quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Nos destinos da fronteira*



Num dia, há vida. Um homem, por exemplo, em perfeita saúde, nem sequer é velho, sem nenhum histórico de doenças. Tudo é como era, e sempre será. Ele segue de um dia para o outro, cuidando das suas coisas, sonhando apenas com a vida que se estende à sua frente. E então, de repente, acontece que há morte. Um homem solta um pequeno suspiro, tomba da cadeira, e é a morte. O inesperado da coisa não deixa espaço para nenhum pensamento, não dá nenhuma chance para a mente procurar uma palavra capaz de consolar. Somos deixados sem nada a não ser a morte, o fato irredutível de nossa própria mortalidade. A morte após uma longa doença é algo que poderíamos aceitar com alguma resignação. Mesmo a morte acidental podemos atribuir ao destino. Mas um homem morrer sem nenhuma causa aparente, um homem morrer apenas porque é um homem, nos leva para tão perto da fronteira invisível entre a vida e a morte que não sabemos mais de que lado estamos. A vida se transforma em morte e é como se essa morte tivesse possuído essa vida o tempo todo. Morte sem aviso. Em outras palavras: a vida pára. E pode parar a qualquer momento.


Paul Auster in. “A Invenção da Solidão”. Ed. Companhia das Letras, 1999, p. 11.

Noventa anos sem Lima Barreto*


No dia 1º de novembro de 1922 o Brasil perdia um dos seus maiores escritores. Morria aos 41 anos de idade, na Rua Major Mascarenhas, nº 46, no bairro de Todos os Santos, subúrbio do Rio de Janeiro, o romancista e jornalista Afonso Henriques de Lima Barreto. Coincidentemente, era dia de Todos os Santos. Lima Barreto morreu na sua modesta residência, que ele tinha o costume de chamar de “Vila Quilombo” para contrapor ao bairro de Copacabana.
Oriundo de uma família humilde, Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio de 1881, na cidade do Rio de Janeiro. Quando completou sete anos, no ano de 1888, acompanhou atento as festividades em comemoração à libertação dos escravos. Mal sabia ele que passaria por muitos reveses por conta de sua cor, pois, como era mulato, muito cedo saberia que esta condição seria a razão do preconceito que sofreria na sua trajetória.
Lima Barreto ingressou no jornalismo profissional em 1905, no jornal Correio da Manhã, produzindo diversas reportagens. Apesar da morte prematura, foi na literatura que o escritor deixou a sua marca conhecida: o embate com os donos do poder. A estreia como escritor ocorreu em 1909, com o livro As Recordações do Escrivão Isaias Caminha, obra que denunciava o papel da grande imprensa na estrutura do poder e os bastidores da redação de um grande jornal da época. O livro abordou o mundo das notícias manipuladas, os elogios encomendados, as projeções dos falsos heróis e as bajulações dos poderosos e revelou ainda o visível preconceito contra os negros na sociedade brasileira.

“É triste não ser branco”

Combativo em denunciar as mazelas sociais e o racismo no país. Assim era Lima Barreto. Passados noventa anos de sua ausência, muitos foram os avanços na luta contra a “engenhosa artimanha” do racismo brasileiro que se mostra persistente, dissimulado, hipócrita e cínico, adjetivos que o tornam, até os dias de hoje, difícil de ser combatido.
Apesar dos esforços da grande imprensa, que tem atuado como tropa de choque na defesa do status quo do grupo que sempre se beneficiou com a marginalização e exclusão dos negros no processo de distribuição da renda no país, o Estado brasileiro, reconhecendo que há racismo de fato, vem implementando políticas de ações afirmativas voltadas, particularmente, para a inclusão da população negra. Essas políticas, ainda que tardias, visam a concluir um processo que se iniciou com o testemunho de Lima Barreto em 13 de maio de 1888 e que só agora tem sua continuidade. Em 1888, o Estado brasileiro não concedeu aos negros o direito à cidadania brasileira.

A negação dessa cidadania encontra explicação no desabafo de Lima Barreto em seu Diário íntimo: “É triste não ser branco.”

***
Júlio Ribeiro Xavier in. Observatório da Imprensa

domingo, 21 de outubro de 2012

Diário de uma mulher carente*


Lista Original:
Eu quero um homem que...
1. Seja lindo,
2. Encantador,
3. Financeiramente estável,
4. Um bom ouvinte,
5. Divertido,
6. Em boa forma física,
7. Se vista bem,
8. Aprecie as coisas mais finas,
9. Faça muitas surpresas agradáveis,
10. Seja um amante criativo e romântico.
Lista Revisada aos 32 Anos 
Eu quero um homem que... 
1. Seja bonitinho,
2. Abra a porta do carro
3 Tenha dinheiro suficiente para jantar fora com certa frequência
4. Ouça mais do que fale,
5. Ria das minhas piadas,
6. Carregue as sacolas do mercado com facilidade,
7. Tenha no mínimo uma gravata,
8. Lembre de aniversários e datas especiais,
9. Procure romance pelo menos uma vez por semana.
Lista Revisada aos 42 Anos 
Eu quero um homem que...
1. Não seja muito feio,
2. Espere eu me sentar no carro antes de começar a acelerar,
3. Tenha um emprego fixo
4. Balance a cabeça enquanto eu falo,
5. Esteja em forma ao menos para mudar a mobília de lugar,
6. Use camisetas que cubram sua barriga, 
7. Não compre cidra achando que é champagne,
8. Se lembre de abaixar a tampa da privada
Lista Revisada aos 52 Anos 
Eu quero um homem que... 
1. Corte os pelos do nariz e das orelhas,
2. Não coce o saco nem cuspa em público,
3. Não sustente as irmãs, nem as filhas do primeiro casamento
4. Não balance a cabeça até dormir enquanto eu estou reclamando,
5. Não conte a mesma piada o tempo todo.
Lista Revisada aos 62 Anos 
Eu quero um homem que... 
1. Não assuste as crianças pequenas,
2. Ronque bem baixinho quando dorme, 
3. Esteja em forma suficiente para ficar de pé sozinho,
4. Use cueca e meias limpas
Lista Revisada aos 72 Anos 
Eu quero um homem que... 
1. Respire,
2. Lembre onde deixou seus dentes
Lista Revisada aos 88 Anos 
Eu quero um homem que... 
1. O que é um homem, mesmo?

Como matar uma barata*



1 - Um pouco de sal.
2 - Uma tampa de garrafa
3 - Um pouco de cachaça
4 - Um palito
5 - Uma pedrinha


O esquema é montado da seguinte maneira:
1) Coloque o sal no caminho das baratas;
2) Ponha a tampa de garrafa ao lado do sal:
3) Encha a tampa de garrafa com cachaça;
4) Ponha o palito próximo a tampa de garrafa e perpendicular à direção axial da tampa; e
5) Ponha a pedrinha atrás do palito.
O processo é simples:
- A barata vai ver o sal e comerá pensando que é açúcar.
- Vai sentir sede e então vai tomar a cachaça pensando que é água.
- Vai ficar bêbada e tropeçará no palito, e, por fim, baterá a cabeça na pedra e morrerá de traumatismo craniano.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Só uma mulher sabe acabar uma história de amor*



Vejo aqui, em reportagem de Isabela Barros para o UOL, respeitáveis especialistas, gente da USP etc, tratando da dificuldade que o macho tem para terminar as  relações.

E ponha dificuldade nisso. E bote enrolação e nove-horas.

É isso mesmo. Homem é frouxo, só usa vírgula, no máximo um ponto e virgula; jamais um ponto final.

Sim,  o amor acaba, como sentenciou a mais bela das crônicas de Paulo Mendes Campos: “Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar…”

Acaba, mas só as mulheres têm a coragem de pingar o ponto da caneta-tinteiro do amor. E pronto. Às vezes com três exclamações, como nas manchetes sangrentas de antigamente.

Sem reticências…

Mesmo, em algumas ocasiões, contra a vontade. Sábias, sabem que não faz sentido  prorrogação, os pênaltis, deixar o destino decidir na morte súbita.

O homem até cria motivos a mais para que a mulher diga basta, chega, é o fim!!!

O macho pode até sair para comprar cigarro na esquina e nunca mais voltar. E sair por ai dando baforadas aflitas no king-size do abandono, no Continental sem filtro da covardia e do desamor.

Mulher se acaba, mas diz na lata, sem metáforas.

Melhor mesmo para os dois lados, é que haja o maior barraco. Um quebra-quebra miserável, celular contra a parede, controle remoto no teto, óculos na maré, acusações mútuas, o diabo-a-quatro.

O amor, se é amor, não se acaba de forma civilizada.

Nem no Crato…nem na Suécia.

Se ama de verdade, nem o mais frio dos esquimós consegue escrever o “the end” sem uma quebradeira monstruosa.

Fim de amor sem baixarias é o atestado, com reconhecimento de firma e carimbo do cartório, de que o amor ali não mais estava.

O mais frio, o mais “cool” dos ingleses estrebucha e fura o disco dos Smiths, I Am Human, sim, demasiadamente humano esse barraco sem fim.

O que não pode é sair por ai assobiando, camisa aberta, relax, chutando as tampinhas da indiferença para dentro dos bueiros das calçadas e do tempo.

O fim do amor exige uma viuvez, um luto, não pode simplesmente pular o muro do reino da Carençolândia para exilar-se, com mala e cuia, com a primeira criatura ou com o primeiro traste que aparece pela frente.



O Perigo de uma história única*


Eu sou uma contadora de histórias e gostaria de contar a vocês algumas histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar “o perigo de uma história única”.
Eu cresci num campus universitário no leste da Nigéria. Minha mãe diz que eu comecei a ler com 2 anos, mas eu acho que 4 é provavelmente mais próximo da verdade.
Então, eu fui uma leitora precoce. E o que eu lia eram livros infantis britânicos e americanos. Eu fui também uma escritora precoce. E quando comecei a escrever, por volta dos 7 anos, histórias com ilustrações em giz de cera, que minha pobre mãe era obrigada a ler, eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maçãs. E eles falavam muito sobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido. Agora, apesar do fato que eu morava na Nigéria. Eu nunca havia estado fora da Nigéria. Nós não tínhamos neve, nós comíamos mangas. E nós nunca falávamos sobre o tempo porque não era necessário.
Meus personagens também bebiam muita cerveja de gengibre porque as personagens dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não importava que eu não tinha a mínima ideia do que era cerveja de gengibre. E por muitos anos depois, eu desejei desesperadamente experimentar cerveja de gengibre. Mas isso é uma outra história.
A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis face a uma história, principalmente quando somos crianças. Porque tudo que eu havia lido eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras, eu convenci-me de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar. Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africanos. Não havia muitos disponíveis e eles não eram tão fáceis de encontrar quanto os livros estrangeiros,
Mas devido a escritores como Chinua Achebe e Camara Laye eu passei por uma mudança mental em minha percepção da literatura. Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de chocolate, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos-de-cavalo, também podiam existir na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia.
Bem, eu amava aqueles livros americanos e britânicos que eu lia. Eles mexiam com a minha imaginação, me abriam novos mundos. Mas a consequência inesperada foi que eu não sabia que pessoas como eu podiam existir na literatura. Então o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são.
Eu venho de uma família nigeriana convencional, de classe média. Meu pai era professor. Minha mãe, administradora. Então nós tínhamos, como era normal, empregada doméstica, que frequentemente vinha das aldeias rurais próximas. Então, quando eu fiz 8 anos, arranjamos um novo menino para a casa. Seu nome era Fide. A única coisa que minha mãe nos disse sobre ele foi que sua família era muito pobre. Minha mãe enviava inhames, arroz e nossas roupas usadas para sua família. E quando eu não comia tudo no jantar, minha mãe dizia: “Termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não tem nada?” Então eu sentia uma enorme pena da família de Fide.
Então, um sábado, nós fomos visitar a sua aldeia e sua mãe nos mostrou um cesto com um padrão lindo, feito de ráfia seca por seu irmão. Eu fiquei atônita! Nunca havia pensado que alguém em sua família pudesse realmente criar alguma coisa. Tudo que eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres, assim havia se tornado impossível pra mim vê-los como alguma coisa além de pobres. Sua pobreza era minha história única sobre eles.
Anos mais tarde, pensei nisso quando deixei a Nigéria para cursar universidade nos Estados Unidos. Eu tinha 19 anos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Ela perguntou onde eu tinha aprendido a falar inglês tão bem e ficou confusa quando eu disse que, por acaso, a Nigéria tinha o inglês como sua língua oficial. Ela perguntou se podia ouvir o que ela chamou de minha “música tribal” e, consequentemente, ficou muito desapontada quando eu toquei minha fita da Mariah Carey. (Risos) Ela presumiu que eu não sabia como usar um fogão.
O que me impressionou foi que: ela sentiu pena de mim antes mesmo de ter me visto. Sua posição padrão para comigo, como uma africana, era um tipo de arrogância bem intencionada, piedade. Minha colega de quarto tinha uma única história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa única história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de jeito nenhum. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que piedade. Nenhuma possibilidade de uma conexão como humanos iguais.
Eu devo dizer que antes de ir para os Estados Unidos, eu não me identificava, conscientemente, como uma africana. Mas nos EUA, sempre que o tema África surgia, as pessoas recorriam a mim. Não importava que eu não sabia nada sobre lugares como a Namíbia. Mas eu acabei por abraçar essa nova identidade. E, de muitas maneiras, agora eu penso em mim mesma como uma africana. Entretanto, ainda fico um pouco irritada quando referem-se à África como um país. O exemplo mais recente foi meu maravilhoso voo dos Lagos 2 dias atrás, não fosse um anúncio de um voo da Virgin sobre o trabalho de caridade na “Índia, África e outros países.” (Risos)
Então, após ter passado vários anos nos EUA como uma africana, eu comecei a entender a reação de minha colega para comigo. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e se tudo que eu conhecesse sobre a África viesse das imagens populares, eu também pensaria que a África era um lugar de lindas paisagens, lindos animais e pessoas incompreensíveis, lutando guerras sem sentido, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por eles mesmos, e esperando serem salvos por um estrangeiro branco e gentil. Eu veria os africanos do mesmo jeito que eu, quando criança, havia visto a família de Fide.
Eu acho que essa única história da África vem da literatura ocidental. Então, aqui temos uma citação de um mercador londrino chamado John Locke, que navegou até o oeste da África em 1561 e manteve um fascinante relato de sua viagem. Após referir-se aos negros africanos como “bestas que não tem casas”, ele escreve: “Eles também são pessoas sem cabeças, que têm sua boca e olhos em seus seios.”
Eu rio toda vez que leio isso, e alguém deve admirar a imaginação de John Locke. Mas o que é importante sobre sua escrita é que ela representa o início de uma tradição de contar histórias africanas no Ocidente. Uma tradição da África subsaariana como um lugar negativo, de diferenças, de escuridão, de pessoas que, nas palavras do maravilhoso poeta, Rudyard Kipling, são “metade demônio, metade criança”.
E então eu comecei a perceber que minha colega de quarto americana deve ter, por toda sua vida, visto e ouvido diferentes versões de uma única história. Como um professor, que uma vez me disse que meu romance não era “autenticamente africano”. Bem, eu estava completamente disposta a afirmar que havia uma série de coisas erradas com o romance, que ele havia falhado em vários lugares. Mas eu nunca teria imaginado que ele havia falhado em alcançar alguma coisa chamada autenticidade africana. Na verdade, eu não sabia o que era “autenticidade africana”. O professor me disse que minhas personagens pareciam-se muito com ele, um homem educado de classe média. Minhas personagens dirigiam carros, elas não estavam famintas. Por isso elas não eram autenticamente africanos.
Mas eu devo rapidamente acrescentar que eu também sou culpada na questão da única história. Alguns anos atrás, eu visitei o México saindo dos EUA. O clima político nos EUA àquela época era tenso. E havia debates sobre imigração. E, como frequentemente acontece na América, imigração tornou-se sinônimo de mexicanos. Havia histórias infindáveis de mexicanos como pessoas que estavam espoliando o sistema de saúde, passando às escondidas pela fronteira, sendo presos na fronteira, esse tipo de coisa.
Eu me lembro de andar no meu primeiro dia por Guadalajara, vendo as pessoas indo trabalhar, enrolando tortilhas no supermercado, fumando, rindo. Eu me lembro que meu primeiro sentimento foi surpesa. E então eu fiquei oprimida pela vergonha. Eu percebi que eu havia estado tão imersa na cobertura da mída sobre os mexicanos que eles haviam se tornado uma coisa em minha mente: o imigrante abjeto. Eu tinha assimilado a única história sobre os mexicanos e eu não podia estar mais envergonhada de mim mesma. Então, é assim que se cria umaúnica história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão.
É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é “nkali”. É um substantivo que livremente se traduz: “ser maior do que o outro.” Como nossos mundos econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do “nkali”. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder.
Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar”. Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente.
Recentemente, eu palestrei numa universidade onde um estudante disse-me que era uma vergonha que homens nigerianos fossem agressores físicos como a personagem do pai no meu romance. Eu disse a ele que eu havia terminado de ler um romance chamado “Psicopata Americano” – (Risos) – e que era uma grande pena que jovens americanos fossem assassinos em série. (Risos) (Aplausos) É óbvio que eu disse isso num leve ataque de irritação. (Risos)
Nunca havia me ocorrido pensar que só porque eu havia lido um romance no qual uma personagem era um assassino em série, que isso era, de alguma forma, representativo de todos os americanos. E agora, isso não é porque eu sou uma pessoa melhor do que aquele estudante, mas, devido ao poder cultural e econômico da América, eu tinha muitas histórias sobre a América. Eu havia lido Tyler, Updike, Steinbeck e Gaitskill. Eu não tinha uma única história sobre a América.
Quando eu soube, alguns anos atrás, que escritores deveriam ter tido infâncias realmente infelizes para ter sucesso, eu comecei a pensar sobre como eu poderia inventar coisas horríveis que meus pais teriam feito comigo. Mas a verdade é que eu tive uma infância muito feliz, cheia de risos e amor, em uma família muito unida.
Mas também tive avós que morreram em campos de refugiados. Meu primo Polle morreu porque não teve assistência médica adequada. Um dos meus amigos mais próximos, Okoloma, morreu num acidente aéreo porque nossos caminhões de bombeiros não tinham água. Eu cresci sob governos militares repressivos que desvalorizavam a educação, então, por vezes, meus pais não recebiam seus salários. E então, ainda criança, eu vi a geleia desaparecer do café-da-manhã, depois a margarina desapareceu, depois o pão tornou-se muito caro, depois o leite ficou racionado. E acima de tudo, um tipo de medo político normalizado invadiu nossas vidas.
Todas essas histórias fazem-me quem eu sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que formaram-me. A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história.
Claro, África é um continente repleto de catástrofes. Há as enormes, como as terríveis violações no Congo. E há as depressivas, como o fato de 5.000 pessoas candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas há outras histórias que não são sobre catástrofes. E é muito importante, é igualmente importante, falar sobre elas.
Eu sempre achei que era impossível relacionar-me adequadamente com um lugar ou uma pessoa sem relacionar-me com todas as histórias daquele lugar ou pessoa. A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos semelhantes.
E se antes de minha viagem ao México eu tivesse acompanhado os debates sobre imigração de ambos os lados, dos Estados Unidos e do México? E se minha mãe nos tivesse contado que a família de Fide era pobre E trabalhadora? E se nós tivéssemos uma rede televisiva africana que transmitisse diversas histórias africanas para todo o mundo? O que o escritor nigeriano Chinua Achebe chama “um equilíbrio de histórias.”
E se minha colega de quarto soubesse do meu editor nigeriano, Mukta Bakaray, um homem notável que deixou seu trabalho em um banco para seguir seu sonho e começar uma editora? Bem, a sabedoria popular era que nigerianos não gostam de literatura. Ele discordava. Ele sentiu que pessoas que podiam ler, leriam se a literatura se tornasse acessível e disponível para eles.
Logo após ele publicar meu primeiro romance, eu fui a uma estação de TV em Lagos para uma entrevista. E uma mulher que trabalhava lá como mensageira veio a mim e disse: “Eu realmente gostei do seu romance, mas não gostei do final. Agora você tem que escrever uma sequência, e isso é o que vai acontecer…” (Risos) E continuou a me dizer o que escrever na sequência. Agora eu não estava apenas encantada, eu estava comovida. Ali estava uma mulher, parte das massas comuns de nigerianos, que não se supunham ser leitores. Ela não tinha só lido o livro, mas ela havia se apossado dele e sentia-se no direito de me dizer o que escrever na sequência.
Agora, e se minha colega de quarto soubesse de minha amiga Fumi Onda, uma mulher destemida que apresenta um show de TV em Lagos, e que está determinada a contar as histórias que nós preferimos esquecer? E se minha colega de quarto soubesse sobre a cirurgia cardíaca que foi realizada no hospital de Lagos na semana passada? E se minha colega de quarto soubesse sobre a música nigeriana contemporânea? Pessoas talentosas cantando em inglês e Pidgin, e Igbo e Yoruba e Ijo, misturando influências de Jay-Z a Fela, de Bob Marley a seus avós. E se minha colega de quarto soubesse sobre a advogada que recentemente foi ao tribunal na Nigéria para desafiar uma lei ridícula que exigia que as mulheres tivessem o consentimento de seus maridos antes de renovarem seus passaportes? E se minha colega de quarto soubesse sobre Nollywood, cheia de pessoas inovadoras fazendo filmes apesar de grandes questões técnicas? Filmes tão populares que são realmente os melhores exemplos de que nigerianos consomem o que produzem. E se minha colega de quarto soubesse da minha maravilhosamente ambiciosa trançadora de cabelos, que acabou de começar seu próprio negócio de vendas de extensões de cabelos? Ou sobre os milhões de outros nigerianos que começam negócios e às vezes fracassam, mas continuam a fomentar ambição?
Toda vez que estou em casa, sou confrontada com as fontes comuns de irritação da maioria dos nigerianos: nossa infraestrutura fracassada, nosso governo falho. Mas também pela incrível resistência do povo que prospera apesar do governo, ao invés de devido a ele. Eu ensino em workshops de escrita em Lagos todo verão. E é extraordinário pra mim ver quantas pessoas se inscrevem, quantas pessoas estão ansiosas por escrever, por contar histórias.
Meu editor nigeriano e eu começamos uma ONG chamada Farafina Trust. E nós temos grandes sonhos de construir bibliotecas e recuperar bibliotecas que já existem e fornecer livros para escolas estaduais que não tem nada em suas bibliotecas, e também organizar muitos e muitos workshops, de leitura e escrita para todas as pessoas que estão ansiosas para contar nossas muitas histórias. Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias tem sido usadas para expropriar e tornar malígno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida.
A escritora americana Alice Walker escreveu isso sobre seus parentes do sul que haviam se mudado para o norte. Ela os apresentou a um livro sobre a vida sulista que eles tinham deixado para trás. “Eles sentaram-se em volta, lendo o livro por si próprios, ouvindo-me ler o livro e um tipo de paraíso foi reconquistado.” Eu gostaria de finalizar com esse pensamento: Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso. Obrigada. [sic]

Chimamanda Adichie in. You Tube

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Assista ao vídeo abaixo:


domingo, 14 de outubro de 2012

Por que a imagem da vagina provoca horror?*


Muitos anos atrás, não sei precisar quantos, deparei-me com o quadro A origem do mundo (L’Origine du Monde, 1866) e me encantei. Nele, o francês Gustave Courbet pinta uma vagina. Cheguei a ela desavisada e fui tomada por uma sensação profunda de beleza. Forte o suficiente para sonhar, deste então, com a compra de uma reprodução, um plano sempre adiado. Quando passei a trabalhar em casa, há dois anos, desejei ainda mais ter o quadro na parede do meu escritório, onde reúno tudo aquilo que me apaixona em um pequeno universo perfeito e só meu. No último aniversário, em maio, meu marido me deu a reprodução de presente. Só na semana passada, porém, o quadro chegou da vidraçaria onde fez escala para receber moldura. Então, algo inusitado aconteceu. 

Ouvi um grito:

- É o fim do mundo!


Eu estava no quarto e saí correndo, alarmada, para ver o que tinha acontecido. Encontrei Emilia, a mulher que limpa nossa casa uma vez por semana, com o rosto tomado por um vermelho sanguíneo, diante de A origem do mundo, que, ainda sem lugar na parede, jazia encostado em um armário.  

- É o fim do mundo! – gritava ela, descontrolada. – Nunca pensei ver algo assim na minha vida! Eliane, que coisa horrível!

Meio atordoada, eu repetia: “Não é o fim do mundo, é o começo!”. E depois, sem saber mais o que fazer para acalmá-la, me saí com essa estupidez: “É arte!”. Como se, por ser “arte”, ela tivesse de ter uma reação mais controlada, quando é exatamente o oposto que se espera. Beirando o desespero diante do desespero dela que eu não conseguia aplacar, apelei: “Mas, Emilia, metade da humanidade tem vagina – e a humanidade inteira saiu de uma vagina! Por que você acha feio?”.

O fato é que, para Emilia, era o fim do mundo – e não o começo. Tentei fazer piada, mas percebi que a perturbação não viraria graça. A questão para ela era séria – e ela só não pedia demissão porque trabalha há 12 anos comigo e temos um vínculo forte. Naquele dia, Emilia despediu-se incomodada e passei a temer que talvez ela não suporte olhar para o quadro a cada quinta-feira.

Por que Emilia, uma mulher adulta, que me conta histórias escabrosas da vida real, se horrorizou com a visão de uma vagina? Por que eu me encantei com a visão de uma vagina? Quando vivo uma experiência de transcendência, em geral eu não quero saber sobre a história da pintura que a produziu, porque temo perder aquilo que é só meu, a sensação única, pessoal e íntima que tive com aquela obra. É uma escolha possivelmente besta, mas faz sentido para mim. Por isso, eu quase nada sabia sobre “A origem do mundo”, para além do fato de que eu a adorava. Só no ano passado, ao ler um pequeno livro sobre um dos grandes nomes da história da psicanálise, o francês Jacques Lacan, soube que ele foi o último dono da pintura. Nos anos 90, sua família doou o quadro para o Museu D’Orsay, em Paris, onde está desde então. 

Graças ao estranhamento de Emilia, transtornada que foi pela experiência artística quando se preparava para passar o pano no chão, fui levada a um percurso inesperado. Descobri que A origem do mundo causa escândalo desde que foi pintada. E agora quem está horrorizada sou eu, mas pela ausência de horror em mim diante do quadro. Por quê? Por que eu não sinto horror? O que há de errado comigo que não sinto horror?, cheguei a me perguntar. De repente, nossas posições, a minha e a de Emilia diante do quadro, inverteram-se. Eu, que não compreendia o horror dela, passei a suspeitar do meu não horror.

Eis uma breve trajetória da obra. A origem do mundo foi encomendada a Courbet, um pintor do realismo, por um diplomata turco chamado Khalil-Bey. Colecionador de imagens eróticas, ele pediu um nu feminino retratado de forma crua. E Courbet lhe entregou um par de coxas abertas, de onde despontava uma vagina após o ato sexual. A obra teria sido instalada no luxuoso banheiro do milionário, atrás de uma cortina que só se abria para revelar o proibido para uns poucos escolhidos. Khalil-Bey teria perdido a pintura em uma dívida de jogo, momento em que a tela passa a viver uma série de peripécias. 

O quadro teve vários donos e, ao que parece, todos o escondiam atrás de uma cortina ou de uma outra pintura. Na II Guerra Mundial, algumas versões afirmam que chegou a ser confiscado pelos nazistas do aristocrata húngaro ao qual pertencia. Em seguida, passou uma temporada nas mãos do Exército Vermelho. Até que, após uma acidentada jornada, em 1954 foi comprado por Lacan e instalado na sua famosa casa de campo.

Até mesmo Lacan, um personagem pródigo em excentricidades e sempre disposto a chocar as suscetibilidades alheias, ocultava o quadro com uma outra pintura, encomendada ao pintor surrealista André Masson com esse objetivo. Como uma porta de correr, esse “véu” retratava uma vagina tão abstrata que só um olhar atento a adivinhava. Apenas visitantes especiais ganhavam o direito de desvelar e acessar a vagina “real”. Segundo Elisabeth Roudinesco, a biógrafa mais notória de Lacan, o psicanalista gostava de surpreender os amigos deslocando o painel. Anunciava então “A origem do mundo”, com a seguinte declaração: “O falo está dentro do quadro”. Boa parte dos intelectuais apresentados à tela ficava, como Emilia, bastante incomodada.

Por quê? 

Que há algo perturbador no órgão sexual feminino não há dúvida. Até nomeá-lo é um problema. Vagina, como tenho usado aqui, parece excessivamente médico-científico. É como pegar a língua com luvas cirúrgicas. Boceta ou xoxota ou afins soa vulgar e, conforme o interlocutor, pejorativo. É a língua lambuzada pelo desejo sexual – e, por consequência, também pela repressão. Não há distanciamento, muito menos neutralidade possível nessa nomeação. É uma zona cinzenta, entregue a turbulências, e a palavra torna-se ainda mais insuficiente para nomear o que Courbet chamou de “A origem do mundo”. Para Lacan, “o sexo da mulher é impossível de representar, dizer e nomear” – uma das razões pelas quais teria comprado o quadro.

Em busca de respostas para o horror de Emilia, que, por oposição, revela o meu não horror, naveguei por algumas interpretações do quadro – e da perturbação gerada por ele. Jorge Coli, historiador, crítico de arte e autor de um livro sobre Courbet para a editora francesa Hazon, assim comentou sobre A origem do Mundo, em um artigo publicado em 2007: “Parece-me a radicalização do processo de transformar a mulher em um objeto orgânico, pois ele esconde a cabeça (pensante) e os braços e pernas (elementos da ação). Vemos a ponta do seio e, sobretudo, o sexo”. Coli assinala que uma das questões do século XIX era a ameaça do desejo contida no feminino. Inerte, entregue à contemplação, a mulher não ameaçaria.

Em algumas manifestações escandalizadas, o fato de Courbet ter “reduzido” a mulher a um pedaço da anatomia foi considerado uma afronta. Uma mulher sem cabeça, sem braços, sem história. A pintura chegou a ser definida pelo escritor e fotógrafo francês Maxime Du Camp como um “lixo digno de ilustrar as obras do Marquês de Sade”. Análises mais psicanalíticas explicam o horror de quem olha pela castração. Diante do espectador, entre as coxas abertas da mulher se revelaria a ferida aberta, a falta, a impossibilidade de ser completo. As mulheres se horrorizariam pela constatação da castração, os homens pelo temor a ela. Se alguns olhares produzem pistas, outros reforçam apenas o incômodo que a obra produzia.

O efeito do quadro já foi tentado em fotografias de mulheres, em geral prostitutas, colocadas na mesma posição, mas o resultado revelou-se diverso. Ao transpor para a fotografia, não é mais a imagem de Courbet, mas outra. Até que, em 1989, uma artista francesa, Orlan, fez algo marcante – e com grande potencial para gerar polêmica – a partir da obra original. Ela reproduziu a pintura trocando a vagina por um pênis – ou a boceta por um caralho. E chamou-a de A origem da guerra. Olhar para essa imagem causa um estranhamento, especialmente porque a posição, deitada de costas, é muito mais íntima da mulher do que do homem. O pênis, no caso, se oferece ereto ao olhar, mas a partir de um corpo na horizontal, entregue.

É instigante, desde que a provocação não seja reduzida a um feminismo indigente, banalizado pela crença pueril do “a mulher gera a vida, o homem a morte”. A intenção de Orlan, segundo Roudinesco, era bem mais refinada. Ela “pretendia desmascarar o que a pintura dissimulava, realizando uma fusão da ‘coisa’ irrepresentável com seu fetiche negado”. Reivindicava então a “imprecisão do gênero e da identidade” que marca o nosso tempo, anunciando, por sua vez: “Sou um homem e uma mulher”.

O que se pode afirmar é que Courbet revelou o que está sempre coberto, oculto, escondido. No Carnaval brasileiro, por exemplo, como lembra a psicanalista Maria Cristina Poli em um artigo interessante sobre o feminino, tudo é exposto – e até superexposto – do corpo da mulher, menos a vagina. Mas a força do quadro não está só no “mostrar”. Há algo de incapturável e único na forma como Courbet mostrou o “imostrável”, já que a transposição da imagem para a fotografia não causa o mesmo efeito. E o que é?

Não sei.

A vagina pintada por Courbet é peluda como não vemos mais nos dias de hoje. A depilação quase total do sexo feminino tornou-se um popular produto de exportação do Brasil. Tanto que virou um dos significados da palavra “Brazilian” no renomado Dicionário Oxford: "Estilo de depilação no qual quase todos os pelos pubianos da mulher são retirados, permanecendo apenas uma pequena faixa central”. Pelo visto, a partir dos trópicos supostamente liberados e sexualizados, a vagina depilada virou um clássico contemporâneo.

Este é um ponto interessante. Ao primeiro olhar, a extração dos pelos serviria para revelar mais a vagina, mas me parece que este é mais um daqueles casos, bem pródigos na nossa época, em que se mostra para ocultar – a superexposição que ofusca e cega. A vagina sem pelos é uma vagina flagelada – e arrancar os pelos com cera é mesmo um flagelo. É também uma vagina infantilizada pela força. E é ainda uma vagina esterilizada, já que vale a pena lembrar que no passado recente essa depilação agressiva só acontecia nos hospitais para, supostamente, facilitar o parto. “Se não depilo totalmente, me sinto suja”, disse-me uma amiga. Suja?

Em janeiro de 2000, a atriz Vera Fischer exibiu sua vagina peluda em um ensaio fotográfico da revista Playboy. Causou furor. Falou-se na “Mata Atlântica”, na “Amazônia”, na “selva” onde sempre é perigoso penetrar. Havia algo de poderoso e incontrolável na vagina em estado “natural” de Vera Fischer, e a polêmica se fez. Era uma mulher não domesticada ali. Uma mulher adulta.

Não me parece – e nunca saberemos se tenho razão – que, se Courbet tivesse pintado uma vagina careca, ela teria causado tanto o horror de Emilia quanto o êxtase em mim. A vagina pintada por Courbet é uma vagina que revela. Mas o quê?

Não sei. A maravilha da arte é que ela nos transtorna sem a menor intenção de nos dar respostas – muito menos caminhos a seguir. A arte é sempre labiríntica. Não há sentimentos “certos” ou “errados” diante da expressão artística, há sentimentos apenas. Movimentos. Que nos levam por aí, aqui. É em respeito a essa ideia que decidi não colocar nenhuma imagem do quadro aqui, nem mesmo um link – ou um atalho – para a imagem na internet. A busca da origem do mundo é pessoal e intransferível. Assim como a decisão de buscá-la.

A obra de Courbet sempre foi oculta por uma outra pintura. Ou cortina. Exceto agora, que a exibição no museu deu a ela uma espécie de salvo-conduto, por ser ali “o lugar certo”. De algum modo, até então, a vagina mais famosa da História da Arte fora coberta por um véu – além do véu representado pela própria pintura.

Decidi não cobrir minha reprodução de A origem do mundo com uma burca. Vamos ver o que acontece.

Eliane Brum in. Época

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Nota do Blog: Caso seja maior de idade e se for seu interesse acesse o link para a L’Origine du Monde, 1866.

sábado, 13 de outubro de 2012

A beleza do feio*



(detalhe - O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch)


Uma das questões mais delicadas da Teoria Estética é a aparente contradição entre o ideal de Beleza (que se propala ser o objetivo maior da Arte), e o fato de que admiramos obras que retratam algo repugnante, horrível ou aterrorizador. Quadros como as máscaras e os esqueletos de James Ensor, as bruxas de Goya, os corpos semi-destruídos de Francis Bacon. Nem quero chegar perto da arte contemporânea e suas incursões pelas mutilações corporais; basta me deter na boa e velha pintura a óleo, feudo confortável do academicismo, do culto à estética grega e ao equilíbrio romano. Por que motivo aqueles artistas cultivavam o Feio, e, mais ainda, por que ele nos parece Belo? 

Dizem os teóricos da Arte que uma das categorias mais extremadas do Belo é o Sublime. “Sublime” é um dos adjetivos mais diluídos e malbaratados da nossa língua. As letras de músicas falam em “teu sorriso sublime”, “o momento sublime em que nos beijamos”, “a beleza sublime de uma criança”, etc. Segundo os filósofos, o Sublime não é o Mimoso. Nada tem a ver com essas delicadezas. Ele é vizinho do Medonho, do Grandioso e do Terrível. Schopenhauer criou uma gradação de experiências do Sublime que, nos seus graus mais elevados tem o Sublime propriamente dito, cujo exemplo é a Natureza turbulenta (algo que pode ferir ou destruir o observador, como uma tempestade), o sentimento pleno do Sublime (a contemplação de algo tremendamente destruidor, como a erupção de um vulcão próximo) e a experiência mais completa do Sublime (quando o observador experimenta sua total insignificância e anulação diante da Natureza). 

Além disso, engana-se quem pensa que procuramos a Arte apenas para a contemplação estética, a edificação do espírito ou o entretenimento sem compromisso. Procuramos a Arte também, em todas as suas formas, em busca de experiência-limite, em busca do contato com coisas que tememos ou que não conseguimos compreender. Existem obras que funcionam porque nos permitem vislumbrar zonas crepusculares do nosso inconsciente, obras que nos provocam medo ou repulsa, mas que nos obrigam a imaginar por quê. Podemos encontrar isso nas formas mais diluídas da arte, como nos filmes de Zé do Caixão ou nos romances de Stephen King; e podemos encontrá-lo nas tragédias de Ésquilo ou de Shakespeare, na pintura de Dali ou de Hieronymus Bosch, no cinema de Buñuel, David Lynch ou Fritz Lang. 

A psicanálise chamou a mente humana de “máquina desejante”, um mecanismo impulsionado pelo desejo. A impressão que tenho é que há dois tipos de desejo, o Desejo Positivo e o Desejo Negativo. Ou, se quiserem, a Atração e a Repulsa. Ambos nascem na mesma região íntima, são forças simétricas, mas uma é de atração e a outra de repulsão. Freud falava na energia da vida e da morte, Eros e Tânatos. O lugar de onde emanam é um só, e uma das suas chaves é a arte, capaz de despertar em nós não apenas a sensação do Belo, mas a sensação do Terrível.


Braulio Tavares in.  Mundo Fantasmo

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Fundação da infância*


Quando não eram mortas pela peste, as crianças pobres eram levadas pelo frio ou pela fome. A execução pela fome podia ocorrer nos primeiros dias, se não sobrasse leite suficiente nas tetas das mães, que eram amas-de-leite pobres de bebês ricos.

Mas tampouco os bebês de bom berço chegavam a uma vida fácil. Por toda a Europa, os adultos contribuíam para aumentar a taxa de mortalidade infantil submetendo seus filhos a uma educação severa.

O ciclo educativo começava quando o bebê era transformado em múmia. A cada dia, os serviçais o embutiam, da cabeça aos pés, num embrulho de vendas e faixas muito apertadas.

Assim se fechavam seus poros à passagem das pestes e aos vapores satânicos que povoavam o ar, e se conseguia que a criatura não incomodasse os adultos. O bebê, prisioneiro, mal podia respirar, nem pensava em chorar, e suas pernas e braços amarrados o proibiam de se mover.

Se as chagas ou a gangrena não o impedissem, aquele pacote humano passava para as etapas seguintes. Através do uso de correias era ensinado a ficar de pé e a caminhar como Deus manda, evitando o costume animal de andar de quatro. E depois, quando já estava mais crescidinho, começava o uso intensivo da chibata de nove tiras, dos bastões, das palmatórias, das varas de madeira ou dos vergalhões e outros instrumentos pedagógicos.

Nem os reis se salvaram. O rei francês Luís XIII foi coroado quando completou oito anos, e começou o dia recebendo sua dose de açoite.

O rei sobreviveu à sua infância.

Outras crianças também sobreviveram, sabe-se lá como, e foram adultos perfeitamente preparados para educar seus filhos.


Eduardo Galeano. in. "Espelhos". Ed. L&PM, 2009, pp. 85-86.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Lembrança e legado de Eric Hobsbawm*



Eric J. Hobsbawm (1917-2012)
Se Eric Hobsbawm tivesse morrido há 25 anos atrás, os obituários o descreveriam como o historiador marxista britânico mais notável e acabariam mais ou menos aí. Mas ao morrer agora, aos 95 anos, ele atingiu uma posição única na vida intelectual de seu país. Nos últimos anos, tornou-se o historiador britânico mais respeitado de qualquer tipo, reconhecido (se não aprovado) tanto pela esquerda quanto pela direita, e um dos poucos historiadores de qualquer era a desfrutar reconhecimento nacional e internacional genuíno.
Diferente de outros, Hobsbawm atingiu tal status sem voltar-se contra o marxismo ou Marx. Em seu 94º ano, ele publicou How to change the world [leia resenha em Outras Palavras], uma forte defesa da relevância contínua de Marx na sequência do colapso dos bancos de 2008-2010. Além disso, atingiu o auge de sua reputação em um momento em que as ideias e projetos socialistas, que tanto estimularam sua escrita por mais de meio século, estavam em desarranjo histórico – algo de que ele esteve muito consciente.

Em uma profissão conhecida por preocupações microscópicas, poucos historiadores envolveram-se num campo tão vasto, com tantos detalhes ou com tanta autoridade. Até o fim, Hobsbawm considerava-se essencialmente um historiador do século 19, mas seu entendimento desse e de outros séculos era amplo e cosmopolita.
O alcance de seu interesse pelo passado, e seu excepcional domínio dos temas pelos quais se embrenhava sempre espantaram a muitos, principalmente na série de quatro volumes A era das… na qual se destila a história do mundo capitalista de 1789 a 1991. “A capacidade de Hobsbawm de armazenar e recuperar detalhes atingiu agora a escala normalmente alcançada apenas por grandes arquivos com grandes equipes”, escreveu Neal Ascherson. Tanto por seu conhecimento de detalhes históricos quanto por seu extraordinário poder de síntese, tão bem colocados no projeto dos quatro volumes, ele foi incomparável.

Hobsbawm nasceu em Alexandria, um bom lugar para um historiador do império, em 1917, um bom ano para um comunista. Ele faz parte da segunda geração britânica de sua família, neto de um judeu polonês e marceneiro que foi para Londres nos anos 1870. Oito filhos, incluindo Leopold, pai de Eric, nasceram na Inglaterra e todos ganharam cidadania britânica quando nasceram (o tio de Hobsbawm, Harry, tornou-se o primeiro prefeito eleito pelo Partido Trabalhista em Paddington).
Mas Eric era um britânico com um background pouco comum. Outro tio, Sidney, foi para o Egito antes da Primeira Guerra Mundial e encontrou um emprego para Leopold numa agência de despachos marítimos. Lá, em 1914, Leopold Hobsbawm conheceu Nelly Gruen, uma jovem vienense de uma família de classe média, que tinha ganho uma viagem ao Egito como prêmio por ter terminado seus estudos. Os dois ficaram noivos, mas a eclosão da I Guerra Mundial os separou. O casal acabaria se casando na Suíça em 1916, voltando ao Egito para o nascimento de seu primeiro filho, Eric.

“Todo historiador tem sua história de vida, um ponto de vista privado para examinar o mundo”, ele disse em 1993, em uma palestra em Creighton, numa das várias ocasiões nos seus últimos anos em que tentou relacionar sua história de vida com sua escrita. “Meu ponto de vista foi construído a partir de uma infância em Viena nos anos de 1920, os anos em que Hitler ganhou força em Berlim, que determinaram minha visão política e meu interesse pela história; e na Inglaterra, especialmente em Cambridge nos anos 1930, quando confirmei as duas escolhas”.
Em 1919, a jovem família assentou-se em Viena, onde Eric frequentou a escola primária, período que ele mais tarde relembrou em 1995, em um documentário na televisão que mostrava fotos de um jovem Hobsbawm magro, usando shorts e meias até os joelhos. A política teve seu impacto mais ou menos nessa época. A primeira memória política de Eric é de Viena, em 1927, quando trabalhadores queimaram o Palácio da Justiça. A primeira conversa política de que ele se lembrava aconteceu em um sanatório, por volta desse ano. Duas mulheres judias estavam discutindo Leon Trotsky. “Diga o que você quiser”, uma disse a outra, “mas ele é um jovem judeu chamado Bronstein”.
Em 1929, seu pai morreu de um ataque cardíaco. Dois anos depois, sua mãe morreu de tuberculose. Eric tinha 14 anos, e seu tio Sidney assumiu a responsabilidade, e levou Eric e sua irmã Nancy para Berlim. Como um adolescente em Berlim na República Weimar, Eric inevitavelmente se politizou. Ele leu Marx pela primeira vez, e se tornou um comunista.
Ele sempre se lembrou do dia, em janeiro de 1933, quando, ao sair da estação Halensee S-Bahn voltando da escola para casa, viu uma manchete em um jornal anunciando que Hitler havia sido eleito chanceler. Por volta dessa época, juntou-se ao Socialist Schoolboys, que descreveu como “de fato parte do movimento comunista” e vendeu a publicação Schulkampf (“Luta Estudantil”). Ele manteve o mimeógrafo da organização sob sua cama e, dada sua facilidade posterior em escrever, provavelmente também redigiu também a maioria dos artigos. A família permaneceu em Berlim até 1933, quando Sidney Hobsbawm foi enviado para a Inglaterra por seus empregadores.

O garoto adolescente que foi morar com sua irmã em Edgware, em 1934, descreveu a si mesmo posteriormente como “completamente europeu e germanófono”. A escola, porém, “não era um problema” pois o sistema educacional inglês estava “muito atrás” do alemão. Um primo em Balham apresentou-o ao jazz pela primeira vez – o “som irrespondível”, ele chamava. O grande momento da conversa, ele escreveria uns 60 anos depois, foi quando ouviu pela primeira vez a banda Duque Ellington “em sua forma mais imperialista”. Atuou durante uma parte dos anos 1950 como crítico de jazz do New Statesman, e publicou uma edição especial, The Jazz Scene, sobre o assunto, em 1959, sob o pseudônimo de Francis Newton (muitos anos mais tarde, a obra foi relançada com Hobsbawm identificado como o autor).

Ao aprender a falar inglês corretamente, Eric tornou-se aluno na escola de gramática Marybone e ganhou, em 1936, uma bolsa de estudos para a King’s College, em Cambridge. Foi nessa época que uma frase ficou comum, entre seus amigos comunistas de Cambridge: “tem alguma coisa que o Hobsbawm não sabe?”. Ele tornou-se membro da legendária Cambridge Apostles. “Todos nós pensamos que a crise de 1930 era a crise final do capitalismo”, ele escreveu 40 anos depois. Mas, acrescentou, “não era”.
Quando a II Guerra Mundial teve início, Hobsbawm voluntariou-se, como muitos comunistas, para trabalho de inteligência. Mas suas ideias políticas, que nunca foram segredo, levaram à rejeição. Então ele tornou-se um escavador improvável na 560ª Companhia de Campo, que posteriormente descreveu como “uma unidade muito operária, tentando construir defesas notoriamente inadequadas contra invasões no litoral de East Anglia”. Essa também foi uma experiência formativa para o jovem prodígio intelectual, muitas vezes ausente. “Havia algo sublime sobre eles e a Inglaterra naquele tempo”, escreveu. “Aquela experiência na guerra converteu-me em um operário inglês. Eles não eram muito inteligentes, exceto os escoceses e galeses, mas eles eram pessoas muito, muito boas”.
Hobsbawm casou-se com sua primeira esposa, Muriel Seaman, em 1943. Depois da guerra, de volta a Cambridge, tomou outra decisão: abandonou um doutorado planejado sobre a reforma agrária no norte da África para fazer uma pesquisa sobre os socialistas fabianos. Foi uma escolha que abriu a porta tanto para uma vida de estudos sobre o século 19 quanto para uma preocupação igualmente duradora sobre os problemas da esquerda. Em 1947, ele conseguiu seu primeiro trabalho permanente, como professor conferencista de história no Birkbeck College, em Londres, onde permaneceu grande parte da sua vida como professor.
Com o início da Guerra Fria, um macartismo acadêmico muito britânico fez com que a cátedra de Cambridge, que Hobsbawm sempre cobiçou, nunca se materializasse. Ele viajava de Cambridge para Londres, como um dos principais organizadores e animadores do Grupo de Historiadores do Partido Comunista, uma academia brilhante e radical que reuniu alguns dos mais proeminentes historiadores do pós-guerra. Entre seus membros, estavam Christopher Hill, Rodney Hilton, AL Morton, EP Thompson, John Saville e, mais tarde, Raphael Samuel. O que quer que o grupo tenha alcançado (e Hobsbawm escreveu uma dissertação sobre ele em 1978), a experiência certamente estabeleceu um núcleo para seus primeiros passos como grande escritor de História.
O primeiro livro de Hobsbawm, “Labour’s Turning Point” (1948) – uma coleção editada de documentos da era do socialismo Fabiano – pertence claramente à época de militância no Partido Comunista, assim como o seu engajamento no debate famoso sobre as consequências econômicas do início da Revolução Industrial, um tema sobre o qual ele e RM Hartwell teceram argumentos em sucessivos números da Economic History Review. A fundação do jornal Past and Present também pertence ao mesmo período. É até hoje o mais duradouro periódico do grupo de historiadores do PC britânico.

Hobsbawm nunca deixou o Partido Comunista e sempre pensou em si mesmo como parte de um movimento internacional comunista. Para muitos, este continua a ser o obstáculo insuperável para abraçar sua obra. Contudo, ele sempre manteve-se muito mais como um livre-pensador autorizado a permanecer dentro das fileiras do partido. Sobre a invasão da Hungria pela União Soviética, em 1956, um evento que dividiu o PC e provocou a saída de muitos intelectuais do partido, ele foi uma voz de protesto que, no entanto, permaneceu.
 Todavia, a exemplo de seu contemporâneo Christopher Hill, que deixou o PC naquele momento, a combinação, de alguma forma, do trauma político de 1956 e o início de um longo e feliz segundo casamento, provocou um período sustentado e frutífero de produção no campo da História, o que veio a estabelecer sua fama e reputação. Em 1959, ele publicou sua primeira grande obra, “Primitive Rebels”, um relato notavelmente original, especialmente para aqueles tempos, das sociedades secretas e das culturas milenares do Sul da Europa (ele ainda estava escrevendo sobre o assunto recentemente, em 2011). Voltou a esses temas uma década depois, em Captain Swing, um estudo detalhado do protesto rural do início do século 19 na Inglaterra, em co-autoria com George Rudé, eBandidos, um esforço mais abrangente de síntese. Essas obras servem de lembretes de como Hobsbawm foi tanto uma ponte entre a historiografia europeia e a britânica e, também, um precursor do aumento notável do estudo da história social no pós-1968 britânico.

À essa altura, porém, Hobsbawm já havia publicado o primeiro dos trabalhos sobre os quais suas reputações popular e acadêmica iriam se assentar. Uma coleção de alguns dos seus ensaios mais importantes, Labouring Men, apareceu em 1964 (uma segunda coleção,Worlds of Labour, iria surgir 20 anos mais tarde). Mas foi Industry and Empire (1968), uma compilação convincente de muito do seu trabalho sobre a revolução industrial da Grã-Bretanha, que alcançou o mais alto reconhecimento – e, não à toa, raramente a obra encontra-se fora de catálogo.

Foi ainda mais influente, no longo prazo, a série a Era de…, que começou em 1962 com a A Era das Revoluções: 1789-1848. Ela foi sucedida por A Era do Capital: 1848-1875 (1975) e, depois, por A Era do Império: 1875-1914 (1987). Um quarto volume, A Era dos Extremos: 1914-1991, mais peculiar e especulativo, ainda que, sob alguns aspectos, mais notável e admirável do que as obras anteriores, ampliou a sequência em 1994.

Os quatro volumes incorporam todas as melhores qualidades de Hobsbawm – a varredura do tema e a compreensão estatística combinadas pelo ar de anedota, a atenção pelas nuances e o significado das palavras além de, sobretudo, um incomparável poder de síntese (não há lugar onde o capitalismo dos meados do século 19 esteja mais bem disposto do que o clássico sumário presente na primeira página do segundo volume). Os livros não foram concebidos como tetralogia, mas adquiriram, assim que surgiram, status individual e, ao mesmo tempo, cumulativo, de claśsico. Eles foram um exemplo, como diria o próprio Hobsbawm, “daquilo que os franceses chamam de ‘haute vulgarisation‘ [alta vulgarização]” (e ele não disse isso no sentido autodepreciativo). Os livros ornaram-se, nas palavras de um revisor, “parte da mobília dos ingleses bem-formados”.

O primeiro casamento de Hobsbawm tinha terminado em 1951. Durante os anos 1950, ele teve outro relacionamento, que resultou no nascimento de seu primeiro filho, Joss Bennathan; mas a mãe do garonto não quis casar-se. Em 1962, ele casou-se de novo, agora com Marlene Schwartz, de ascendência austríaca. Mudaram-se para Hampstead e compraram uma segunda casa pequena em Gales. Tiveram dois filhos, Andrew e Julia.
Nos anos 1970, a fama crescente de Hobsbawm como historiador viu-se acompanhada pelo crescimento da sua fama como narrador de seu próprio tempo. Embora ele respeitasse, como historiador, a disciplina centralista do Partido Comunista, sua eminência intelectual deu-lhe uma independência que lhe permitiu conquistar o respeito de pensadores críticos ao comunismo, a exemplo de Isaiah Berlin. Isso também garantiu-lhe o considerável elogio de não ter nenhum de seus livros publicados na União Soviética. Armado e protegido, ele navegou sem medo por todo o campo da esquerda, das páginas mensais do Partido Comunista ao Marxism Today, uma publicação consideravelmente heterodoxa na qual tornou-se sumidade da casa.

Suas conversas com o comunista – e, agora, presidente – italiano Giorgio Napolitano datam daqueles anos e foram publicadas em A Estrada Italiana para o Socialismo. Mas sua mais influente contribuição política foi a crescente certeza de que o movimento proletário europeu perdera a capacidade de realizar a função transformadora que os marxistas primordiais lhe creditavam. Esses artigos revisionistas descompromissados foram organizados sob o título “The Forward March of Labour Halted” [A Marcha do Trabalho Interrompida].

Em 1983, quando Neil Kinnock tornou-se líder do Partido Trabalhista britânico, por conta de sua sorte eleitoral, a influência de Hobsbawm começou a se estender para além do Partido Comunista e para dentro do Trabalhista. Kinnock reconheceu publicamente sua dívida para com Hobsbawm e permitiu-se ser entrevistado pelo homem que descreveu como “meu marxista favorito”. Embora Hobsbawm tenha desaprovado firmemente muito daquilo que seria conhecido depois como “Novo Trabalhismo” – algo que via, entre coisas, como covardia histórica – ele foi, sem dúvida, o precursor intelectual mais influente do revisionismo iconoclasta do trabalhismo dos anos 1990.

Seu status foi sublinhado em 1998, quando o então primeiro-ministro Tony Blair concedeu-lhe a distinção de Companion of Honour, poucos meses depois de ter completado 80 anos. Na sua justificativa, o premiê disse que Hobsbawm continuava a publicar trabalhos que “localizam na História e na política problemas que reemergem, para perturbar a complacência da Europa”.

Nos últimos anos, Hobsbawm viu sua reputação crescer. Suas comemorações de aniversário de 80 e 90 anos foram premiadas com a presença da intelectualidade liberal e de esquerda da Grã-Bretanha. Ao longo dos últimos anos, ele continuou a publicar volumes de ensaios, incluindo On the History (1997) e Uncommon People (1998), trabalhos nos quais Dizzy Gillespie e Salvatore Giuliano colocaram-se lado a lado no índice de testemunhas das crescente curiosidade de Hobsbwm. Também são dessa época uma autobiografia muito bem-sucedida, Tempos Interessantes, publicada em 2002, eGlobalização, Democracia e Terrorismo, de 2007.

Mais famoso no fim de sua vida do que provavelmente em qualquer outro período, ele manteve com regularidade suas palestras, comunicações e o papel como performer no Festival de Literatura de Hay, do qual tornou-se presidente aos 93 anos, após a morte de Lord Bingham de Cornhill. Um tombo, em 2010 reduziu severamente sua mobilidade, mas seu intelecto permaneceu intocado, assim como sua vida social e cultura, graças aos esforços, ao amor e à culinária de Marlene.

Que seus escritos tenham continuado a sensibilizar tantos públicos, no momento em que sua política foi, de certa forma, eclipsada, era o tipo de disjunção que exasperava os direitistas. Mas foi também o paradoxo em que seu intelecto sutiu e jamais complacente refestelou-se. Em seus últimos anos, ele gostava de citar EM Forster, segundo o qual o próprio Hobsbawm sabia “permanecer sempre num ângulo suave do universo”. Se o comentário diz mais sobre Hobsbawm ou sobre o universo era algo que ele gostava de debater, confiante na noção de que se tratava, em muitos sentidos de um aprendizado para ambos. Ele deixa Marlene e seus três filhos, sete netos e um bisneto.
Por Martin Kettle e Dorothy Wedderburn, no The Guardian | Tradução: Daniela Frabasile e Hugo Albuquerque in. Outras Palavras
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