quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Chega de Escola*

 

Por André Forastieri

Eu detesto escola. É uma perda de tempo miserável. Minha mãe me ensinou a ler, escrever e fazer as quatro operações. O resto foi aos trancos e barrancos.
Fui bem na escola até o momento em que precisei começar a estudar ― dali para frente foi só o mínimo de nota para passar de ano (duas vezes, raspando).

Meu colegial ensinou a dar sinal de sete-copas, beber e fumar. O papel que gastei jogando batalha naval no fundão dava para reflorestar o deserto de Atacama. A besta do professor de português, em três anos, recomendou um único livro decente: O Apanhador no Campo de Centeio.

Detesto tanto escola que abandonei a faculdade na primeira semana. Cinco dias de recepção aos calouros por parte dos veteranos Libelu da ECA-USP e deu. Fui e voltei várias vezes. Assim que comecei a trabalhar, abandonei definitivamente. Voltei depois à ECA ― para dar palestra para os calouros, já tive até convite pra ser banca, quá-quá-quá.

No Yazigi foram sete anos e foi útil. Mas o inglês só deslanchou lendo Avengers e traduzindo o encarte do Sgt. Pepper's. Foi bom também para cantar bem alto aquele clássico do Alice Cooper, “School's out for summer, school's out forever, school's been blown to pieces”.

Nada contra praticamente nenhum professor. Imagina, a maioria tinha muito boas intenções. Eu podia até estar naqueles anúncios da Fundação Victor Civita, ao lado de algum mestre bacana: dona Zélia, dona Aparecida, o carrasco do seu Salles. Mas é como você estar na cadeia e trombar um carcereiro gente fina: não refresca.

Pelo que percebia na minha época e percebo mais ainda agora, as melhores escolas do Brasil formam uma legião de cretinos semianalfa. As exceções se devem à influência de pais e amigos, uma ou outra escola, um ou outro professor, ou acidentes genéticos. Ninguém sabe de nada, ninguém lê, ninguém escreve direito, ninguém fala inglês, e pior: ninguém é curioso. As piores escolas, não quero nem imaginar, mas deve ser a mesma porcaria e com balas voando pra todo lado.

Minha teoria é que toda escola serve para esmagar o espírito e a imaginação do ser humano para que ele se torne um escravo zumbi da sociedade. É também um lugar para os pais estacionarem os filhos durante o horário comercial. Chega dessa idiotice.

A educação básica em qualquer lugar do mundo devia se limitar ao domínio da língua materna, da língua global (inglês!) e um mínimo da matemática. Dá pra resolver em, no máximo, quatro anos ― digamos, dos 8 aos 12 anos (antes dos 8 deixa os caras brincarem, pô).

Claro, é superlegal que a garotada aprenda física, química, geografia. Também é bacana ensinar a empinar pipa, andar de skate, nadar, reconhecer as constelações e plantar jabuticabeiras. Mas as escolas ensinam isso? Não. As escolas ensinam a decorar informações para a próxima prova. Então, chega de escola. Delenda magister (opa, ninguém me ensinou latim).

Dos 12 anos pra frente é sacanagem trancar a molecada nas salas de aula. Porque aí já é hora de enfrentar as questões fundamentais da existência. Aprender a transar, dirigir, ganhar dinheiro, cozinhar, ajudar o vizinho, se dar bem com a sogra e reconfigurar o acesso à Internet.

E o principal: aprender a se manter curioso. Quem é curioso lê e experimenta, pula muro, tem conversas estranhas, faz conexões, cria universos. Pensa com a própria cabeça. É o que interessa.

OK, existem escolas diferentes, mais experimentais, moderninhas e carinhas. Mas não comemore ainda, caro amigo de classe média alta. As alternativas ao sistema decoreba imbecilizante são tão preocupantes quanto. Domina aquele papo hippie de contato com a natureza, de isolar ao máximo a criançada da tecnologia, da mídia e da cultura pop.

Me arrepia os cabelinhos da nuca. Até porque sou da turma que aprendeu a desconfiar das “manipulações da mídia” lendo os infames e invejosos ataques de J. Jonah Jameson ao Homem Aranha. E outro dia um amigo contou que virou roqueiro por causa daquele verso do Supla, “mas eu não sou nem quero ser igual a quem me diz que sendo igual eu posso ser feliz”.

Por essas e por outras que mudei de opinião sobre o Guns N’Roses e outras bandas detestáveis. Qualquer um que escancarar para a molecada que o bacana é ser esquisito e encrenqueiro tem o meu apoio (aprendi isso com o Clash e os X-Men).

A tecnologia e a cultura pop são as grandes equalizadoras. Graças a elas é que vamos ficando mais iguais que diferentes, em cada canto do planeta, em cada ponta das classes sociais. Você já reparou que o conjunto de coisas que a gente tem que saber em 2011 é absurdamente maior que na juventude da sua avó? E quem foi que te ensinou a tirar dinheiro no caixa automático, programar o videocassete e reformatar o hard disk?

Está totalmente na cara que a rapaziada de todas as classes sociais está igualmente equipada para lidar com o mundo moderno. Especialmente no Brasil. Afinal, todo mundo por aqui vive a mesma experiência audiovisual/interativa. O moleque da periferia ouve música, assiste à televisão e joga videogame tanto quanto o filhinho de papai do condomínio. Ambos já estão com um pé dentro da economia digital. Em qualquer lugar do mundo é assim. E brasileiro, para completar, adora uma novidade e é apaixonado por televisão.

Se for para investir uma grana ensinando a rapaziada a lidar com tecnologia, recomendo subsidiar a compra de gameboys e distribuir para a juventude carente. Qualquer mestre Pokémon está pronto para ser estagiário da Microsoft.

E a formação clássica, uma base geral de ciências, artes e humanidades, não faz falta para lidar com o mundo moderno? Não, não faz nenhuma. Talvez faça para lidar com o mundo eterno ― mas aí, como dizia uma professora pernóstica que eu tive, estamos invadindo os limites do imponderável.

Não precisa saber tudo sobre tudo. Nem dá. O conhecimento total da humanidade, no momento, dobra a cada seis meses. O ritmo acelera loucamente. Um desses gênios do MIT garante que vai dobrar a cada segundo a partir de 2017. Num mundo desses, o que é formação clássica, o mínimo indispensável? Virgílio? Física de partículas?

O fato é que qualquer um que passe o fim de semana assistindo à Globo vai aprender mais sobre o mundo do que 99 por cento dos seres humanos que já viveram neste lindo planetinha. Enquanto isso, sociólogos e pedagogas garantem sua graninha com projetos paternalistas e esse punhetol de “resgatar a cidadania”.

Li metade da Pedagogia do Oprimido aos 18 anos, não entendi um quarto, mas gostei. Aprendi que a educação tem de ser feita em cima da vida, dos interesses, sonhos e necessidades de cada um; que ninguém ensina nada, a gente é que aprende ou não; e que educação é uma ferramenta para você descobrir qual seu lugar no mundo, descobrir quem está te fodendo e reagir.

Ouvi falar que tem uma ONG usando o método do Paulo Freire para ensinar informática para favelados, com dinheiro de multinacionais da pesada. Parece ótimo, divertido e vai acabar dando uma boa briga. Vou descobrir mais ― se por acaso encontrar uma escola que presta para alguma coisa, aviso.


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*Este texto é uma provocaçãozinha aos "idealistas". E aí, somos nós, a escola, os alunos, o governo, os marcianos, ou é o místico “sistema” que está falhando? Em alguma coisa o Forastieri está certo, a escola está se tornando, se já não é, um lugar detestável e fadado ao fracasso coletivo. Então, alguém ainda se ilude com o futuro? E quem vai pagar a conta?...


Por Josenias Silva

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Os "maus costumes" de Foucault*

Ele é um rapaz que parece gostar da solidão, que foge do convívio com as outras pessoas. A presença dos outros lhe parece ser um incômodo, que procura resolver usando o seu humor e sua capacidade de ironizar. Zomba de todo mundo com uma ferocidade que o torna imediatamente antipatizado. Briga com os colegas, com quem se atraca em público. Adora se exibir. É logo tido por maluco. Suas atitudes bizarras chamam atenção e levam ao surgimento daquele equivoco murmúrio que turva o ambiente em volta de cada um. Um dia seu corpo indócil é encontrado estendido no chão e ferido a navalhadas. E quando tenta o suicídio, a maioria de seus colegas vê neste gesto a confirmação de duas suspeitas: a de seu exótico fascínio pela morte e a de seu precário equilíbrio psicológico. Passa, então, a viver isolado numa enfermaria, onde se dedica apenas aos estudos. Ainda se sucederão inumeras tentativas ou encenações de suicídio, bem como ainda será apanhado quase se transformando num homicida, ao perseguir um colega, com um punhal nas mãos, pelos corredores da escola onde estuda. Faz frequentes expedições noturnas pelos pontos de encontro ou bares homossexuais. Parece, nestas ocasiões, ser tomado por uma enorme culpa que o esmaga, que o prostra durante horas, doente, aniquilado pela vergonha.

Talvez, por isso, na busca de um conhecimento de si, tenha se interessado pela psicanálise e pela psiquiatria; tenha se dedicado à leitura dos escritores de “transgressão”, da experiência-limite, do excesso e da exibição: Bataille, Blanchot, Klossowski; tenha se apaixonado pela possibilidade do filósofo louco e pelo saber da loucura. O encontro com os escritos de Nietzsche, sob o sol forte de uma praia africana, parece ter apenas sedimentado essa paixão e a sua forma de pensamento. A gaia ciência nietzscheana se torna um acontecimento definitivo na vida deste rapaz que, apesar de ter se tornado um intelectual maduro e um autor reconhecido na França e internacionalmente, nunca abandonou o uso do riso como a sua principal arma, seja nas lutas acadêmicas, seja nas lutas políticas e pessoais. Mesmo quando estava próximo de morrer, vitimado pela peste do século, tinha constantes acessos de riso. Quando lhe falaram, pela primeira vez, da existência de um câncer que só atingia homossexuais, ele chegou a cair do sofá, contorcendo-se num acesso de riso, dizendo que era muito bonito para ser verdade. Não se sabe ao certo se chegou a saber do verdadeiro mal que o acometia, pois teve o orgulho insensato, a generosidade de não contar a ninguém, para deixar as amizades viverem livres como o ar, descuidadas e eternas, como diz Hervé Guilbert. Suspeita-se que tenha contraído aids freqüentando o que ele chamava “os laboratórios de experimentação sexual de São Francisco e Nova York”. Ele adorava orgias violentas em saunas. O medo de ser reconhecido o impedia de freqüentar as saunas parisienses. Mas, quando partia para o seu seminário anual perto de São Francisco, esbaldava-se nas inúmeras desta cidade. Nelas os homossexuais desta cidade realizavam as fantasias mais insensatas. Mesmo após a epidemia de aids ter se confirmado, ele volta de São Francisco testemunhando que nunca houvera tanta gente nestes lugares antes, que a ameaça que pairava no ar criava novas cumplicidades, novas ternuras, novas solidariedades; as pessoas se falavam, definindo precisamente por que estavam ali. Quando morreu, o companheiro com quem viveu durante 25 anos encontrou no armário do apartamento um grande saco cheio de chicotes, de capuzes de couro, de coleiras, de freios e algemas.

De quem estivemos falando até aqui? Por que a escolha de detalhes que podem parecer sórdidos para alguns, insignificâncias degradantes para outros? Para desenhar tal pessoa, para traçar a biografia deste rapaz, poderíamos ter escolhido outros traços marcantes seus: sua cabeça brilhante, tanto por maquinar ideias originais como por ser completamente raspada, sem um fio de cabelo, cabeça onde às vezes podiam se ver restos de sangue, de um pequeno corte feito pela navalha; seus olhos brilhantes; o beijo com que sempre se despedia de seus amigos; a capa longa e às vezes puída com que desfilava pelas ruas de Paris; a sua rotina de oito horas de leitura diária na Biblioteca Nacional onde, às vezes, chegava a ler oito obras ao mesmo tempo; uma presença constante em passeatas e manifestações, onde assinou inúmeros manifestos e foi preso algumas vezes; sua solidariedade com todos os discriminados, perseguidos, exilados; seu total desprendimento das coisas materiais, tendo deixado, por exemplo, de descontar inúmeros cheques de grande valor que foram achados depois de sua morte, tendo dormido quase a vida inteira num velho colchão jogado no chão; ou sua retórica fulgurante que fascinava as platéias que se apinhavam para ouvir suas aulas no College de France.

Os detalhes que escolhemos, se fossem apreendidos na grade de um discurso moral, com certeza classificariam este rapaz como um ser de “maus costumes”, um ser bizarro, exótico, anormal, marginal. Mas quem é este individuo, este sujeito construído por esta recolha de detalhes? Paul-Michel? Muzil? Julian de l’Hôspital? Michel Foucault? Foucault? [...].


Durval Muniz de Albuquerque Júnior. in. História: a arte de inventar o passado. Ed. Edusc, 2007. p. 113-115.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Procure o Carlos*



Consolo na praia


Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, 1989.

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*Quem foi que disse que o poeta não pode fazer as vezes de um psicólogo, confidente, doutor da “alma”? Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) fala dessas coisas de amor e sofrimento, dá conselhos, ouve queixas e, como se pôde ver na imagem acima, atende gratuitamente em um dos bancos do calçadão de Copacabana. Um poeta/psicólogo do povo, sempre solicito e disposto a ouvir seus dramas, sua história, seus planos. Bateu a “deprê”, a solidão, o desespero? Procure o Carlos, ele ajuda.

Por Josenias Silva

É proibido pisar na grama*



É proibido pisar na grama

o jeito é deitar e rolar.

 Chacal



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*Adoro essa poesia do Chacal (Ricardo Carvalho). Além de irreverente, maliciosa e moralmente torta, ela traz uma mensagem bem clara e necessária para algumas situações. Ela diz: DESCUMPRA!!! DÊ SEU JEITO!!!! SE VIRE!!!! GOZE!!!! QUE SE DANE!!! NINGUÉM ESTÁ VENDO!!! NÃO PENSE!!! FAÇA!!! ARRISQUE!!! QUEBRE!!! COMA!!!! LEVE!!! JOGUE!!! PULE!!! OLHE!!! DÊ!!! TOME!!! É SÓ UMA VEZINHA!!! BARBARIZE!!! UIVE!! INSULTE!!! AFRONTE!!! XINGUE!!! O PROBLEMA NÃO É SEU!!! SACANEIE!!! ... Sei lá, são tantas as canalhices que nos afastam do "bom" e "velho" CÉU, é só escolher. 

sábado, 24 de setembro de 2011

Nada é impossível de mudar*


Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, 
de arbitrariedade consciente, 
de humanidade desumanizada, 
nada deve parecer natural 
nada deve parecer impossível de mudar.


Bertolt Brecht

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*Este “poeminha” do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) é uma fala mais que autorizada, é um alerta para tempos sombrios, como o nosso. Tempo em que “não nos surpreendemos mais com as coisas”, em que o banal está na ordem do dia, nos cegando e nos entorpecendo o poder de crítica, de denúncia. O maior cego do nosso tempo é justamente aquele que enxerga demais, que se habituou completamente ao mundo, aquele que não mais se transtorna ou se revolta. 
"Gritai quando a dor lhes doer! Mas também Gritai pela dor dos outros, seus semelhantes."

Por Josenias Silva

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Convenções*



A classe média é uma terra estranha.
       A Mirtes não se aguentou e contou para a Lurdes:
     - Viram teu marido entrando num motel.
A Lurdes abriu a boca e arregalou os olhos. Ficou assim, uma estátua do espanto, durante um minuto, um minuto e meio.
Depois pediu detalhes. Quando? Onde? Com quem?
    - Ontem. No Discretissimu's.
    - Com quem? Com quem?
    - Isso eu não sei.
    - Mas como? Era alta? Magra? Loira? Puxava de uma perna?
    - Não sei, Lu.
    - O Carlos Alberto me paga. Ah, me paga.
   Quando o Carlos Alberto chegou em casa, a Lurdes anunciou que iria deixá-lo. E contou por quê.
    - Mas que história é essa, Lurdes? Você sabe quem era mulher que estava comigo no motel. Era você.
    - Pois é. Maldita hora em que eu aceitei ir. Discretissimu's! Toda a cidade ficou sabendo. Ainda bem que não me identificaram.
    - Pois então?
    - Pois então que eu tenho que deixar você. Não vê? É o que todas as minhas amigas esperam que eu faça. Não sou mulher de ser enganada pelo marido e não reagir.
    - Mas você não foi enganada. Quem estava comigo era você!
    - Mas elas não sabem disso!
    - Eu não acredito Lurdes. Você vai desmanchar nosso casamento por isso? Por uma convenção?
    - Vou.
    Mais tarde, quando a Lurdes estava saindo de casa, com as malas, o Carlos Alberto a interceptou. Estava sombrio.
    - Acabo de receber um telefonema - disse. - Era o Dico.
    - O que ele queria?
    - Fez mil rodeios, mas acabou me contando. Disse que, como meu amigo, tinha que contar.
    - O quê?
    - Você foi vista saindo do Motel Discretissimu's ontem, com um homem.
    - O homem era você.
    - Eu sei, mas eu não fui identificado.
    - Você não disse que era você?
    - O quê? Para que os meus melhores amigos pensem que eu vou a motel com a minha própria mulher?
    - E então?
    - Desculpe, Lurdes, mas...
    - O quê?
    - Vou ter que te dar um tiro.

Luís Fernando Veríssimo, O melhor das comédias da vida privada, 2004.

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*Quer ficar “famoso(a)” em uma cidade pequena? Vá a um Motel. É incrível, sempre haverá, mesmo que psicologicamente, um conhecido ou um conhecido de um conhecido que te “saca” de algum lugar. Logo você será o centro das atenções, o big brother da vez. Dentre as espécies a de comportamento sexual mais curioso é a Humana. Chegamos a um nível de sofisticação tal que nos vimos obrigados a inventar o Motel. Hoje, toda cidade tem o seu, é um mercado, ora! Somos os únicos que institucionalizaram o sexo, que o colocaram no âmbito do privado, que nos escondemos para dar vazão aos desejos, taras, vícios, enfim, ao amor em suas múltiplas possibilidades.
 E lá estão eles, os Motéis, com suas graciosas e “discretíssimas” placas ostentando nomes que nos levam a refletir: por exemplo, têm os convidativos (vamo que vamo Motel), os mais diretos (bora Motel), os broxantes (Paraíso Motel, acho que Inferno Motel seria mais “quente”), os sinceros (mini-Motel, esse é pequeno de verdade fica próximo a Altos-PI), os pouco confiáveis (Miragem Motel), os super-populares (Matel, no mato mesmo, com a vantagem de ser ambientalmente correto e 0800), os que ditam as regras (Profundus Motel), os indecisos (Não sei Motel), os que tanto faz como tanto fez (Sei Lá Motel), os Gps (Tô aqui Motel), os reflexivos (Vou Pensar Motel), os liberais (Onde Entrar Motel) etc. Ninguém admite, pelo menos publicamente, freqüentar estes espaços. Ninguém sai dizendo que foi ao Motel como quem foi, por exemplo, ao cabeleireiro. É como se individuo naquele instante entrasse para uma lista dos mais procurados, um fugitivo, alguém que deve se esconder de tudo e de todos. Dizem que a culpa é da tal civilização, das convenções no dizer do Veríssimo, sei lá, mas que é engraçado é.


Por Josenias Silva

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Os homens desejam as mulheres que não existem*



Está na moda - muitas mulheres ficam em acrobáticas posições ginecológicas para raspar os pêlos pubianos nos salões de beleza. Ficam penduradas em paus-de-arara e, depois, saem felizes com apenas um canteirinho de cabelos, como um jardinzinho estreito, a vereda indicativa de um desejo inofensivo e não mais as agressivas florestas que podem nos assustar. Parecem uns bigodinhos verticais que (oh, céus!...) me fazem pensar em... Hitler.

Silicone, pêlos dourados, bumbuns malhados, tudo para agradar aos consumidores do mercado sexual. Olho as revistas povoadas de mulheres lindas... e sinto uma leve depressão, me sinto mais só, diante de tanta oferta impossível. Vejo que no Brasil o feminismo se vulgarizou numa liberdade de "objetos", produziu mulheres livres como coisas, livres como produtos perfeitos para o prazer. A concorrência é grande para um mercado com poucos consumidores, pois há muito mais mulher que homens na praça (e-mails indignados virão...) Talvez este artigo seja moralista, talvez as uvas da inveja estejam verdes, mas eu olho as revistas de mulher nua e só vejo paisagens; não vejo pessoas com defeitos, medos. Só vejo meninas oferecendo a doçura total, todas competindo no mercado, em contorções eróticas desesperadas porque não têm mais o que mostrar. Nunca as mulheres foram tão nuas no Brasil; já expuseram o corpo todo, mucosas, vagina, ânus.
O que falta? Órgãos internos? Que querem essas mulheres? Querem acabar com nossos lares? Querem nos humilhar com sua beleza inconquistável? Muitas têm boquinhas tímidas, algumas sugerem um susto de virgens, outras fazem cara de zangadas, ferozes gatas, mas todas nos olham dentro dos olhos como se dissessem: "Venham... eu estou sempre pronta, sempre alegre, sempre excitada, eu independo de carícias, de romance!..."
Sugerem uma mistura de menina com vampira, de doçura com loucura e todas ostentam uma falsa tesão devoradora. Elas querem dinheiro, claro, marido, lugar social, respeito, mas posam como imaginam que os homens as querem.
Ostentam um desejo que não têm e posam como se fossem apenas corpos sem vida interior, de modo a não incomodar com chateações os homens que as consomem.
A pessoa delas não tem mais um corpo; o corpo é que tem uma pessoa, frágil, tênue, morando dentro dele.
Mas, que nos prometem essas mulheres virtuais? Um orgasmo infinito? Elas figuram ser odaliscas de um paraíso de mercado, último andar de uma torre que os homens atingiriam depois de suas Ferraris, seus Armanis, ouros e sucesso; elas são o coroamento de um narcisismo yuppie, são as 11 mil virgens de um paraíso para executivos. E o problema continua: como abordar mulheres que parecem paisagens?
Outro dia vi a modelo Daniela Cicarelli na TV. Vocês já viram essa moça? É a coisa mais linda do mundo, tem uma esfuziante simpatia, risonha, democrática, perfeita, a imensa boca rósea, os "olhos de esmeralda nadando em leite" (quem escreveu isso?), cabelos de ouro seco, seios bíblicos, como uma imensa flor de prazeres. Olho-a de minha solidão e me pergunto: "Onde está a Daniela no meio desses tesouros perfeitos? Onde está ela?" Ela deve ficar perplexa diante da própria beleza, aprisionada em seu destino de sedutora, talvez até com um vago ciúme de seu próprio corpo. Daniela é tão linda que tenho vontade de dizer: "Seja feia..."
Queremos percorrer as mulheres virtuais, visitá-las, mas, como conversar com elas? Com quem? Onde estão elas? Tanta oferta sexual me angustia, me dá a certeza de que nosso sexo é programado por outros, por indústrias masturbatórias, nos provocando desejo para me vender satisfação. É pela dificuldade de realizar esse sonho masculino que essas moças existem, realmente. Elas existem, para além do limbo gráfico das revistas. O contato com elas revela meninas inseguras, ou doces, espertas ou bobas mas, se elas pudessem expressar seus reais desejos, não estariam nas revistas sexy, pois não há mercado para mulheres amando maridos, cozinhando felizes, aspirando por namoros ternos. Nas revistas, são tão perfeitas que parecem dispensar parceiros, estão tão nuas que parecem namoradas de si mesmas. Mas, na verdade, elas querem amar e ser amadas, embora tenham de ralar nos haréns virtuais inventados pelos machos. Elas têm de fingir que não são reais, pois ninguém quer ser real hoje em dia - foi uma decepção quando a Tiazinha se revelou ótima dona de casa na Casa dos Artistas, limpando tudo numa faxina compulsiva.
Infelizmente, é impossível tê-las, porque, na tecnologia da gostosura, elas se artificializam cada vez mais, como carros de luxo se aperfeiçoando a cada ano. A cada mutação erótica, elas ficam mais inatingíveis no mundo real. Por isso, com a crise econômica, o grande sucesso são as meninas belas e saradas, enchendo os sites eróticos da internet ou nas saunas relax for men, essa réplica moderna dos haréns árabes. Essas lindas mulheres são pagas para não existir, pagas para serem um sonho impalpável, pagas para serem uma ilusão. Vi um anúncio de boneca inflável que sintetizava o desejo impossível do homem de mercado: ter mulheres que não existam... O anúncio tinha o slogan em baixo: "She needs no food nor stupid conversation." Essa é a utopia masculina: satisfação plena sem sofrimento ou realidade.
A democracia de massas, mesclada ao subdesenvolvimento cultural, parece "libertar" as mulheres. Ilusão à toa. A "libertação da mulher" numa sociedade ignorante como a nossa deu nisso: superobjetos se pensando livres, mas aprisionadas numa exterioridade corporal que apenas esconde pobres meninas famintas de amor e dinheiro. A liberdade de mercado produziu um estranho e falso "mercado da liberdade". É isso aí. E ao fechar este texto, me assalta a dúvida: estou sendo hipócrita e com inveja do erotismo do século 21? Será que fui apenas barrado do baile?

Arnaldo Jabor


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*“Os olhos de ambos se abriram e souberam que estavam nus.” (gênesis 3,7). Acho que hoje não é bem assim!!! Vou tentar reescrever: "Os olhos de ambos se abriram e viram que tudo era de plástico." (Risos).

Por Josenias Silva 

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Lima e a Bruzundanga nossa de cada dia*



“A minha estada na Bruzundanga foi demorada e proveitosa. O país, no dizer de todos, é rico, tem todos os minerais, todos os vegetais úteis, todas as condições de riqueza, mas vive na miséria. [...] É que a vida econômica da Bruzundanga é toda artificial e falsa nas suas bases, vivendo de expedientes. Entretanto, o povo só acusa os políticos, isto é, os seus deputados, os seus ministros, o presidente, enfim. O povo tem em parte razão. Os seus políticos são o pessoal mais medíocre que há. Apegam-se a velharias, a coisas estranhas à terra que dirigem, para achar solução às dificuldades do governo. A primeira coisa que um político de lá pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é de carne e sangue diferente do resto da população. [...] Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes; o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes. [...] Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos no Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e indivisos; a população rural, que é a base de todas as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a coisa mais fácil desta vida. Vive sugada, esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela, para que na sua capital, algumas centenas de parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios, duplicados e triplicados, afora vencimentos que vem de outra qualquer origem, empregando um grande palavreado de quem vai fazer milagres. [...] A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tem o governo que merece.”

Lima Barreto, Na Bruzundanga, 2009.

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*Um fora de lugar, essa talvez seja uma definição adequada, embora insuficiente, para definir o carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Pobre, mulato, alcoólatra e escritor. Lima Barreto foi tudo isso vivendo em um dos períodos mais instáveis da história do Brasil. Observador atento da realidade, Lima acompanhou de perto a queda da Monarquia e a primeira infância da República, retratando em suas obras aspectos do cotidiano da capital do país, o mesmo Rio de Janeiro de Machado, só que em outras tintas.
Quem hoje se atreve a ler alguma obra de Lima Barreto ainda se surpreende com a atualidade do autor. Como se pôde ler no recorte acima, a agudeza da observação e a ironia fina são características da prosa limabarretiana. Nesse trecho, que fala da política e dos políticos da Bruzundanga, um país fictício muy familiar, Lima descreve o corrompido fazer político bruzundanguense. Uma crítica, sem sombra de dúvida, à sociedade brasileira, ao seu viciamento político, que como sabemos anda pior a cada pleito, mas uma crítica também ao próprio povo, que tem o governo que merece ou fez por merecer.
Lima Barreto sempre foi um incompreendido entre os seus pares, sendo mais de uma vez recusado à Academia Brasileira de Letras, o que o fez viver angustiado diante das dificuldades socialmente impostas a um escritor como ele, eram tempos parnasianos, mas também de retumbante hipocrisia racial. Lima Barreto morreu em 1922 de colapso cardíaco, resultado do excesso de bebida. Lima ficou esquecido durante algum tempo até que sua obra e sua vida se tornassem objeto de interesse por alguns admiradores, como o seu biografo Francisco de Assis Barbosa, e por certa esquerda que queria enxergar um outro Brasil, agora visto de baixo. Dentre suas principais obras destacam-se, além de contos e crônicas publicados em jornais da época, Recordações do Escrivão Isaias Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), Vida e Morte de M.Gonzaga de Sá (1919), Na Bruzundanga (1923, obra publicada postumamente) etc. Para finalizar, deixo um convite de leitura fazendo minhas as palavras do professor e ensaísta Antonio Arnoni Prado (Unicamp): “Temos que ler Lima Barreto porque não somos um país livre, não somos um país integralmente livre. Temos que ler Lima Barreto porque somos um país socialmente injusto, somos um país onde os pobres continuam pobres e as elites continuam no lugar delas. Não é para aprender português que se ler Lima Barreto, lê-se Lima Barreto pra aprender a ser brasileiro.”

Por Josenias Silva

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Assim caminha a humanidade*


                           Quino.
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*E ainda enfatizam que somos os únicos animais inteligentes. Piada!!!

Por Josenias Silva.

sábado, 17 de setembro de 2011

O levante das palavras*



"O que não faltaram aos eventos de maio de 1968 na França foram atos de fala. A busca pela liberdade, o desejo de transformação da cultura, da sociedade, das artes, das relações pessoais, da vida pública, da política, das relações de trabalho, das relações com o corpo, com o sexo, da economia, os desejos de revolução se expressaram numa profusão de frases, palavras de ordem, slogans, discursos, ideias, que se misturaram a uma profusão de imagens que, tal como havia escrito Benjamim, como uma espessa nuvem de gafanhotos, abandonaram o sossego horizontal dos livros, dos cadernos, das escrivaninhas e das cadeiras das Universidades e ganharam as ruas, verticalizadas em grafitos, pichações, histórias em quadrinho, pintadas, cartazes, placas, inscrições nos muros, sobre os cartazes de propaganda, nas paredes, em faixas, pancartas, nas próprias roupas, nos rostos, nos corpos dos manifestantes." 


Durval Muniz de Albuquerque Junior, 1968: o levante das palavras, 2009.

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* Sempre falo para os meus alunos, todos mais jovens do que eu, que tenho orgulho de ter nascido no século XX. Conto-lhes, começando pelos escombros, que aquele século fez de nós o que somos hoje, não escondo a destruição das guerras, a intolerância que gerou Auschwitz, os totalitarismos, a iminência da catástrofe nuclear etc., quando todos já estão de olhos arregalados de pavor, ou mesmo felizes por ter escapado de nascer naquele período “pipocante” da história, começo a falar-lhes de um outro aspecto, as liberdades. Falo, por exemplo, de Freud, Marx, Nijisnky, Luter King, Mandela, Armstrong, internet, controle remoto, games, celular etc. E falo necessariamente de 1968, uma data especial entre tantas naquele século. Maio de 1968 para o século XX é como a tomada da Bastilha para o século XVIII, uma data que marca o começo do fim de alguns sistemas. Mas o que eu gostaria de enfatizar aqui, sobre 68, é importância das palavras neste “levante”. Lutava-se com armas e com palavras, palavras-armadas, verticalizadas, delinqüentes, proféticas, debochadas, certeiras. O que se viam nas ruas eram muros, cartazes e corpos pichados em nome da liberdade (É proibido proibir!), da expressão (Escrevam por toda parte!), em nome do desejo (Eu gozo!), da ação (não tome o elevador, tome o poder!), da arte militante (a poesia está na rua!) ou contra os contrários (As paredes têm ouvidos. Seus ouvidos têm paredes!). Enfim, maio de 68 significou um marco na história das lutas por liberdade no século XX, daí surgiram figuras como Guy Debord, Hebert Marcuse, Michel Foucault, Jean-Paul Sartre e outros tantos “miseráveis” que influenciaram nossa maneira de enxergar e consumir o mundo. Emergiram também algumas falas até então inexpressivas politicamente, como as que exigiram direitos aos homossexuais, às mulheres, aos negros, ao sexo livre etc. Palavras de ordem e contra a ordem, amor, ódio, ideologias, paixões... Enfim, 68 revolucionou. Para finalizar gostaria de lembrar aos navegantes que atualmente estamos vivendo outro período de convulsão coletiva. Embora seja cedo demais para avaliar, com certeza podemos antecipar que ela já está marcando nossa forma futura de falar do passado. É só lembrar, por exemplo, que a palavra verticalizada de 68 hoje está digitalizada em tweets e outras parafernálias mortais aos velhos sistemas. Fico feliz porque essa ainda é a minha história, mas também será a dos nossos filhos. Que eles saibam curtir, afinal: “A felicidade é uma ideia nova!”.

Por Josenias Silva


Literatura como missão*



Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko, foi um trabalho pioneiro no Brasil. Publicado ainda na década de 1980 como fruto da tese de doutoramento do seu autor, a obra fundou amplos campos de pesquisa  resultando naquilo que se convencionou chamar de história social da cultura.

Captar as mudanças, as tensões sociais e a criação cultural na virada do século XIX para o século XX, a partir da interface entre o literário e o histórico, foi a missão de que se incumbiu Sevcenko nesta obra. O Rio de Janeiro atuou como cenário principal dos embates e das transformações urbanas, políticas e mentais daquele momento. Sua entrada na Belle Époque serviu de mote a poetas, cronistas e escritores que vivenciaram estas tensões sociais. Para o autor, a literatura moderna “aparece como ângulo estratégico notável, para a avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determinada estrutura social.” Nesse sentido, a literatura pensada através da história, além de significar um produto artístico, surge como possibilidade de compreensão das mudanças e dos mecanismos de permanência de uma dada época.

Euclides da Cunha e Lima Barreto foram os personagens-escritores de que se serviu o historiador para adentrar no universo convulso da nascente República. Ambos viveram e sentiram, como contemporâneos e conterrâneos, as "mudanças" que se processaram no interior das camadas sociais brasileiras. Desse torvelinho cultural poucos se salvaram. Euclides da Cunha e Lima Barreto sobreviveram graças ao seu engajamento sociopolítico, à sua consciência humanitária e a clara visão das mudanças em curso naquele instante da história do país, ambos se encontravam na dianteira intelectual do seu tempo.

Nicolau Sevcenko procura apresentá-los em suas sintonias e antinomias, em sua sensibilidade ao falar das tensões da época em que viveram e dos nexos entre a criação artística e a própria história. Sociedade e Literatura figuram nas obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto como interfaces da dimensão histórica. Apropriando-se disso, o autor analisa o conjunto das obras destes escritores na tentativa de perscrutar o cotidiano e a vida social carioca no limiar do século XX. Metodologicamente, a literatura para Sevcenko não aparece como uma ferramenta inerte, mas sim como um ritual complexo capaz de construir, modelar e revelar simbolicamente o mundo.

Literatura como Missão, é uma obra que apresenta a primeira República pelo avesso, pois procura revelar as trincas, as rachaduras e estrias dos principais eventos tão propalados pela historiografia brasileira, não a partir dos fatos centrais, mas da maneira como foram sentidos e representados pela intelectualidade carioca do período.  Enfim, ainda hoje Literatura como Missão é uma leitura obrigatória aqueles que pretendem conhecer e discutir o surgimento de um Brasil que se dizia Republicano, laico, anti-escravocrata e justo.



*Josenias S. Silva in. Fronteiras Literárias

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Fragmento: 


As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que foram registradas pela literatura, mas sobretudo mudanças que se transformaram em literatura. Os fenômenos históricos se reproduziram no campo das letras, insinuando modos originais de observar, sentir, compreender, nomear e exprimir. A rapidez e profundidade da transfiguração que devassou a sociedade inculcou na produção artística uma inquietação diretamente voltada para os processos de mudança, perplexa com a sua intensidade inédita, presa de seus desmandos e ansiosa de assumir a sua condução. Fruto das transformações, dedicada a refletir sobre elas e exprimi-las de todo modo, essa literatura pretendia ainda mais alcançar o seu controle, fosse racional, artística ou politicamente. Poucas vezes a criação literária esteve tão presa à própria epiderme da história tout court. Era em grande parte uma literatura encampada por homens de ação, com predisposição para a liderança e gerência político-social: engenheiros, militares, médicos, políticos, diplomatas, publicistas. Nesse meio e sob essa atmosfera, quem quer que se dispusesse a servir às letras era compelido à atuação cívica já pela dupla imposição de tirocínio e forma.

Nicolau Sevcenko in. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República. Ed. Companhia das Letras, 2003.



sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Vence na vida quem diz sim*


Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
Se te dói o corpo, diz que sim
Torcem mais um pouco, diz que sim
Se te dão um soco, diz que sim
Se te deixam louco, diz que sim
Se te babam no cangote
Mordem o decote
Se te alisam com o chicote
Olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim

Se te jogam na lama, diz que sim
Pra que tanto drama, diz que sim
Te deitam na cama, diz que sim
Se te criam fama, diz que sim
Se te chamam vagabunda, montam na cacunda
Se te largam moribunda olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim

Se te cobrem de ouro, diz que sim
Se te mandam embora, diz que sim
Se te puxam o saco, diz que sim
Se te xingam a raça, diz que sim
Se te incham a barriga, de feto e lombriga
Nem por isso compra a briga
Olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim

Chico Buarque e Ruy Guerra, Vence na vida que diz sim, 1973.

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*Música composta por Chico Buarque e Ruy Guerra para a peça Calabar, o Elogio da Traição, a letra foi de pronto censurada pela ditadura, já que ela “perigosamente” colocava sob suspeita a “moral duvidosa” da história. Vence na vida quem diz sim mantém sua força enquanto representação irônica do Brasil contemporâneo. Vejamos o que diz o nosso já “batido” e pouco alentador presente: faltam 1.000 dias para a Copa do Mundo, nossos políticos continuam vivendo como Marajás, nossa infra-estrutura de transportes é péssima, temos uma das maiores cargas tributarias do mundo, morre-se mais no trânsito do que na guerra do Iraque, a lei seca não pegou, a Maria da Penha amoleceu, o mensalão já está sendo tratado como intriga da oposição, o SUS é uma piada, assim como o salário dos Professores, a programação da tv é um esgoto a céu aberto, a dengue no próximo ano vai matar mais, Papai Noel não existe, e nem a possibilidade dos nossos políticos mudarem, os crimes “menores” não levam para a cadeia, livros ainda custam  caro, programas sociais não resolvem problemas sociais, ninguém é obrigado a produzir provas contra si, somos um país que concede indulto para os seus presos, no exterior muitos ainda pensam que a capital do Brasil  é Buenos Aires, somos o país do futebol e do carnaval, adotam-se mais crianças brancas do que negras, “a favela é a nova senzala”, o suposto fetiche anal da Sandy virou notícia, Tiririca ganha mais do que você, a fome ainda mata, boa parte da Amazônia já está vendida, homossexuais e travestis no Brasil ainda são violentados em seus direitos, o mundo não acabará em 2012, assim espero,  a maioria dos brasileiros detesta política, a Globo manipula tudo, Ronaldinho Gaúcho foi homenageado pela Academia Brasileira de Letras, o salário mínimo é de 545 reais, a Constituição Federal diz que somos todos iguais perante a lei, Justin Bieber vem no final do ano, a maioria dos alunos odeia a escola, o carnaval não é uma festa popular, falar ao celular em banco é proibido, os bancos tem 15 minutos para atender os clientes, temos medo de sair à rua, teremos mais um Big Brother, roubar/enganar em nome de Deus não é pecado, somos moralistas, é mais fácil comprar drogas do que adquirir a casa própria etc, etc, etc, fazemos muito pouco para mudar tudo isso, porque: vence na vida quem diz sim...



Por Josenias Silva

Complicação*



Quino, Gente, 1991.


*Eta vida besta, meu Deus.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Canto para a minha Morte*

Eu sei que determinada rua que eu já passei
Não tornará a ouvir o som dos meus passos.
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos
E que nunca mais eu vou abrir.
Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar
Com que rosto ela virá?
Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está em algum lugar me esperando
Embora eu ainda não a conheça?
Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida
Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas... Um acidente de carro.
O coração que se recusa a bater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...
Oh morte, tu que és tão forte,
Que matas o gato, o rato e o homem.
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem,
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite...
Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida.


Raul Seixas, Canto para a minha morte, 1976. (áudio)

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*Um dos mais belos poemas já compostos sobre a Morte, ou para a Morte. Raul Seixas (1945-1989) toca profundamente em um tema quase sempre evitado, embora, sejamos obrigados a reconhecer que  somos a única espécie para quem a Morte está presente ao longo da Vida. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) em sua principal obra, Ser e Tempo (1927), já havia afirmado que “o homem é um ser para a Morte”, ou seja, somos marcados pela condição da perda e não somos seres acabados, mas em acabamento. Heidegger observa a Morte na perspectiva de um “sobrevivente”, enquanto Raul prefere, neste poema, contemplar a sua própria Morte. Distintas posições, portanto. Mas que colocam em questão esta fronteira tênue que nos separa, ou aproxima, do momento final de nossas existências. E como indagou Raul, morre-se de muitas formas, mas com que roupa ela virá vestida? Será doce, amarga, letárgica, ou será apenas um sonho sem fim? Venha, mas demore a chegar... Morte, Morte... Vida.



Por Josenias Silva

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Mulheres Públicas*

Photo: Washington, D.C., circa 1919.

O lugar das mulheres no espaço público sempre foi problemático, pelo menos no mundo ocidental, o qual, desde a Grécia antiga, pensa mais energicamente a cidadania e constrói a política como o coração da decisão e do poder. “Uma mulher em público está sempre deslocada”, diz Pitágoras. Prende-se à percepção da mulher uma ideia de desordem. Selvagem, instintiva, mais sensível do que racional, ela incomoda e ameaça. A mulher noturna, mais ou menos feiticeira, desencadeia as forças irreprimíveis do desejo. Eva eterna, a mulher desafia a ordem de Deus, a ordem do mundo.

O corpo das mulheres, esse poço sem fundo, apavora. E, deste ponto de vista, as ciências naturais e biológicas, em pleno florescimento a partir do século XVIII, nada resolvem. Ancoram um pouco mais a feminilidade no sexo e as mulheres em seus corpos, escrutados pelos médicos. Estes as descrevem como doentes perpétuas, histéricas, à beira da loucura, nervosas, incapazes de fazer abstração, de criar e, acima de tudo, de governar.

[...]

Essas representações, esses medos atravessam a espessura do tempo e se enraízam num pensamento simbólico da diferença entre os sexos, cujo poder estruturante foi mostrado pelos antropólogos. Mas assumem formas variáveis conforme as épocas, assim como as maneiras de geri-las. Nas sociedades que pensam o político, isso se traduz por uma divisão racional dos papéis, das tarefas e dos espaços sexuais. [...] Para os homens, o público e o político, seu santuário. Para as mulheres, o privado e seu coração, a casa. Afinal, esse poder sobre os costumes não é o essencial? Muitas mulheres pesam assim, e esta é uma das razões de seu relativo consentimento.


*Michelle Perrot in. “Mulheres Públicas”. Ed. Unesp, 1998, pp. 8-10.


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Nota: Até hoje estou horrorizado com certa faceta da entrevista concedida pela PresidentA Dilma Rousseff à jornalista Patrícia Poeta (Fantástico - 11.09.11). Mas gostaria de começar falando sobre o lugar público da mulher na história e no atual. No fragmento acima, de Michelle Perrot, ressoam algumas questões, cito uma delas: “Existem lugares sociais específicos para homens e mulheres?” Bem, ao longo da história a mulher foi sistematicamente excluída do espaço público, a própria expressão Mulher Pública, que ainda causa frisson, muitas vezes se tornou sinônimo de Mulher depravava, “da vida”, “rapariga”, “puta”, lúbrica etc, etc, etc. O espaço social público, como que naturalmente, foi sendo então associado ao homem. O Homem público, que exerce seu papel de cidadão, ou seja, que transita pelos espaços da cidade e politicamente participa das decisões, foi o modelo ideal do homem na história. Assim, o público foi sendo construído como o espaço social do masculino e o privado do feminino. Um homem público, um cidadão. Uma mulher pública, uma desfrutada. Obvio que esse é um modelo hegemonicamente falocêntrico, que só interessa a uma das partes da trama social. Desse modelo emergiu o ideal de mulher: frágil, passiva, dócil, prendada, sensível, recatada, casta, submissa, apolítica, assexuada, figura representada em última instância pelas correspondentes: mãe, esposa e dona-de-casa. Quer dizer, mulheres para o privado, para o lar. O oposto disso é a anomalia, é a femme fatalle, a Eva pecadora, a Pandora. Enfim, a citada entrevista revelou uma faceta interessante, revoltante para alguns, que foi a busca de uma ESSÊNCIA FEMININA em Dilma. Como se ela, ocupando um espaço público, estivesse transgredindo uma lei natural, uns dirão Divina, ao não apresentar os Dotes que os da “espécie” assumiram para si. O mundo é pensado, interessadamente, no masculino, no bom e velho poder do macho. Quem ousa desafiar, até mesmo no campo da linguagem (presidenta?), é rechaçado. Colocar sob suspeita o lugar público da mulher é assumir ideologias que necessariamente continuarão a segregar e a tornar mais difícil o justo lugar da igualdade entre os sexos, falo dos vários sexos. Que a PresidentA seja sexualmente o que queira ser, não tenho nada com isso, só não aceito idiotice, como a da nobre/pobre jornalista.

Nos poços*

Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.

Caio Fernando Abreu, O ovo apunhalado, 2001.


* Poço, cada um tem o seu, ou terá. (risos). Detalhe: Um PONTO FINAL esmagador.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O sábio da efelogia*

Durante a última excursão que fiz a Marrocos, encontrei um dos tipos mais curiosos que tenho visto em minha vida.
Conheci-o casualmente, no velho hotel de Yazid El-Kedim, em Marrakech. Era um homem alto, magro, de barbas pretas e olhos escuros; vestia sempre pesadíssimo casaco de astracã, com esquisita gola de peles que lhe chegava até às orelhas. Falava pouco; quando conversava casualmente com os outros hóspedes, não fazia a menor referência à sua vida ou ao seu passado. Deixava, porém, de vez em quando, escapar  observações eruditas, denotadoras de grande e extraordinário saber.
Além do nome — Vladimir Kolievich — pouco mais se conhecia dele. Entre os viajantes que se achavam em “El-Kedim”, constava que o misterioso cavalheiro era um antigo e notável professor da Universidade de Riga, que vivia foragido por ter tomado parte numa revolução contra o governo da Letônia.
Uma noite, como de costume estávamos reunidos na sala de jantar, quando uma jovem escritora russa, Sônia Baliakine, que se entretinha com a leitura de um romance, me perguntou:
— Sabe o senhor onde fica o rio Falgu?
— O quê? Rio Falgu?
Ao cabo de alguns momentos de baldada pesquisa nos escaninhos da memória, fui obrigado a confessar a minha ignorância, lamentável nesse ponto. Nunca tinha ouvido falar em semelhante rio, apesar de ter feito um curso completo e distinto na Universidade de Moscou.
Com surpresa de todos, o misterioso Vladimir Kolievich, que fumava em silêncio a um canto, veio esclarecer a dúvida da encantadora excursionista russa:
— O Rio Falgu fica nas proximidades da cidade de Gaya, na Índia. Para os budistas, o Falgu é um rio sagrado, pois foi junto a ele que Buda, fundador da grande religião, recebeu a inspiração de Deus.
Diante da admiração geral dos hóspedes, aquele cavalheiro, habitualmente taciturno e concentrado, continuou:
— É muito curioso o rio Falgu. O seu leito apresenta-se coberto de areia; parece eternamente seco, árido, como um deserto. O viajante que dele se aproxima não vê água nem ouve o menor rumor do líquido. Cavando-se, porém, alguns palmos na areia, encontra-se um lençol de água pura e límpida.
Com a simplicidade e clareza peculiares aos grandes sábios, passou a contar-nos coisas curiosas, não só da Índia, como de várias outras partes do mundo. Falou-nos minuciosamente das “filazenes”, espécie de cadeiras em que se assentam, quando viajam, os habitantes de Madagáscar.
— Que grande talento! Que invejável cultura científica! — segredou, a meu lado, um missionário católico, sinceramente admirado.
A formosa Sônia afirmou que encontrara referências ao rio Falgu exatamente no livro que estava lendo, uma obra de Otávio Feuillet.
— Ah! Feuillet, o célebre romancista francês! — atalhou ainda o erudito cavalheiro do astracã. — Otávio Feuillet nasceu em 1821 e morreu em 1890. As suas obras, de um romantismo um pouco exagerado, são notáveis pela finura das observações e pela concisão e brilho do estilo.
Durante algum tempo, prendeu a atenção de todos, discorrendo sobre Otávio Feuillet, sobre a França e sobre os escritores franceses. Ao referir-se aos romances realistas, citou as obras de Gustavo Flaubert: “Salambô”, “Madame Bovary”, “Educação Sentimental”...
— Não se limita a conhecer a Geografia — acrescentou, a meia-voz, o velho missionário. — Sabe também literatura a fundo!
Realmente. A precisão com que o erudito Vladimir citava datas e nomes, e a segurança com que expunha os diversos assuntos, não deixavam dúvida alguma sobre a extensão de seu considerável saber.
Nesse momento, começava uma forte ventania. As janelas e portas batem com violência. Alguns excursionistas que se achavam na sala mostraram-se assustados.
— Não tenham medo — acudiu, bondoso, o extraordinário Kolievich. — Não há motivo para temores ou receios. Faye, o grande astrônomo, que estudou a teoria dos ciclones...
Discorreu longamente sobre a obra de Faye, e depois passou a falar, com grande loquacidade, dos ciclones, avalanches, erupções e todos os flagelos da natureza.
Senti-me seriamente intrigado. Quem seria, afinal, aquele homem tão sábio, de rara e copiosa erudição, que se deixava ficar modesto, incógnito, como simples aventureiro, numa velha e monótona cidade marroquina?
No dia seguinte, ao regressar de fatigante excursão aos jardins de El-Menara, encontrei-o casualmente, sozinho, no pátio da linda mesquita de Kasb. Não me contive e fui ter com ele.
— O senhor maravilhou-nos ontem com o seu saber — confessei, respeitoso. — Não podíamos imaginar, com franqueza, que fosse um homem de tão grande cultura. Na sua academia, com certeza...
— Qual, meu amigo! — obtemperou ele, amável, batendo-me no ombro. — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um professor. Eu pouco sei, ou melhor, nada sei. Não reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam todas pela letra F. Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra F.
Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?
— Eu lhe explico — acudiu com bom humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado e vivo do comércio do fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela em que me puseram, deixou-me como herança os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia um pouco esse idioma, e como não tivesse em que me ocupar, li e reli centenas de vezes as páginas que possuía. Eram todas da letra F. Ao final, fiquei sabendo muita coisa; tudo, porém sem sair da letra F: fá, fabagela, fabela, fabiana, fabordão.
Achei curiosa aquela conclusão da original história do inteligente Kolievich, o negociante de fumo. Ele era precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra F de uma velha enciclopédia.
Era, inquestionavelmente, o homem que mais conhecia a ciência que ele próprio denominara “efelogia”.


Malba Tahan. Os melhores contos, 2006.

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*Este texto de Malba Tahan, pseudônimo de Júlio César de Mello e Souza (1895-1974), me faz pensar em um fenômeno que não é tão novo no Ocidente, que é a emergência da figura do “Especialista”, um tipo de sujeito do conhecimento que cada vez mais parece representar o modelo da sociedade a qual nos incluímos. A substituição da figura do “Erudito”, aquele sujeito que se propunha conhecer vastamente e universalmente as coisas, pela do “Especialista”, aquele que olha em profundidade buscando um ponto específico para esquadrinhar, coincidiu com a emergência da sociedade capitalista, com o processo de industrialização e a supervalorização do conhecimento técnico em detrimento de algo mais abrangente. É só lembrar o velho modelo pragmático da linha de montagem da produção Fordista e comparar com o curriculum a qual somos obrigados a cumprir, principalmente no “universo” acadêmico. O educador Rubem Alves define bem esta imagem contemporânea do especialista, segundo ele, “o especialista é alguém olhando para o fundo de um poço”. Não sei até que ponto isso é saudável, só sei que sabemos cada vez mais de menos, como o sábio da efelogia de Tahan. 



Por Josenias Silva
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