perversa com a lei. Diante disso, estaremos voluntariamente dispostos a servir como instrumento do gozo do outro, posto que ele é o meio pelo qual posso ter acesso deslocado à minha própria fantasia, exagerada pelo fato de ser vivida em massa. Isso tudo sem o ônus da culpa e do risco que estariam em jogo se eu me dispusesse a realizá-la por meios próprios.

A chave para entender esse tipo de perversão ordinária está na dissociação e na simplificação produzidas pela montagem da fantasia. Dissociação e simplificação encontradas na principal expressão sintomática da perversão, a saber, o fetiche, ou seja, esta propriedade ou esta função que permite transformar outro em objeto inanimado (meio de gozo para meus fins) e reversamente o objeto em outro animado (fim para o qual todos os meios se justificam). Em acordo com a regra perversa da inversão, o fetiche é a condição básica a que todo objeto deve atender para tonar-se viável no universo de consumo. Para funcionar como tal, ele deve conseguir dissociar seu potencial de ilusão, por um lado, de seu efeito de decepção, por outro. Não é um acaso que Karl Marx (1818-1883) tenha descrito a economia capitalista baseando-se no fetiche da mercadoria.

Outro exemplo de montagem perversa são os sistemas e dispositivos burocráticos responsáveis pela judicialização da vida cotidiana. A burocracia é uma forma regrada e metódica de produzir anonimato e álibi para nosso desejo e, portanto, para confirmar a máxima perversa de que “o outro deseja, mas segundo a lei que eu determino”. Nessa medida, há tanta perversão nos excessos alimentares – no bulímico e no anoréxico – quanto no discurso de vigilância sanitária sobre nossa alimentação, para não falar do exibicionismo de uma infância sexualizada pela moda, o voyeurismo de nossos reality shows, a estética pornográfica de nossas produções culturais, o sadismo de nossos programas de violência ao vivo, o masoquismo do trabalho e da “vida corporativa”, o descompromisso “líquido” de nossa vida amorosa, a cultura da drogadição (legal e ilegal), e tantos fenômenos que costumam ser reunidos sob a hipótese da perversão generalizada. Ao contrário da perversão clássica, a perversão ordinária de nossos tempos é uma perversão flexível, silenciosa e pragmática. Ela não se mostra como experiência “fora da lei”, que convidaria a ajustar as contas com os limites de nossa própria liberdade, mas, ao contrário, é mais perniciosa, pois reafirma nossa realidade assim como ela é.

As articulações que constituem a perversão, tais como a transgressão, a exageração e a dissociação, tornaram-se aspectos decisivos de nosso laço social ordinário.  Bem-vindos à perversão nossa de cada dia.


 Christian Ingo Lenz Dunker. in. Revista Cult


sexta-feira, 11 de maio de 2012

para uma nova gramática*


imagine um sentimento água. um sentimento árvore.
uma agonia vidro. uma emoção céu. uma espera pedra.
um amor manga. um colorido vento sul. um jeito casa
de ser. uma forma líquida de pensar. uma vida paredes.
uma existência mar. uma solidão cordilheira. uma alegria pássaro em chuva fina.
uma perda corpo.

acho que hoje acordei semente. tenho andado muito
temporal. minha irmã vive um momento tudo. a vida
às vezes transborda pelos poros. me atinge um estado
livro. aurora em meus joelhos. tem pessoas ponte.
algumas carregam a gravidade nas costas. já conheci
gente buraco negro. eu amo o instante limo. tem um
branco
em mim. a vida me urca. sofro de saudade anônima.
palavras me beijam a boca.

Viviane Mosé. in. Pensamento Chão. Ed. Sete Letras, 2001.

Cativar amizades*



E foi então que apareceu a raposa:

- Bom dia – disse a raposa.
- Bom dia – respondeu educadamente o pequeno príncipe, que, olhando a sua volta, nada viu.
- Eu estou aqui – disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? – perguntou o principezinho. – Tu és bem bonita...
- Sou uma raposa – disse a raposa.
- Vem brincar comigo – propôs ele. – Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo – disse a raposa. – Não me cativaram ainda.
- Ah ! desculpa – disse o principezinho.
Mas, após refletir, acrescentou:
- Que quer dizer “cativar”?
- Tu não és daqui – disse a raposa. – Que procuras?
- Procuro os homens – disse o pequeno príncipe. – Que quer dizer “cativar”?
- Os homens – disse a raposa – têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante. Tu procuras galinhas?
- Não – disse o príncipe. – Eu procuro amigos. Que quer dizer “cativar”?
- É algo quase sempre esquecido – disse a raposa. – Significa “criar laços”...
- Criar laços?
- Exatamente – disse a raposa. – Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender – disse o pequeno príncipe. – Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
- É possível – disse a raposa. – Vê-se tanta coisa na Terra...
- Oh! Não foi na Terra – disse o principezinho.
A raposa pareceu intrigada:
- Num outro planeta?
- Sim.
- Há caçadores nesse planeta?
- Não.
- Que bom! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito – suspirou a raposa.
Mas a raposa retornou o seu raciocínio.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens também. E isso me incomoda um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. Os teus me chamarão para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim não vale nada. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e observou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! – disse ela.
- Eu até gostaria – disse o principezinho –, mas não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou – disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já pronto nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!
– Que é preciso fazer? – perguntou o pequeno príncipe.
– É preciso ser paciente – respondeu a raposa. – Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás um pouco mais perto...
No dia seguinte o príncipe voltou.
- Teria sido melhor se voltasses à mesma hora – disse a raposa. – Se tu vens, por exemplo, às quatros da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mas eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!
Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar meu coração... É preciso que haja um ritual.
– Que é um “ritual”? – perguntou o principezinho.
– É uma coisa muita esquecida também – disse a raposa. – É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, adotam um ritual. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira é então o dia maravilhoso! Vou passear até à vinha. Se os caçadores dançassem em qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu nunca teria férias!

Assim o pequeno príncipe cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua – disse o principezinho. – Eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis – disse a raposa.
- Mas tua vais chorar! – disse ele.
- Vou – disse a raposa.
- Então, não terás ganho nada!
- Terei, sim – disse a raposa – por causa da cor do trigo. Depois ela acrescentou:
- Se tu vens, por exemplo, às quatros da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz!


Antoine de Saint-Exupéry. in. O Pequeno Príncipe. Ed. Nova Fronteira, 2006, pp.64-69.


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