domingo, 31 de março de 2013

In vino, veritas*


“In vino, veritas"

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Baco, 2,03 m,  c 1496-1498
Michelangelo Buonarroti , 1475-1564
Museu Nacional de Bargello, Florença, Itália.


sábado, 30 de março de 2013

Por uma história social da leitura*


A leitura tem uma história. Não foi sempre a mesma em todos os lugares. Podemos imaginá-la como um processo direto de extrair informação de uma página, mas, considerando-a um pouco mais além, concordaríamos que a informação precisa ser peneirada, classificada e interpretada. Os esquemas interpretativos fazem parte de configurações culturais, que variam imensamente ao longo do tempo. Como nossos antepassados viviam em mundos mentais diferentes, deviam ler de maneira diferente, e a história da leitura pode ser tão complexa quanto a historia do pensamento. (...) Não existem vias diretas nem atalhos, porque a leitura não é uma coisa distinta, como uma constituição ou uma ordem social, que possa ser rastreada ao longo do tempo. Ê uma atividade que envolve uma relação específica – de um lado o leitor, de outro o texto. Ainda que os leitores e os textos tenham variado de acordo com as circunstâncias sociais e tecnológicas, a história da leitura não deve ser reduzida a uma cronologia dessas variações. Deve ultrapassá-las, para enfrentar o elemento de relação que se encontra no núcleo da questão: como leitores mutáveis interpretam textos variáveis? A pergunta tem um ar abstruso, mas muita coisa depende dela. Pense-se na freqüência com que a leitura alterou o curso da história – a leitura de Paulo por Lutero, a leitura de Hegel por Marx, a leitura de Marx por Mao. Esses pontos sobressaem num processo mais amplo e mais vasto: o esforço infindável do homem em encontrar sentido no mundo em torno e dentro dele mesmo. Se conseguíssemos compreender como ele lia, poderíamos vir a compreender melhor como ele entendia a vida, e, por essa via – a via histórica –, quem sabe chegaríamos a satisfazer uma parte de nosso próprio anseio por um sentido.

*Robert Darnton in. “O beijo de Lamourette”. Ed. Companhia das Letras, 2010, pp. 200-201.

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La liseuse, c 1895
Oil on Canvas 117cm x 81 cm
William Adolphe Bouguereau, 1825-1905.


sexta-feira, 29 de março de 2013

Em constante alegria com os livros*

(imagem: reprodução biblioteca Usp)


Depois de se afastar de atividades no governo, Michel se isola na torre do castelo da família, na região de Montaigne. No teto de sua biblioteca, grava frases em grego e latim de seus autores favoritos da Antiguidade. Passa a respirar diariamente aqueles nomes. Memoriza aqueles versos. Repete cada sentença. Comenta linha a linha aqueles autores vindos de muitos séculos. Incorpora-os. Dialoga com eles como quem conversa à mesa ou troca confissões em espaços de intimidade.
É esse o clima de fundo para a escrita de Ensaios, entre 1580 e 1588, que revolucionou a literatura em três pontos essenciais. Primeiro, ao criar um novo gênero literário homônimo, no qual a digressão é mais importante que o assunto. Segundo, por trazer à luz um dos primeiros pensadores ocidentais a incorporar, a partir dos relatos dos viajantes, o relativismo antropológico, e a refletir filosoficamente sobre os costumes dos índios brasileiros. Inspirando-se nas descrições de Jean de Léry, recém-chegado à França, compara-os aos sábios da Antiguidade grega. Terceiro: traz para o primeiro plano da literatura a interioridade e a consciência do autor. Como diz Montaigne ao leitor: “Eu mesmo sou a matéria deste livro.” Em um de seus impecáveis ensaios, cujo tema é justamente os livros, lemos uma de suas centenas de máximas: “Não faço nada sem alegria.”

É justamente essa frase em francês o ex libris que consta na primeira página de cada um dos 40 mil volumes da biblioteca pessoal doada pelo empresário José Mindlin e sua mulher Guita à Universidade de São Paulo (USP). Parte desse acervo pertencia ao bibliófilo Rubens Borba de Moraes, cuja biblioteca foi guardada pelo casal desde a sua morte. Mas antes dessa forma final, conhecida como brasiliana, quem guardava essas preciosidades era a própria casa de José e Guita, no Brooklin, em São Paulo. Espaço geograficamente muito distante das torres do castelo de Montaigne, mas muito próximo do nobre Michel, em seus mergulhos silenciosos na interioridade infinita dos livros.

Colecionador de obras raras

Por outro lado, um dos corações dessa brasiliana é a coleção de obras raras escritas pelos primeiros viajantes que percorreram e descreveram as terras brasileiras. Desse modo, além de viver, como Montaigne, em constante alegria com os livros, Mindlin refez o seu percurso em ordem inversa. Enquanto Montaigne sinaliza a boa nova dos novos costumes descobertos em além-mar e no Novo Mundo, Mindlin preserva todos os pontos de vista deixados por esses viajantes e naturalistas europeus do antigo continente, cujas obras, em sua heterogeneidade, são uma das maiores fontes de estudo e compreensão da natureza e da cultura dos povos que habitaram o Brasil entre os séculos 16 e 19.
Literaturas brasileira e portuguesa; relatos de viajantes e de naturalistas que escreveram sobre a terra brasilisem diversas línguas; manuscritos históricos e literários, tanto originais quanto provas tipográficas; periódicos; álbuns ilustrados; livros científicos e didáticos; edições valiosas de grandes obras da literatura nacional; compêndios de iconografia; livros de artistas; gravuras e muitas primeiras impressões e volumes autografados pelos próprios autores. Primeiro a biblioteca tomou o próprio espaço interior da casa dos Mindlin. Em seguida, ainda dentro dos seus domínios, ocupou duas construções, na parte dos fundos, climatizadas e concebidas para receber um a um os livros que iam se somando à coleção monumental.

Por fim, como o cavalheiro Michel deixou os serviços do Estado para se dedicar aos ensaios e ao convívio com os livros, ao se aposentar, em 1996, da Metal Leve, empresa que fundou e presidiu, Mindlin pôde se aprofundar nessa atividade que havia começado na adolescência: colecionar obras raras. Foi assim que conseguiu construir a maior e a mais importante biblioteca particular do Brasil. Diferentemente de outros colecionadores, ao tratar de Mindlin, percorre-nos sempre uma atmosfera de proximidade, criada por sua personalidade e sua ligação afetiva emblemática com os livros. Falar de Mindlin é sempre recompor o passado. Aguçar a memória para ler as entrelinhas dos gestos. Encontrar para cada expressão facial um livro. Um autor. Um volume. Uma palavra.
O mundo e a palma da mão

Toda biblioteca pessoal, antes de ser uma biblioteca, é pessoal. Uma extensão daquele que a criou. Cada livro, um vestígio de sua vida. Um livro não traduz apenas aquele que o escreveu. Contém em si todos os que o leram. Revela todos os que, de mãos em mãos, o preservaram. Mindlin sempre frisou que ele e a mulher nunca foram proprietários da biblioteca, aberta aos amigos e a quem quisesse visitá-la. Eram seus dois guardiães. Em sua casa, em primeiro plano, duas poltronas, a de José e a de Guita. Ao fundo, uma estante na qual os títulos se avolumavam. Destacava-se, na horizontal, a enorme edição dos desenhos de Debret sobre fauna e flora brasileiras, que depois ganhariam vida nas melhores páginas de Guimarães Rosa.
Lembro-me de Mindlin folheando a edição parisiense, saída dos prelos de Firmin Didot Frères, em 1834. Vejo-o cotejando os diversos volumes de Henri Ternaux-Compans sobre a descoberta da América, publicados em 1841. Ele passa o indicador pelas ranhuras gastas das gravuras, placidamente observando a gravura de um ritual antropófago descrito por Hans Staden, na edição de Marpurg e Kolben, de 1557. Pássaros, plantas, mamíferos e árvores pintados por Von Martius, nos diversos volumes da edição de Leipzig, de 1871. Imagino-o observando a cartografia de todas as ilhas do mundo, composta por Benedetto Bordone na edição vêneta de Francesco Di Leno, no início do século 16. Ainda hoje posso visualizá-lo, andando em companhia de Francisco Adolfo de Varnhagen, nas edições Laemmert, de 1854. Entrevejo-o a sós, analisando a coletânea de viagens de Fracanzano da Montalbodo, na edição de 1507, que noticia a viagem de Cabral, primeiro livro em que o Brasil foi mencionado.
De onde vem essa ambição de abranger o mundo em uma sala de leitura? Talvez o livro seja justamente a materialização dessa nostalgia da unidade inapreensível da vida. Isso porque o livro é a tecnologia mais revolucionária que jamais foi criada, pois consiste em converter, em um único gesto (a leitura) duas dimensões aparentemente inconciliáveis: o mundo e a palma da mão. É, desde o seu surgimento, uma maneira de exteriorizar o sistema nervoso central e a memória humana sob a forma de um objeto material. Por isso seu fascínio indescritível, que deu ensejo até à definição das chamadas religiões do livro.
A memória nos trai bem

Talvez possamos identificar esse desejo de conciliar duas magnitudes, amplidão mundana e interioridade reflexiva, logo nos primeiros passos de Mindlin. Sua primeira obra rara, comprada aos 13 anos, chama a atenção: Discurso Sobre a História Universal, de Bossuet, em uma edição de 1740. Estaríamos aqui diante de uma ânsia juvenil de englobar o mundo? O adolescente já intuía a vocação de colecionador de amplos voos que lhe caberia? Por que, em vez de jogar bola, começou a brincar, nessa idade tenra, com o orbe da Terra? O que descobriu em segredo entre páginas amarelecidas de outras eras? A história sacra narrada pelo grande pregador francês do século 17 confere um sentido de salvação à história humana. Por isso, é abrangente. Universal. Pretende descrever as motivações divinas que regem as vidas no interior do tempo. Reconverter o tempo do mundo em tempo histórico. Fazer os extremos se tocarem. O eterno e o instante. O cosmos e o ser humano. Como diria Jorge Luis Borges, o universo e a biblioteca.

Mindlin não mensurava os livros por uma distinção de raridade ou valor, mas de preciosidade. Distinguia os mais queridos. Os mais almejados. Os mais difíceis de ser obtidos valiam mais. Diferentemente do que muitos possam supor, mesmo tendo à mão as edições mais raras, Mindlin deixava em um lugar privilegiado de sua poltrona de leitura a obra de um de seus escritores favoritos: Marcel Proust. Não poderia ser diferente. Depois de Montaigne, apenas Proust conseguiu tocar aqueles espaços poéticos de pura intimidade e recolhimento, aquela região da vida que, em solidão povoada, materializa o próprio ato da leitura.
A busca do tempo perdido realizada por Proust é também uma busca da relação entre verdade e imaginação. Desdobra-se naqueles espaços de devaneio, nos quais somos o que poderíamos vir a nos tornar no futuro e seremos o que está virtualmente inscrito em um passado hipotético que ignoramos. Por isso, a memória nos trai. Mas nos trai maravilhosamente bem, pois há muitos momentos recordados que têm mais força e espessura vital do que os momentos vividos. Isso não diminui em nada a vida de quem se entrega à doce traição da leitura, às minúsculas infrações dos livros, nos quais nos separamos da vida cotidiana por um tempo para vivermos uma espécie de isolamento feliz e consentido.
As impressões digitais

Penso aqui se toda essa obra deixada por Mindlin não foi um gesto proustiano de redescobrir o tempo e revivê-lo, em espirais cada vez mais vastas, transformando o passado imaginado em uma realidade presente. O lampejo do primeiro livro, comprado aos 13 anos, é a marca da memória por meio da qual Mindlin conseguiu iluminar a si com mais força. Tornou o passado ainda mais presente aos seus olhos, cercado pelos objetos que amava, reverberando em círculos. Assim, repetiu não apenas a raridade de seu primeiro Bossuet, mas também o seu conteúdo. Traduziu a história universal de homens anônimos na forma universal singularizada de um indivíduo e de sua biblioteca.
O belo prédio que agora abriga a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), no campus da USP, foi concebido por Eduardo de Almeida e Rodrigo Mindlin Loeb, que se inspiraram na New York Public Library e na Biblioteca Nacional de Paris. Alguns andares circulares guardam a brasiliana, como a biblioteca hexagonal sonhada por Borges.
Caminho por seus corredores, toco as lombadas gastas, observo em perspectiva a forma indefinida que a infinidade de livros cria quando abertos ao horizonte. Os círculos concêntricos se espelham, no interior das paredes de vidro. As impressões digitais de Mindlin continuarão aqui. Escritas em formas invisíveis, como na indefectível torre de Montaigne. E ele, sentado, nas poltronas de couro do saguão. Agora ele se mistura aos buritis de uma edição autografada por Guimarães Rosa, às anotações minuciosas de Manuel Bandeira, aos desenhos infantis de Oswald de Andrade, às falenas de uma edição de 1870, à caligrafia das anotações às margens de Machado.
Com alegria

Como dizia Mindlin, o vírus do amor aos livros é incurável. É preciso inoculá-lo no maior número possível de pessoas. Eu menti. Infelizmente, nunca conheci José Mindlin. O que fiz nestas linhas foi um exercício de admiração, como os do filósofo romeno Emil Cioran. Esboços de intimidade e de leituras incorporadas. Marcas de fisionomias alheias que incorporamos sem as ter conhecido. Porém, em outra ordem de realidade, não tenho dúvida de que um dia estive na casa dos Mindlin e folheei as primeiras edições de alguns dos seus maiores escritores. Naveguei pelo Atlântico, cruzei tempestades, naufraguei em meio a canibais, observei a fauna e a flora das costas brasileiras no século 16. E agora, ao atravessar o umbral da brasiliana, é a torre de Michel que se abre e fecha suas portas às minhas costas. Para que em silêncio eu possa povoar esse labirinto que no conduz à liberdade.
Por mais monumental que seja o edifício. Por mais grandiosa que seja a erudição. Por mais preciosas que ressoem as raridades que se espalham nessas estantes, em nenhum momento perco de vista que tudo começou com alegria.
*Rodrigo Petrônio in. “Eu&Fim de Semana” . Valor Econômico, 22/3/2013.

domingo, 24 de março de 2013

A cidade e as esfinges*


Toda a fauna das imaginações com sua vegetação marinha, como através de uma cabeleira de sombra se perde e se perpetua nas zonas mal aclaradas da atividade humana. Lá é que aparecem os grandes faróis espirituais, vizinhos, pela forma, de sinais menos puros. Uma fraqueza humana abre a porta do mistério e lá estamos, nos reinos da sombra. Um passo em falso, uma sílaba engasgada revelam o pensamento de um homem. Há na inquietação dos lugares fechaduras que se trancam sobre o infinito. Lá onde se persegue a atividade mais equivoca dos seres vivos, o inanimado se reveste, às vezes, dum reflexo de clarões, e mais segredos móveis: nossas cidades são assim povoadas por esfinges desconhecidas que não detêm o passante sonhador se ele não volta para elas sua distração meditativa, esfinges que não lhe colocam questões mortais. Mas, caso ele saiba advinhá-las, então este sábio que as interroga irá sondar ainda, novamente, seus próprios abismos graças a esses monstros sem rosto. A luz moderna do insólito: eis o que doravante irá retê-lo.


*Louis Aragon in. “O Camponês de Paris”. Ed. Imago, 1996, pp. 43-44.

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Churchgate Station, Western Railroad Line, Bombay, India, 1995.
Gelatin silver print. 21 3/8 x 31 1/2 in. (54.3 x 80 cm).
Photo: Sebastião Salgado


sábado, 23 de março de 2013

O olho da história*


Ao ocupar-se da narrativa histórica constituída pelas fotografias de imprensa, o historiador não pode situar-se como mero espectador dos fatos passados, tomando tais imagens como janelas que se abrem aos acontecimentos. Ao contrário, há de se posicionar criticamente em relação às operações conceituais e práticas que envolvem a produção, a circulação, o consumo e o agenciamento das fotografias de imprensa pelos sujeitos envolvidos em tais operações: fotógrafos, editores, jornalistas, público etc. Ao julgar tais fotografias como imagens-monumento e imagens-documento, a análise historiográfica vai de encontro às memórias construídas sobre os acontecimentos, desmontando-as, desnaturalizando-as, apontando para seu caráter de construção, comprometimento e subjetividade.

*Ana Maria Mauad in. “História e Imprensa: representações culturais e práticas políticas”. Ed. DP&A, 2006, p. 381.

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Menina de cinco anos rejeita o cumprimento do presidente João Figueiredo em plena ditadura militar no Brasil /Cerimônia no Palácio da Liberdade, Belo Horizonte, 1979. Photo: Guinaldo Nicolaevsky.


O sentido do passado*


Todo ser humano tem consciência do passado (definido como o período imediatamente anterior aos eventos registrados na memória de um indivíduo) em virtude de viver com pessoas mais velhas. Provavelmente todas as sociedades que interessam ao historiador tenham um passado, pois mesmo as colônias mais inovadoras são povoadas por pessoas oriundas de alguma sociedade que já conta uma longa história. Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado (ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana. O problema para os historiadores é analisar a natureza desse “sentido do passado” na sociedade e localizar suas mudanças e transformações.

*Eric Hobsbawm in. “Sobre História”. Ed. Companhia das Letras, 1998, p.22.

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Eric J. Hobsbawm (1917-2012)


A fala dos passos perdidos*


Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social de privação de lugar – uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas relações e os cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a Cidade.

*Michel de Certeau in. “A invenção do cotidiano: artes de fazer”. Ed. Vozes, 2008, p. 183.

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domingo, 17 de março de 2013

O medo da noite*


Era uma cidade pequena e pacata. Vivia-se ali uma vida sem sobressaltos, mas houve uma época em que pessoas, cada vez mais numerosas, começaram a ser atacadas por surtos de insônia e medo. Deitavam-se à hora habitual mas não conseguiam adormecer. Enquanto maridos ou esposas ressonavam em paz, ao lado, esposas ou maridos retorciam-se sobre o colchão, ora de um lado, ora do outro, fitando as telhas do teto ou os traços à meia-luz da janela fechada, por onde se infiltrava um pouco da luz da rua. O sino próximo batia uma hora. Depois duas. Depois três. A madrugada avançava e as pessoas sofriam, de olhos abertos e com a mente em redemoinho. De nada adiantava a água com açúcar, o chá quente de camomila; de nada adiantava a garrafa de vinho sorvida sem prazer, o meio litro de uísque engolido como quem quer ganhar uma aposta. O sono não vinha.

Vinha a insônia, e com ela o medo da solidão, o medo da noite, o medo inexplicável daquela cidade que durante a noite parecia morta. Médicos ficavam sem ter o que receitar, esgotados todos os recursos de sua farmacopéia artesanal. Mulheres com olheiras despejavam lágrimas; homens embrutecidos pela incapacidade de dormir praguejavam, brigavam no trabalho, perdiam o emprego.

Alguns fizeram uma descoberta. Era melhor fingir que estava tudo normal e, madrugada afora, escancarar as janelas da rua, acender todas as luzes, agir como se fosse a horinha do anoitecer.  Os outros insones viam aquela única casa iluminada e saíam para a rua, levavam para a calçada suas cadeiras, sentavam-se ali e ficavam olhando aquela sala luminosa e colorida onde alguém lia um jornal ou regava flores.

A administração pública resolveu intervir; já eram muitas centenas os insones. E foi modificado o horário de funcionamento de alguns edifícios públicos: a cadeia, o hospital, o manicômio. Logo estes se revelaram ímãs poderosos para atrair o deserdados do sono. Naqueles prédios, sempre havia uma ala funcionando a todo vapor durante a madrugada, com luzes acesas, janelas escancaradas para a platéia de notívagos, por fim apaziguados, sentados no meio-fio, em banquinhos, em cadeiras de plástico de botequim, cadeiras de balanço. Trazidas de casa. Quem passasse na rua veria as pequenas multidões dos perseguidos da noite contemplando as enfermeiras que limpavam um doente, o interrogatório brutal de um ladrão de cavalos, ou as rotinas insensatas dos loucos do hospício, talvez os que aderiram com mais entusiasmo àquela reviravolta no mundo dos relógios; dormiam de dia e passavam a noite representando, conforme lhes dava na telha, a novelazinha de suas vidas para a platéia dos órfãos do sono.


*Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

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Moonlit Night on the Crimea, Gurzuf, 1839.
Oil on canvas, 101 x 136 cm.
Ivan K. Aivazovskii, 1817-1900.



sexta-feira, 15 de março de 2013

A Noite*



Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.

*Eduardo Galeano in. “Mulheres”. Ed. l&pm, 2007, p.27.

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"Por ti" Acrílico / Lienzo 25 x 25 cm.
Nicolleta Tomas Caravia (Madrid, 1963).


quinta-feira, 14 de março de 2013

Amar*


Não é tarefa fácil amar alguém. É preciso ter uma energia, uma curiosidade, uma cegueira... Há até um momento, bem no início, em que é preciso saltar por cima de um precipício: se refletimos, não o fazemos.

*Jean-Paul Sartre in. “A Náusea”. Ed. Círculo do Livro, 1985, p. 219.

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Bacco e Ariana, c 1505-1510.
Altorilievo in marmo di Carrara, 71 x 55 cm.
Tullio Lombardo, 1455-1532.


Gotas de ceticismo*


____ geralmente se pode afirmar o seguinte acerca dos homens: que são ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, fogem dos perigos, são ávidos de ganhar e, enquanto lhes fizeres bem, pertencem inteiramente a ti, te oferecem o sangue, o patrimônio, a vida e os filhos, como disse acima, desde que o perigo esteja distante; mas, quando precisas deles, revoltam-se. (...) Os homens têm menos receio de ofender a quem se faz amar do que a outro que se faça temer; pois o amor é mantido por vínculos de conhecimento, o qual, sendo os homens perversos, é rompido sempre que lhe interessa, enquanto o temor é mantido pelo medo ao castigo, que nunca te abandona.


*Nicoló Machiavelli in. “O Príncipe”. Ed. Martins Fontes, 1996, p.80.

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Judith Beheading Holofernes, c. 1598. 
Oleo sobre tela, 54 3/4 x 76 3/4 in.
Michelangelo Merisi da Caravaggio, 1571-1610.


domingo, 10 de março de 2013

As intermitências da morte*


Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos. E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos. No dia seguinte, porém, deu-se conta de que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se via sítio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não tinha ouvido e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadiços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tomou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô. Caíram as escamas dos olhos do pai, viu a verdade e a sua luz, e no mesmo instante foi pedir perdão ao progenitor e quando chegou a hora da ceia por suas próprias mãos o ajudou a sentar-se na cadeira, por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu querido pai já não.


*José Saramago in. “As intermitências da morte.” Ed. Companhia das Letras, 2005.

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Homem Velho com a Cabeça em Suas Mãos, 1882.
Vincent van Gogh, 1853-1890.


sábado, 9 de março de 2013

A vida dos homens infames*


Este não é um livro de história. (...) É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encontradas por acaso em livros e documentos. (...). Não é uma compilação de retratos que se lerá aqui : são armadilhas, armas, gritos, gestos, atitudes, astúcias, intrigas cujas palavras foram os instrumentos. Vidas reais foram “desempenhadas” nestas poucas frases; não quero dizer com isso que elas ali foram figuradas, mas que, de fato, sua liberdade, sua infelicidade, com freqüência sua morte, em todo caso seu destino foram, ali, ao menos em parte, decididos. Esses discursos realmente atravessaram vidas; essas existências foram efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras.

Para que alguma coisa delas chegue até nós, foi preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem de outro lugar. O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto. (...) Todas essas vidas destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com freqüência enigmáticos – a partir do momento de seu contato instantâneo com o poder. (...).

Quis, em suma, reunir alguns rudimentos para uma lenda dos homens obscuros, a partir dos discursos que, na desgraça ou na raiva, elas trocaram com o poder. (...) Divirtamo-nos, se quisermos, vendo aí uma revanche: a chance que permite que essas pessoas absolutamente sem glória surjam do meio de tantos mortos, gesticulem ainda, continuem manifestando sua raiva, sua aflição ou sua invencível obstinação em divagar, compensa talvez o azar que lançara sobre elas, apesar de sua modéstia e de seu anonimato, o raio do poder.

Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobreviveram do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui, juntar alguns restos.


*Michel Foucault in. “Estratégia, poder-saber”. Ed. Forense Universitária, 2003, pp. 203 – 222.

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Filme : Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma soeur et mon frère... (1976, René Allio).


quinta-feira, 7 de março de 2013

A colonização da mulher*


A invasão do cenário urbano pelas mulheres, no entanto, não traduz um abrandamento das exigências morais, como atesta a permanência de antigos tabus como o da virgindade. Ao contrário, quanto mais ela escapa da esfera privada da vida doméstica, tanto mais a sociedade burguesa lança sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho. Todo um discurso moralista e filantrópico acena para ela, de vários pontos do social, com o perigo da prostituição e da perdição diante do menor deslize. (...) Vários procedimentos estratégicos masculinos, acordos tácitos, segredos não confessados tentam impedir sua livre circulação nos espaços públicos ou a assimilação de práticas que o imaginário burguês situou nas fronteiras entre a liberdade e a interdição.

*Margareth Rago in. “Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar”. Ed. Paz & Terra, 1997, p. 63.

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Photo: Washington, D.C., circa 1919.


quarta-feira, 6 de março de 2013

As mulheres dos Deuses*


Ruth Landes, antropóloga norte-americana, vem ao Brasil em 1939. Ela quer conhecer a vida dos negros num país sem racismo. No Rio de Janeiro, é recebida pelo ministro Osvaldo Aranha. O ministro explica a ela que o governo se propõe a limpar a raça brasileira, suja de sangue negro, porque o sangue negro tem a culpa do atraso nacional.

Do Rio, Ruth viaja para a Bahia. Os negros são ampla maioria nesta cidade, onde outrora tiveram seu trono os vice-reis opulentos de açúcar e de escravos, e negro é tudo o que aqui vale a pena, da religião até a comida, passando pela música. E mesmo assim, na Bahia todo mundo acha, e os negros também, que a pele clara é de boa qualidade. Todo mundo, não: Ruth descobre o orgulho da negritude nas mulheres dos templos africanos.

Nesses tempos são quase sempre mulheres, sacerdotisas negras, que recebem em seus corpos os deuses vindos da África. Resplandecentes e redondas como balas de canhão, oferecem aos deuses seus corpos amplos, que parecem casas onde dá prazer chegar e ficar. Nelas entram os deuses, e nelas dançam. Das mãos das sacerdotisas possuídas o povo recebe ânimo e consolo; e de suas bocas escuta as vozes do destino.

As sacerdotisas negras da Bahia aceitam amantes, não maridos. O casamento dá prestígio, mas tira a liberdade e a alegria. Nenhuma se interessa em formalizar o casamento frente ao padre ou ao juiz: nenhuma quer ser esposada esposa, senhora fulano. Cabeça erguida, lânguido balançar: as sacerdotisas se movem como rainhas da Criação. Elas condenam seus homens ao incomparável tormento de sentir ciúmes dos deuses.

*Eduardo Galeano in. “Mulheres”. Ed. l&pm, 2007, pp. 135-136.

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D. Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe do Terreiro Axé Opô Afonjá, 1948.
Photo: Pierre Verger, 1902-1996.


A Autoridade*


Em épocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saiam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo.

Assim era a vida entre os índios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los.

Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.


*Eduardo Galeano in. “Mulheres”. Ed. l&pm, 2007, p. 11.

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Photo: Pedro Martinelli


terça-feira, 5 de março de 2013

Embriagai-vos*


É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo, que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso. Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se. E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: “É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso! Com vinho, poesia ou virtude, a escolher”

*Charles Baudelaire in. “O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa”. Ed. Imago, 1995, p. 21.

____ Bacante:

Brecha das Almas*


No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que a Fábula ou a História contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição dum avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?

*Eça de Queirós in. “O Mandarim”. Ed. Neolivros, 2008, p.07.

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Photo: Don Hong-Oai, (China, 1922).


sábado, 2 de março de 2013

Filosofia*


A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo

Maurice Merleau-Ponty, 1908-1961.




Livros*


Os livros são pequenos pedaços do incomensurável.

Stefan Zweig, 1881-1942.

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Das Lesende Mädchen,1844.
Oil on canvas, (31,8 X 24,1cm).
Johann Georg Meyer von Bremen, 1813-1883.


sexta-feira, 1 de março de 2013

Mousikè e pavor*


O pavor nocturnus. Ruído, mordiscar de arganazes, de formigas, gotas de água de torneira ou de calha, respiração no escuro, lamentos misteriosos, gritos abafados, silêncio que não responde repentinamente à norma do som do silêncio do lugar, despertador, ramos batendo ou estalar de chuva sobre o teto, galo.

Pavor diurnos. No santuário. Em um corredor da rua Sébastien-Bottin durante vinte e cinco anos: não há ninguém e no entanto falamos em voz baixa. Cochichos de monges. Risos espremidos às vezes. Somos manequins de vime, o que os romanos chamavam larva, cujos fios são manipulados pelos mortos mais antigos, mais antepassados.

*Pascal Quignard in. “Ódio à música”. Ed. Rocco, 1999, p. 17.

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Photo: Don Hong-Oai, (China, 1922).


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