segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Passagem do ano*


(Catrin Arno)

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gesto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


Carlos Drummond de Andrade in. "Poesia Completa". Ed. Nova Fronteira, 2007, pp. 131-2.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Alan e Aline*


Nossa pele é massa, 
É massa, pode crer.
Nosso mundo é massa, vem ver.
Corpos sapecados, por insenso e vela,
Dois corpos mutilados, o meu e o dela.

Alan dominador e Aline submissa,
Juntos praticando fantasias.
Alan é a comida, e Aline o apetite
Pra quem é livre e se permite.

Nossa forma é bruta,
Sarrasqueira e diluente,
Com a bituca debiata onde fica a tua mente.
E quando amanhecer,
Quero te deixar contente,
Um sorriso a mais na boca,
Uma saliva diferente.

Alan dominador e Aline submissa,
Juntos praticando fantasias.
Alan é a comida, e Aline o apetite
Pra quem é livre e se permite.

Longe do limite,
Longe da Moral,
Longe das estéticas,
Longe do normal,
É lindo esse casal.
É lindo esse casal.

É Alan dominador e Aline submissa,
Juntos praticando as fantasias.
Alan é a comida, e Aline o apetite
Pra quem é livre e se permite.

(Zéu Britto)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O amor nos tempos do cólera*

E aí, alguém ainda lembra de algum "amor" da adolescência? Dizem que amor, se é Amor, é para toda a vida. Assim, imaginem-se vivendo um amor de adolescência que não deu certo. A vida passa, passa, as coisas acontecem no seu ritmo próprio. Você encontra e casa com alguém que aprendeu a gostar. Constrói uma vida ao lado dessa pessoa. Se acomoda a ela e de repente, após mais de meio século de convivência, ela morre. Não sem uma dose de ironia, aquele seu amor de adolescência aparece no velório do seu querido e lhe jura amor e fidelidade eterna. Você naquele momento sente raiva, pensa em maldizê-lo e expulsá-lo da casa onde ainda está quente o cadáver do seu esposo. Mas você se controla. Não diz nada. Espera todos irem embora, tranca-se no seu quarto e chora. Acha que a vida não terá mais sentido, deseja a própria morte, tudo lhe lembra o querido esposo. Você sente a ausência daquela vida compartilhada. Assim você vai dormir soluçando no lado que sempre dormia, e mas uma vez sente o peso da ausência do companheiro. Mas a noite corre e aos poucos, ao despertar na manhã seguinte, você percebe que enquanto dormia pensava mais no amor da adolescência do que no próprio marido morto. 


Bem, este poderia ser um drama da vida real, mas é um episódio da história de "amor" de Fermina Daza e Florentino Ariza, personagens d"O Amor nos tempos do cólera" de Gabriel Garcia Márquez. A seguir um dos meus trechos prediletos: 

[...]

Quando ouviu que se apagavam os passos na rua solitária, fechou a porta bem devagar, com a tranca e os ferrolhos e encarou sozinha seu destino. Nunca, até este momento, tinha tido a plena consciência do peso e do tamanho do drama que ela própria desencadeara quando tinha apenas dezoito anos, e que havia de persegui-la até a morte. Chorou pela primeira vez desde a tarde do desastre, sem testemunhas, que era seu único jeito de chorar. Chorou pela morte do marido, por sua solidão e sua raiva, e quando entrou no quarto vazio chorou por si mesma, porque muitas poucas vezes tinha dormido sozinha nessa cama desde que deixara de ser virgem. Tudo que era do esposo lhe atiçava o pranto: os chinelos de borlas, o pijama debaixo do travesseiro, o espaço sem ele no espelho da penteadeira, o cheiro pessoal dele em sua própria pele. Abalou-a um pensamento vago: "As pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas." Não quis ajuda de ninguém para se deitar, não quis comer nada antes de dormir. Na angústia de sua desolação, rogou a Deus que lhe mandasse a morte esta noite durante o sono, e com essa ilusão se deitou, descalça mas vestida, e dormiu no mesmo instante. Dormiu sem saber, mas sabendo que continuava viva no sono, que lhe sobrava metade da cama, que jazia de costas na margem esquerda, como sempre, mas que lhe fazia falta o contrapeso do outro corpo na outra margem. Pensando adormecida, pensou que nunca mais poderia dormir assim, e começou a soluçar adormecida, e dormiu soluçando sem mudar de posição na sua margem, até muito depois de acabarem de cantar os galos, e a despertou o sol indesejável da manhã sem ele. Só então descobriu que havia dormindo muito sem morrer, soluçando no sono, e enquanto dormia soluçando pensava mais em Florentino Ariza do que no marido morto. 

[Fragmento]

Gabriel Garcia Márquez in. "O amor nos tempos do cólera". Ed. Record, 1998, pp. 68-69.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Retrato do cinema quando jovem*


[...] Nos primeiros anos dessa invenção, ela é uma arte entre outras. Sua sedução deriva do encontro da ciência e da tecnologia com o encantamento pelo novo e de um surpreender pela ilimitabilidade humana na criação de artefatos os mais diversos e complicados. Aparece simultaneamente em vários países e regiões, com diferenças pouco consideráveis no seu mecanismo e com nomes os mais distintos. O final do século XIX diverte-se, em todo o mundo, com os omniógrafos, cinematógrafos, vitascópios, kinetoscópios e outras dezenas de aparelhos com funções similares.

A experimentação cientifica e mecânica, matriz desses diferentes aparelhos, não estava apenas a serviço da produção industrial. Fazia desenvolver-se, e a olhos vistos, a indústria da diversão, cada vez mais transformada em diversão de massa.

Os grandes pais do cinema francês – Louis e Auguste Lumière e Georges Méliès – representam essas duas tendências. Os irmãos Lumière rendem-se aos limites da máquina, como industriais bem-sucedidos; Méliès, empresário do setor de diversões e ele próprio dublê de inventor, mágico, comediógrafo e empresário das artes, vislumbra o potencial do cinematógrafo de Lumière como diversão popular que renovaria e atrairia o público para seu estabelecimento. A sede de novidade expressa pelo público pagante veio ao encontro da necessidade de abertura do mercado para a nova modalidade de lazer.

Como diversão, o cinema entra numa longa linhagem de maquinários e de atrações fantásticas, fantasmagóricas, assombrosas, de cujo sucesso não estão ausentes da influencia da grande difusão das diferentes formas de espiritismo e mesmo a revalorização da tradição ocultista.

O cinema, pois, encontra o seu espaço nesse frágil limite entre o racional e o irracional e psicológico onde a derivação do sonho-realidade-materialidade-fantasia se encontra. Esse lugar psicológico já fora ocupado antes por outras formas de diversão pública e já fora penetrado em seus meandros pelo mercado consumidor. O cinema é assim associado ao sonho, portanto, apresenta-se como algo já incorporado à experiência mais particular e imediata de todas as pessoas.

De algo que desperta o interesse e que está na experiência interior de cada um à incorporação no cotidiano bastou um passo. E esse passo foi dado em todo o mundo, menos a partir de uma evolução industrial particular, mas especialmente seguindo os intercâmbios comerciais.

O cinema é uma mercadoria a mais, a despeito de o velho Antoine Lumière ter-se recusado a vender um aparelho de cinematógrafo a Méliès, julgando-o sem futuro como diversão pública. 


Teresinha Queiroz in. “História, arte e invenção”. Ed. Intermédios/Edufpi/Cnpq, 2012, pp. 81-83.


terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Natal 2012*


(Catryn Arno)

..e estou de volta ao ponto de partida, 
ao trampolim do Tempo que me impele 
a saltar para fora desta pele 
como quem larga a roupa no banheiro. 
Meu último dezembro? Ou o primeiro 
noutro plano que não este de agora? 
É noite. Ruge o trânsito lá fora 
nessa avenida insone que não para 
e as multidões arquejam no Saara 
buscando o oásis do crédito fácil. 

E onde diabos perdi o meu palácio? 
Em que bolso esqueci o meu castelo? 
Quede o meu submarino, aquele yellow, 
que cruzava universos transversais? 
As alucinações sensoriais 
transportaram meu corpo a outro porto 
onde um dia, não sei, voltarei morto 
e encontrarei meu rosto adormecido 
num travesseiro feito do tecido 
que as aranhas bordaram para mim. 

Someone tells me that life is but a dream 
e a guilhotina do despertador 
decepa o sono no melhor do amor 
e me projeta nesta Distopia 
em que mais queima e dói a luz do dia, 
o ferro-em-brasa de qualquer verão, 
do que a treva, a ausência, o nada, o não, 
o Nirvana do zero absoluto... 
Bastam só as besteiras que eu escuto 
pra sonhar em viver como um Beethoven 

pois os surdos não sofrem do que ouvem 
como nós, a nadar no som alheio, 
um rumor que jamais diz a que veio 
mas aumenta o volume e abaixa o nível. 
Bora lá, paladinos do impossível, 
combater o mau gosto, o gosto médio! 
Quero afogar em vodka este tédio, 
sufocar o Medíocre em si mesmo, 
essa tela que berra à balda, a esmo, 
como se fossem gralhas coloridas. 

Este ano custou-me tantas vidas... 
mas eis-me aqui ao fim de tudo, intacto, 
intratável e áspero; o cacto 
de Bandeira, que morre e não se entrega. 
E em dezembro retorna a luta cega 
das comemorações obrigatórias, 
mil cervejas, mil risos, mil histórias, 
tudo festivo como um Facebook 
onde cada usuário emprega um truque 
pra divulgar o seu melhor retrato. 

Nessa luta de cão-e-gato-e-rato 
não dá pra dispensar a hipocrisia, 
que não deixa de ser diplomacia, 
revestida de boas intenções. 
Sendo assim... tragam logo esses garçons, 
o champanhe, a cerveja, os canapés... 
Que seja a vida como os cabarés 
ou a buate que eu chamava “bôite”, 
onde a festa feliz virava a noite 
e o álcool desmanchava o sofrimento. 

Este ano passou feito um momento:
vupt! – e pronto, é Natal mais uma vez.
É hora de lembrar o que se fez,
empurrar o não-feito mais pra frente,
abraçar, receber e dar presente,
como a peça mil vezes encenada
que toda noite vem modificada
pela corrente oculta dos Acasos
visto que o Tempo não tolera atrasos
e que nossa viagem é só de ida...

Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Infidelidade: quem ama trai?*


Até mesmo os especialistas em comportamento humano e sexólogos têm dificuldade em conceituar a infidelidade porque ela esbarra naquilo que nos individualiza, como nossa carga emocional, história de vida, dificuldades, limitações, angústias e querências as mais diversas, algumas até patológicas. 
A infidelidade requer uma visão tridimensional, "a da pessoa traída, a que trai e a terceira pessoa. Ela pressupõe a quebra do pacto de exclusividade na relação amorosa e gera sofrimento por ter que dividir o companheiro com outro alguém", afirma Clara Feldman, psicóloga, e autora dos livros "Sobre-vivendo à traição", "De Paixão e Cegueira" e "Encontro, uma Abordagem Humanista". 
Motivações não faltam para explicar a infidelidade. "Alguns argumentam que a qualidade do relacionamento não está boa, que se sentem insatisfeitos com a relação, outros porque apresentam a ‘síndrome do pavão’, aquele que seduz pelo simples fato de seduzir e depois abandona a pessoa. Esse tipo sente prazer com a traição e faz isso por necessidade de autoafirmação e pode chegar às raias do patológico. Um último grupo tem necessidade sexual compulsiva, gosta da adrenalina, do risco, inclusive de morte", enumera a especialista. 
Quem ama trai? "Trai, e muitas vezes não por razões ligadas ao relacionamento, que pode ser extremamente satisfatório, existir um sentimento de amor recíproco, intensidade na relação, mas mesmo assim, há espaço para a traição", diz Feldman. Mas no universo das traições existe espaço ainda para aquele tipo que só se sente seguro com a insegurança do outro. "O indivíduo trai e deixa sinais para que o outro perceba e se sinta inseguro em relação ao seu próprio valor. Ele trai com medo do outro traí-lo primeiro. Com isso o outro perde o foco em si e passa a se relacionar com aquilo que o outro quer que ele sinta. E vira uma relação doentia", diz a psicóloga. 
Regras
Não existem regras sobre quem trai mais, se o homem ou a mulher, mas "uma coisa é fato, o homem trai mais por razões ligadas à necessidade e a mulher quando se sente subnutrida amorosamente, quando o companheiro se torna agressivo, mal humorado e mantém atitudes depreciativas em relação à ela. Culturalmente o homem sente necessidade de afirmar a sua masculinidade, de se mostrar viril para os amigos, mostrar que transa com muitas mulheres diferentes. Questão de vaidade", enfatiza Feldman. 
A psicóloga cita o que chama de ética da traição. Aconselha a Bíblia a "não pecar por pensamentos, palavras, atos e omissões". Existem pessoas que se sentem traídas só quando existe sexo e outras com olhares. Mas quem cerceia a liberdade do outro corre mais riscos de ser traído. A pergunta é: em uma relação bem estruturada onde o diálogo permeia a relação, qual o dano que a traição por palavras, pensamento e omissões pode trazer?" questiona. 
Há dez anos, o sexólogo europeu Willy Passini pesquisou mais de mil mulheres e homens, perguntando o que eles preferiam: que seu parceiro transasse com ele pensando em outro ou transasse com outro pensando nele Resultado: Homens preferiam que as companheiras transassem com eles pensando em outro homem e as mulheres preferiam que seus parceiros transassem com outras pensando nelas. 
Infidelidade é um conceito abstrato 
“Tive oportunidade de atender pessoas que se confessavam voyer. Eram perversas porque sentiam prazer em ver o seu companheiro transando com outras pessoas, mas quando ele se envolviam e não contava para o parceiro, abalava a relação. Naquele momento se configurava o conceito de traição”, diz o sexólogo Gerson Lopes. 
Hoje existe infidelidade virtual 

Homens e mulheres que até fazem sexo pela Internet. “Nesse caso há infidelidade ou não? Além de ser polêmica no conjunto, ela é polêmica no conceito”, afirma o sexólogo. Tem infiel de todo jeito. “Uns são eternos conquistadores e não sustentam uma relação. A atração é mais forte que o envolvimento. Em uma relação saudável, ambos, passada a fase da paixão, terão que conviver com o lado escuro do outro”, diz o sexólogo. 
E nessa hora, vem o perigo. “As pessoas se envolvem com o ser idealizado, a ponto de transformá-lo em príncipe ou princesa. Quando descobrem o sapo ou a rã, acontece a desidealização. É quando a relação pode crescer”, pontua Lopes. 

Ana Elizabeth Diniz in. Amigos do Freud

domingo, 23 de dezembro de 2012

Papai Noel às avessas*



Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai  entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do  aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.


*Carlos Drummond de Andrade in. Poesia Completa. Ed. Nova Fronteira, 2007, p.25.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Os tempos da fotografia*


Com a invenção da fotografia, inventou-se também, de certa forma, a máquina do tempo. Não aquelas dos filmes de ficção científica, uma câmara repleta de inúmeros aparelhos estranhos onde personagens necessitavam entrar, serem conectados a um emaranhado de fios e, de repente, desaparecerem em meio a um denso véu de fumaça, para, a seguir, reaparecerem em algum outro lugar e época. Refiro-me à máquina do tempo enquanto máquina fotográfica e, especialmente, ao produto desses aparelhos: as imagens. Com elas, viajamos no tempo, em direção aos cenários e situações que nelas vemos representados; através de nossas lembranças, de nossa imaginação, viajamos ao passado e vivemos por instantes essa ilusão documental.


[...]

As imagens revelam seus significados quando ultrapassamos sua barreira iconográfica; quando recuperamos as histórias que, em sua forma fragmentária, trazem implícitas. Através da fotografia aprendemos, recordamos, e sempre criamos novas realidades. Imagens técnicas e imagens mentais interagem entre si e fluem ininterruptamente num fascinante processo de criação/construção de realidades – e de ficções.

[Fragmento]


Boris Kossoy in. “Os Tempos da Fotografia”. Ed. Ateliê, 2007, pp. 146-7.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A vida secreta do Sena*



Uma olhada rápida para o rio em Paris revela o que está acontecendo na França. Se não transborda por cima do cais de pedra no Ano-Novo, é porque os fazendeiros sofreram com a seca. Quando corre bem rápido, está alto e cor de chocolate em abril, é porque a temporada de esqui foi excelente. Os zeladores tiveram de abrir as comportas da eclusa no Marne para escoar a neve derretida. Quando a França está mais alegre, celebrando o bicentenário da revolução ou simplesmente o Dia da Bastilha, barcaças e brigues tumultuam o Sena a caminho dos fogos de artifício.

Pode-se avaliar a leva de turistas contando as cabeças por cima da amurada dos bateaux-mouches. Quando as barcaças estão tão carregadas de cascalho que a água espirra por cima do verdugo, a construção civil está em alta. Os observadores do Sena souberam que a França estava viciada na televisão americana quando a polícia começou a chispar pequenas lanças de patrulha, o piloto ereto ao volante, a caminho do almoço à Miami Vice.

E rio abaixo, além de Rouen, aquela olhada no Sena pode contar sobre o estado do mundo. Muito antes de a maioria das pessoas começar a pronunciar em família a nova palavra, perestroika, Jacques Mavel já sabia que a cortina cairia. Piloto de rio, ele viajava pelo mundo todos os dias, sem sair do Sena. Notou que os capitães marítimos soviéticos começaram de repete a sorrir e a falar com estranhos.

Desde o princípio, a alma francesa já flutuava nas águas do Sena. Em suas pontes floresce o amor; embaixo delas, vidas terminam. Ninguém sabe dizer com exatidão onde o rio começa, ou algo mais a respeito, mas ele flui no espírito de todos os românticos. Irrigou a pena de Maupassant e irrigou o lago de flores-de-lis de Monet.

Paris, já era a Cidade Luz muito antes de haver interruptores elétricos. A rayonnement, aquela radiância que os franceses sempre exibiram para os iluminados, emana dos rosas, laranjas e lampejos cintilados de sol mergulhado no Sena. Quando Baudelaire escreveu que tudo à sua volta não passava de “ordre et beauté; luxe, calme et volupté”, ele olhava para o rio da Île Saint-Louis.

[...]

Mas o rio não é sempre como os poetas descrevem, voluptuoso e imutável. No fim do inverno, seu temperamento muda. Basta uma pequena provocação para transbordar pelas pistas da Rive Gauche, engarrafando o trânsito desde Saint-Michel até a torre Eiffel. Em 1910, firmemente decido a machucar, chegou à altura dos joelhos nas lojas chiques da Champs-Elysées. Um século atrás, as plácidas margens de uma cidadezinha da Normandia, a correnteza engoliu Léopoldine, filha de Victor Hugo, que caiu de um barco e afundou com seus trajes domingueiros.

Por dois mil anos o Sena foi o canal de uma nação que leva sua alimentação a sério. Os grãos iam rio acima, carregamentos de vinho rio abaixo. Hoje em dia a maior parte dos alimentos viaja pelas estradas ou ferrovias, mas uma olhada para o Sena sugere que continua a ser, pelo menos, o trato digestivo da França. Quando alcança Paris, o rio carrega tantos detritos da civilização que é capaz de virar o estômago de qualquer rato de esgoto comum. Isso, claro, não desencoraja os nadadores que participam de competições da Notre-Dame até Neuilly, aflorando incólumes das águas. O Sena é sempre desconcertante.

Visitantes não se cansam do Sena. Gertrude Stein passeava com seus cães pelas margens do Sena. Henry Miller caminhava ao longo dele para curar seus excessos. Numa casa flutuante, Anaïs Nin levava seus excessos a novos níveis. Peixe era o primeiro prato do banquete móvel de Hemingway. Ele adorava ficar olhando os pescadores ao longo da passarela para pedestres da Ponte des Arts. “Era mais fácil pensar... vendo as pessoas fazendo algo que compreendiam” A ideia de sushi do Sena é bem repugnante, mas os caras continuam lá no fim da primavera, quando a pescaria é melhor.

A geração atual, embora talvez menos perdida que a de Hemingway, continua a vir para o Sena no verão para livra-se de inibições. Os parisienses ficam pelados e bronzeiam-se nas quentes margens de pedra. Escondem seus vinhos em sacos de papel pardo, só quando têm vergonha dos rótulos. Em certos pontos do cais, Paris é gay. Em outros, crianças e cachorros brincam. Idosos alimentadores de pombos ocupam os bancos durante o dia, mas amantes os tomam à noite.

Mesmo seus menores mistérios intrigam. Uma noite um sapato preto flutuou pelo lado de meu barco, seco por dentro, a sola boiando reta na superfície da água. Um número significante de parisienses insiste que consegue caminhar sobre a água. Será que um deles apareceria logo atrás, com passos largos? Meu vizinho rio acima, Pierre Richard, saiu-se bem como protagonista de um filme chamado O Alto Homem Louro com um Pé de Sapato Preto. Quem Sabe?

As pessoas marcam suas histórias com lembranças do Sena. Uma noite, em 1958, minha amiga Jo Menell estava na Pont-Neuf e vi formas misteriosas que pareciam toras de madeira flutuando às dúzias na correnteza rápida. A França estava em guerra para manter a Argélia sob sua asas, e as formas eram argelinos assassinados por fanáticos franceses, que compensavam o terror na Argélia com terror em Paris. Os corpos, conforme mandava a tradição, eram jogados no rio.

[...]

“O Sena é o primeiro grande receptáculo que abriga as vítimas de assassinato ou do desespero”, escreveu Fanny Trollope em 1836. “Mas não escapam por muito tempo da vigilância parisiense; uma enorme rede, esticada de um lado ao outro do rio em Saint-Cloud, recebe e retém qualquer coisa que desça com a água; e qualquer coisa que tenha alguma semelhança com a forma humana encontrada no meio do produto daquele lixo assustador é diariamente levada para La Morgue. Diariamente, porque é raro os melancólicos esquifes ficarem vinte e quatro horas desocupados; muitas vezes chegam até oito, dez, doze corpos juntos, na terrível caravana de Saint-Cloud.”

Hoje esses números diminuíram. Durante o ano de 1992 a polícia de Paris resgatou treze corpos do Sena. Salvaram outras vinte e três pessoas que caíram, acidentalmente ou de propósito. E retiraram nove carros. Foi um ano normal.

A rede de Saint-Cloud também foi retirada. Hoje em dia, só Deus sabe o que poderia arrebentá-la ou enchê-la, em minutos. Quando a correnteza está mais rápida, árvores enormes são carregadas rio abaixo, como aríetes. Outros itens, menores que árvores e às vezes impronunciáveis, também flutuam no Sena. Aqui, por exemplo, está uma breve amostra do diário de um jovem visitante de La Vieille, que ficou observando as águas durante meia hora: um colchão, inúmeras caixas de isopor, um porco inchado, várias camisinhas, peixes mortos, patos vivos, um aparelho de televisão, um casaco de alguém, calças de outro alguém, almoços de muita gente – em diversos estágios.

[Fragmento]

Mort Rosenblum in. “A vida secreta do Sena”. Ed. Rocco, 1998, pp. 13-17.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Receita de Mulher*


Por Josenias Silva
  
Lizzie Miller, manequim 42, modelo “plus size”

As muito magras que me perdoem, mas uma gordurinha é fundamental. Que haja qualquer coisa em que se possa pegar, qualquer coisa de verdadeiro, qualquer coisa de gostosura em tudo isso. Que haja graça e dança ao invés de culpa. Que tenha pernas, coxas, nádegas (como diria Vinicius de Moraes, nádegas é importantíssimo), barriguinha (por que não?), braços, seios etc. Mas acima de tudo, que haja presença de espírito, sorriso, tramas, que haja poesia em cada detalhe, em cada gesto mínimo. Enfim, que na (im)perfeição das formas possa estar a coisa mais bonita da criação, a mulher.



Coisa Bonita

Roberto Carlos/Erasmo Carlos


Amo você assim e não sei porque tanto sacrifício
Ginástica dieta não sei pra que tanto exercício
Olha eu não me incomodo um quilinho a mais não é antistético
Pode até me beijar pode me lamber que eu sou dietético
Não acho que é preciso comer de tudo que tem na mesa
Mas passar fome não contribui em nada para a beleza
Já no passado os mestres da arte diante da formosura
Não dispensava o charme de uma gordinha em sua pintura
Gosto de me encostar nesse seu decote quando te abraço
De ter onde pegar nessa maciez enquanto te amasso
Eu não sou massagista e não entendo nada de estética
Mas a nossa ginástica é mais gostosa e menos atlética
Coisa bonita, coisa gostosa, quem foi que disse que tem
Que ser magra pra ser formosa? Coisa bonita, coisa gostosa,
Você é linda, é do jeito que eu gosto, é maravilhosa.


in. Roberto Carlos, CBS, 1993.


Humaninhos*



Darwin nos informou que somos primos dos macacos, e não dos anjos. Depois, ficamos sabendo que vínhamos da selva africana e que nenhuma cegonha nos tinha trazido de Paris. E não faz muito tempo ficamos sabendo que nossos genes são quase iguaizinhos aos genes dos ratos.

Já não sabemos se somos obras-primas de Deus ou piadas do Diabo. Nós, os humaninhos:

os exterminadores de tudo,
os caçadores do próximo,
os criadores da bomba atômica, da bomba de hidrogênio e da bomba de nêutrons, que é a mais saudável de todas porque liquida as pessoas, mas deixa as coisas intactas.
os únicos animais que inventam máquinas,
os únicos que vivem ao serviço das máquinas que inventam,
os únicos que devoram sua casa,
os únicos que envenenam a água que lhes dá de beber e a terra que lhes dá de comer,
os únicos capazes de alugar-se ou se vender ou de alugar ou vender os seus semelhantes,
os únicos que matam por prazer,
os únicos que torturam,
os únicos que violam.

E também
     os únicos que riem,
os únicos que sonham acordados,
os únicos que fazem seda da baba dos vermes,
os que convertem lixo em beleza,
os que descobrem cores que o arco-íris desconhece,
os que dão novas músicas às vozes do mundo
e criam palavras, para que não sejam mudas
nem a realidade nem sua memória.


*Eduardo Galeano in. Espelhos. Ed. LP&M, 2009, pp. 211-212.

sábado, 8 de dezembro de 2012

O Flautista de Hamelin*


É do inglês Robert Browning a mais famosa recriação da história do Flautista de Hamelin, um conto que cedo ou tarde aparece em nossa infância. O poema de Browning é brilhante; melhor ainda é o acontecimento misterioso que jaz por trás dele, talvez um episódio histórico, talvez uma “lenda urbana” da Idade Média. Teria acontecido no século 13 ou 14: o relato colhido pelos Irmãos Grimm fala em 26 de junho de 1284, mas o poema de Browning situa o fato em 22 de julho de 1376.

A cidade de Hamelin foi vítima de uma praga de ratos. As autoridades não sabiam mais o que fazer. Surgiu na cidade um sujeito que se apresentou como pegador-de-ratos (“Rattenfänger”), que era uma profissão informal muito comum na época. Tocando numa flauta, ele atraiu os ratos da cidade até o rio, onde todos se afogaram. Ao tentar receber o pagamento combinado, o prefeito recusou-se a pagar. Ele pegou a flauta, tocou outra música e atraiu todas as crianças da cidade, levando-as até uma montanha próxima, onde uma caverna misteriosa se abriu para que todas entrassem. E nunca mais ninguém teve notícias do Flautista ou das crianças. As crônicas históricas dizem que o episódio original envolveu apenas as crianças, e o extermínio dos ratos só foi anexado ao enredo alguns séculos depois. A lenda é uma dessas que crescem por justaposição de novos episódios a um episódio inicial. Hamelin vive ainda hoje dessa lenda; durante o verão, uma peça de teatro é montada ao ar livre para os turistas, todos os domingos. A cidade é cheia de estátuas, vitrais e monumentos recordando o Flautista.

Mas Hamelin não é a única. Brandenburgo conta a história de um tocador de realejo que levou as crianças da cidade para dentro de uma montanha; parece ser uma mera transposição de local, e não uma nova lenda. Outra lenda diz que na cidade de Erfurt, em 1257, cerca de mil crianças se agruparam no centro da cidade, cantando e dançando, e partiram assim de estrada afora, até chegarem em Arnstadt, onde foram recolhidas até que seus pais as trouxessem de volta. História parecida com a de Hamelin é contada em Korneuburg, na Áustria, onde as crianças foram levadas num navio e vendidas como escravos em Constantinopla. Algumas versões dizem que a montanha onde as crianças sumiram (o monte Poppenberg) tinha um túnel que ia dar na Transilvânia, e elas passaram o resto da vida lá.

Episódios reais (pragas de ratos, a “Cruzada das Crianças”) podem ter servido de origem para a lenda, mas sua longevidade se deve sem dúvida a sua lição moral nítida (castigo pelo não-pagamento de um acordo), ao cruel nivelamento entre ratos e crianças, ao poder mágico da música, à figura arlequinal e enigmática do Flautista (que geralmente é descrito como vestindo uma roupa de faixas vermelhas e amarelas). O final em suspenso, com uma pergunta que não é respondida ao longo dos séculos (para onde foram as crianças?) garante à lenda um mistério inesgotável.

*Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O Caminhoneiro*

"O caminhoneiro". Já vi essa cena dezenas de vezes na Av. Duque de Caxias (zona norte de Teresina). 
Ontem resolvi registrá-la, pela câmera do celular. Foto: Daniel Solon

A Imagem me Lembra um poema de Mário Quintana:


Auto-retrato*

No retrato que me faço 
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

Às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

E, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

No final, que restará?
Um desenho de criança...
corrigido por um louco!

Mário Quintana in. "Nova Antologia Poética". Ed. Globo, 2007, p.138.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Frida*

Frida Kahlo (1907-1954)

Tina Modotti não está sozinha frente aos inquisidores. Está acompanhada, de cada braço, por seus camaradas Diego Rivera e Frida Kahlo: o imenso buda pintor e sua pequena Frida, pintora também, a melhor amiga de Tina, que parece uma misteriosa princesa do Oriente mas diz palavrões e bebe mais tequila que um mariachi de Jalisco.

Frida ri às gargalhadas e pinta esplêndidas telas desde o dia em que foi condenada à dor incessante.

A primeira dor ocorreu lá longe, na infância, quando seus pais a disfarçaram de anjo e ela quis voar com asas de palha; mas a dor de nunca acabar chegou num acidente de rua, quando um ferro de bonde cravou-se de um lado a outro em seu corpo, como uma lança, e triturou seus ossos. Desde então ela é uma dor que sobrevive. Foi operada, em vão, muitas vezes; e na cama de hospital começou a pintar seus auto-retratos, que são desesperadas homenagens à vida que lhe sobra.

Eduardo Galeano in. "Mulheres". Ed. l&pm, 2007, p.132.


Os três mal-amados*



O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

[Fragmento]


João Cabral de Melo Neto in. “Poesia Completa”. Ed. Nova Fronteira, 2007, pp. 35-40. 

sábado, 1 de dezembro de 2012

A misteriosa curva da vida*


Eu só comparo essa vida
À curva da letra S
Tem uma ponta que sobe
Tem outra ponta que desce
E a volta que dá no meio
Nem todo mundo conhece.

Pinto do Monteiro, poeta popular.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Balada de Robert Johnson*

Robert Johnson (1911-1938)


 (Balada de Robert Johnson / Álbum: Flavio Guimarães - 2005).

Seu mundo era rutilância 
Seu mundo era escuridão 
Seu nome era Robert Johnson
cantador d'outro Sertão 

Vinte e sete anos vividos 
lá nos Estados Unidos 
passou veloz como a luz 
Naquela terra sombria 
onde tristeza e poesia 
se dava o nome de Blues 

Sua mãe teve onze filhos 
seu pai ele nunca viu 
O mundo em que foi criado 
lembrava muito o Brasil 

Era neto de escravos 
dos negros fortes e bravos 
colhedores de algodão 
Nunca pisou numa escola 
escreveu com a viola 
e leu com o coração 

Dizem que foi o diabo 
quem lhe ensinou a tocar 
Em um encontro marcado 
numa noite sem luar 

Cruzando as estradas tortas 
daquelas veredas mortas 
chegou na encruzilhada 
Veio com a mão vazia 
e partiu com melodias 
porteio rima e tuá 

Outros garantem que é lenda 
que o diabo não existe 
Johnson só cantava blues 
por ser um poeta triste 

Impunhava o instrumento 
recitava um sentimento 
na sua vida andarilha 
E a tristeza era uma fera 
um cão negro, uma pantera 
farejando a sua trilha 

Correu estradas de ônibus 
de caminhão e de trem 
Hora cantando sozinho 
hora em dupla com alguém 

Andava dias inteiros 
ao lados dos companheiros 
sobre o sol mais escaldante 
Porém sempre se mantinha 
vestido com boa linha 
bem cuidado e elegante 

Buscando um namorada 
procurava as mais feiosas 
As mulheres solitárias 
carentes e carinhosas 

A mulher que lhe aceitava 
com todo gosto lhe dava 
o corpo a casa e a cama 
E ele deixava que ela 
julgar-se ser a mais bela 
na ilusão de quem a ama 

Uma noite numa festa 
tocava de madrugada 
E começou um namoro 
com uma mulher casada 

Sedutor e seduzido 
cantava como um sentido 
naquele corpo moreno 
Quando um copo alguém lhe deu 
ele pegou e bebeu 
sem saber que era veneno 

Saiu dali carregado 
para o quarto da pensão 
Morreu e deixou somente 
a mala e o violão 

Não levou fama nem glória 
não deixou nome na história 
não levou riso nem mágoa 
Foi um sopro de poeira 
uma nuvem passageira 
um nome escrito na água 

Foi assim que Robert Johnson 
passou pelo nosso mundo 
Brilhou durante alguns anos 
e apagou-se num segundo 

Não deixou seu nome escrito 
no mármore nem no granito 
nas armas nem nos brasões 

O que deixou para nós 
foram os versos e a voz 
e vinte e nove canções 


(Braulio Tavares/Sebastião da Silva)

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...