sexta-feira, 28 de junho de 2013

O fardo dos dias*

Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quadro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa”, isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou restabelecimento.

*Albert Camus in. “O Mito de Sísifo”. Ed. Record, 2010, p.27.
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Colheita, c.1880.
Julien Dupré, 1851-1910.




quarta-feira, 26 de junho de 2013

Oriente & Ocidente*

_______O Mundo nunca esteve tão pequeno como agora. O atual estágio de desenvolvimento das novas mídias de massa seguramente contribuiu para aproximar cada vez mais o homem “Ocidental” comum do homem “Oriental” comum. Uma batalha se trava em torno do controle material e simbólico da realidade. Mas o que são o “Ocidente” e o “Oriente” senão entidades geográficas e históricas construídas por densa carga discursiva e simbólica? Segundo Edward Said,

“(...) o Oriente não é um fato inerte da natureza. Ele não está meramente “ali”, assim como o próprio Ocidente tampouco está apenas “ali”. Devemos levar a sério a grande observação de Vico de que os homens fazem a sua história, de que só podem conhecer o que eles mesmos fizeram, e estendê-la à geografia: como entidades geográficas e culturais – para não falar de entidades históricas – , tais lugares, regiões, setores geográficos, como “Oriente” e o “Ocidente”, são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto, sustenta e, em certa medida, refletem uma à outra.”

Edward W. Said in. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Ed. Companhia das Letras, 2007, p.31.

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Make-up: Gene Ginno Alducente.
Photo: Tina Patni.


domingo, 16 de junho de 2013

Globalização, Bobalização*



Nesta civilização onde as coisas importam cada vez mais e as pessoas cada vez menos, os fins foram seqüestrados pelos meios: as coisas te compram, o automóvel te governa, o computador te programa, a Tv te vê. (...) As coisas têm atributos humanos, acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura de consumo fez da sociedade o mais lucrativo dos mercados. Os dolorosos vazios do peito são preenchidos com coisas ou com o sonho de possuí-las. E as coisas não se limitam a abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário. (...) Dizes-me quanto [e o quê] consomes, dir-te-ei quanto vales. (...).

*Eduardo Galeano in. “De Pernas pro Ar: a escola do mundo ao avesso”. Ed. l&pm, 2011, pp. 255-277.

A impunidade do sagrado motor*


Os direitos humanos se humilham aos pés dos direitos das máquinas. São cada vez mais numerosas as cidades, sobretudo cidades do sul, onde as pessoas são proibidas. Impunemente, os automóveis usurpam o espaço humano, envenenam o ar e, frequentemente, assassinam os intrusos que invadem seu território conquistado. Qual a diferença entre a violência que mata com motor e a violência que mata com faca ou bala? (...) A caçada aos que caminham integra as rotinas da vida cotidiana nas grandes cidades latino-americanas, onde a armadura de quatro rodas estimula a tradicional prepotência dos que mandam e dos que agem como se mandassem. A carteira de motorista equivale ao porte de arma e dá permissão para matar. Há cada vez mais energúmenos dispostos a esmagar quem lhes atravesse o caminho. Nestes últimos tempos, tempos de histeria da insegurança, à impune truculência sobre rodas soma-se o pânico dos assaltos e dos seqüestros. Torna-se cada vez mais perigoso, e cada vez menos freqüente, parar o carro diante da luz vermelha da sinaleira: em algumas cidades, a luz vermelha é como uma ordem de aceleração. As minorias privilegiadas, condenadas ao medo perpétuo, pisam no acelerador para fugir da realidade, e a realidade é essa coisa muito perigosa que espreita do outro lado dos vidros fechados do automóvel.


*Eduardo Galeano in. “De Pernas pro Ar: a escola do mundo ao avesso”. Ed. l&pm, 2011, pp. 237-250.

domingo, 9 de junho de 2013

Em tempos de copa*


Para a maior parte da humanidade hoje, onze homens jovens num campo de futebol é que personificam “o país”, o Estado, “o nosso povo”, e não os políticos, as constituições e as movimentações militares. Aparentemente, esses times nacionais são compostos de cidadãos nacionais. Mas todos nós sabemos que esses milionários dos esportes aparecem num contexto nacional apenas alguns dias por ano. Em sua principal ocupação, eles são mercenários transnacionais, regiamente pagos, quase todos a serviço de outros países. Os times aclamados a cada dia por um público nacional são montagens heterogêneas que só Deus sabe quantos países e raças, em outras palavras, daqueles que são reconhecidos como os melhores jogadores do mundo. Na maioria dos clubes nacionais bem-sucedidos há, por vezes, não mais que dois ou três jogadores nativos. Isso é lógico mesmo para torcedores racistas, pois o que eles querem acima de tudo é um clube vitorioso, ainda que não mais racialmente puro.


*Eric Hobsbawm in. “Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX”. Ed. Companhia das Letras, 2013, p. 52.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Os intelectuais: papel, função e paradoxo*


Sartre e Foucault em meio aos protestos de maio de 68

O “breve século XX” de revoluções e guerras de religião ideológica tornar-se-ia a era característica do engajamento político dos intelectuais. Eles não só defendiam suas próprias causas na época do antifascismo e depois do socialismo de Estado, mas também eram vistos dos dois lados como reconhecidos pesos pesados do intelecto.  Seu período de glória estendeu-se do fim da Segunda Guerra Mundial ao colapso do comunismo. Foi essa a grande época das mobilizações contra alguma coisa: contra a guerra nuclear, contra as últimas guerras imperiais da velha Europa e as primeiras do novo império mundial americano (Argélia, Suez, Cuba, Vietnã), contra o stalinismo, contra a invasão soviética da Hungria e da Tchecoslováquia, e assim por diante. Os intelectuais formavam a linha de frente de quase todas.

(...) Essa era do intelectual como principal face pública de oposição política recuou para o passado. Onde estão os grandes promotores de campanhas e signatários de manifestos? Com poucas e raras exceções, mais notavelmente o americano Noam Chomsky, estão calados ou mortos. Onde estão os celebrados maîtres à penser da França, os sucessores de Sartre, Marelau-Ponty, Camus e Raymond Aron, de Foucault, Althusser, Derrida e Bourdieu? Os ideólogos do fim do século XX preferiram abandonar a tarefa de buscar a razão e a mudança social, deixando-a para as operações automáticas de um mundo de indivíduos puramente racionais, supostamente maximizando seus benefícios através de um mercado que opera racionalmente e tem uma tendência natural, quando livre de interferência externa, a alcançar um equilíbrio duradouro. Numa sociedade de incessante entretenimento de massa, os ativistas agora acham os intelectuais menos úteis como fonte de inspiração duradoura de causas do que roqueiros e astros de cinema mundialmente famosos. Os filósofos já não têm condições de competir com Bono ou Eno, a não ser que se reclassifiquem como essa nova figura do novo mundo do espetáculo midiático – a “celebridade”. Vivemos uma nova era, ao menos até que o ruído universal de autoexpressão do Facebook e os ideais igualitários da internet produzam seu pleno efeito público.

O declínio dos grandes intelectuais protestativos deve-se, portanto, não apenas ao fim da Guerra Fria, mas à despolitização de cidadãos ocidentais num período de crescimento econômico e ao triunfo da sociedade de consumo. O trajeto que vai do ideal democrático da ágora ateniense às irresistíveis tentações de shopping center reduziu o espaço disponível para a grande força demoníaca dos séculos XIX e XX: a saber, a crença em que a ação política era o jeito de aperfeiçoar o mundo. A rigor, o objetivo da globalização neoliberal era precisamente reduzir o tamanho, o escopo e as intervenções públicas do Estado. Nisso, foi parcialmente bem-sucedida.


*Eric Hobsbawm in. “Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX”. Ed. Companhia das Letras, 2013, pp. 230-231.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Tempos Fraturados*

[no século xx] a combinação de tecnologias novas e consumo de massa não só criou o cenário cultural geral em que vivemos, mas também deu origem a sua melhor e mais original realização artística: o cinema. Vem daí a hegemonia dos Estados Unidos democratizados na aldeia global do século xx, sua originalidade nas formas de criação artística – literária, musical, teatral, misturando as tradições eruditas e subalternas –, mas também a escala do seu poder de corromper. O desenvolvimento de sociedades nas quais uma economia tecnoindustrializada imerge nossa vida em experiências universais, constantes e onipresentes de informação e produção cultural – de som, imagem, palavra, memória e símbolos – é, historicamente, inédito. Transformou totalmente nossa maneira de apreender a realidade e a produção de arte, sobretudo acabando com o tradicional status privilegiado das “artes” na velha sociedade burguesa, quer dizer, sua função como medida do que é bom e do que é ruim, como transmissoras de valores: verdade, beleza e catarse.

*Eric Hobsbawm in. “Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX”. Ed. Companhia das Letras, 2013, p. 14.

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Elvis I and II , c. 1963.
Andy Warhol, 1928 – 1987.



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