sexta-feira, 18 de outubro de 2013

IMPÉRIOS l Todos os impérios que já existiram, em seus discursos oficiais, afirmaram não ser como os outros, explicaram que suas circunstâncias são especiais, que existem com a missão de educar, civilizar e instaurar a ordem e a democracia, e que só em último caso recorrem à força. Além disso, o que é mais triste, sempre aparece um coro de intelectuais de boa vontade para dizer palavras pacificadoras acerca de impérios benignos e altruístas, como se não devêssemos confiar na evidencia que nossos próprios olhos nos oferecem quando contemplamos a destruição, a miséria e a morte trazidas pela mais recente “mission civilisatrice.” l Edward Said. In. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Ed. Companhia das Letras, 2007, p.17.

Photo l Sebastião Salgado

Trabalhadores da Mina de Carvão. Dhanbad, Bihar, Ìndia.1989. 


quarta-feira, 14 de agosto de 2013


Photo l Two young ballet dancers, Violet Hutchinson aged 8, and Betty Putt aged 7, rehearsing in a back garden in poplar, East London, 1935. (Fox Photos Getty)

Janela sobre o corpo

A igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.

Eduardo Galeano. In. “As Palavras Andantes”. Ed.l&pm, 2007, p.138.


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Eros, c. 1817.
Pierre Cartellier (1757-1831)
Parigi – Louvre

"Eros, para os gregos, era uma divindade muito forte. Eros ligado à Afrodite é uma força universal, uma força que aproximava todos os homens, uma força social, porque a vinculação entre os homens da cidade - na definição de Aristóteles, 'o homem é um ser político' - a vida política era uma vida erotizada. Em lugar da multidão, da multidão anônima, o homem tinha vínculos de afeto profundo. 

Hoje, se nós caminhamos pela rua, estamos dentro da multidão completamente sós. Não há ninguém por nós. Se somos agredidos, é recomendação da própria polícia que não se intervenha num conflito em que não se está pessoalmente envolvido. Isto significa que, dentro da multidão, podemos ser agredidos e podemos ser até mortos sem que ninguém nos socorra. A vida atual é uma vida efetivamente deserotizada."

Donaldo Schüler, Doutor em Letras, escritor e tradutor brasileiro
Fonte: Fronteiras do Pensamento



domingo, 4 de agosto de 2013

Photo: Édouard Boubat, 1923-1999

Durkheim disse uma frase muito justa: "A lei segue os costumes". Isso quer dizer que a lei só aparece depois. Primeiro, há algo que é vivido, depois surge uma maneira de pôr ordem nesse vivido. Mas, o problema que enfrentamos cada vez mais é que os diversos discursos, nas diversas instâncias do saber, são totalmente abstratizados, são tornados abstratos da experiência vital. Tomemos a palavra abstratizado ou abstratização no seu sentido simples: retirar-se do vivido. 

O pensamento contemporâneo não está mais organicamente ligado ao vivido: pelo contrário, está totalmente desligado. Assim, há que voltar à experiência vital, voltar a uma atitude que é uma atitude radical. Aliás, lembro que os grandes pensadores foram os que tiveram um pensamento radical, de raiz. É o caso de Marx. Seu pensamento reivindicava, para o século XIX, ir à raiz das coisas. Jung e Freud também tiveram o mesmo pensamento radical. 

Se há uma palavra que pode resumir o que vivemos e o que é nossa cultura, é a palavra "separação". O conceito hegeliano de separação nasceu de uma expressão filosófica, mas já a Bíblia – e é importante referir-se a ela como um dos livros fundadores dessa tradição cultural – diz: "Deus separou a luz das trevas". E é a partir dessa separação original que vai haver um processo de dicotomização do mundo.

A natureza e a cultura, o corpo e o espírito, o corporal e o espiritual. E tudo em conformidade com isso. Uma multiplicidade de dicotomizações que se baseia – e é o que chamo abstratização – no fato de que se vai separar as coisas, de que se vai analisá-las. Foi essa abstratização, foi esse procedimento analítico que fez o modelo ocidental do desenvolvimento científico e tecnológico. Mas talvez, agora, tenhamos chegado ao fim desse processo e algo diferente deverá surgir.

Michel Maffesoli, sociólogo francês
Fonte: Fronteiras do Pensamento | conferência "O espaço da memória”

quinta-feira, 1 de agosto de 2013



Nesta civilização onde as coisas importam cada vez mais e as pessoas cada vez menos, os fins foram seqüestrados pelos meios: as coisas te compram, o automóvel te governa, o computador te programa, a TV te vê.

Eduardo Galeano. In. “De Pernas pro Ar”. Ed. l&pm, 2011, p.255.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

L' Odalisca, c. 1841.
Jean-Jacques Pradier, 1790 - 1852
Musée des Beaux-Arts, Lyon



quinta-feira, 25 de julho de 2013

Ratto delle sabine, 1574-1580 (dett.)
Jean de Boulogne (1529 – 1608)
Loggia dei Lanzi, Firenze

domingo, 21 de julho de 2013

Les lieux de la mémoire*

Photo: Robert Doisneau (1912-1994).

______Memória é vida. Seus portadores são grupos de pessoas vivas, e por isso a memória está em permanente evolução. Ela está sujeita à dialética da lembrança e do esquecimento, inadvertida de suas deformações sucessivas e aberta a qualquer tipo de uso e manipulação. Às vezes fica latente por longos períodos, depois desperta subitamente. A história é a sempre incompleta e problemática reconstrução do que já não existe. A memória sempre pertence à nossa época e está intimamente ligada ao eterno presente; a história é uma representação do passado.

*Pierre Nora. In. Les lieux de la mémoire, 1984. p. 19.


O Estrangeiro*

O “romance noir” norte-americano conta histórias angustiadas de crime, carregadas de fatalidade, desesperança, e da sensação de quem está num mundo movido por forças incompreensíveis e inconscientes de si mesmas. Nada nos impede de ver dessa maneira “O Estrangeiro” de Albert Camus. Ele é um equivalente filosoficamente mais denso das histórias policiais soturnas de James M. Cain, David Goodis, Horace McCoy. Lançado em 1942, sua repercussão crítica ao longo das décadas seguintes (aumentada com a concessão do Prêmio Nobel a Camus em 1957 e sua morte precoce, aos 46 anos, em 1960) foi associada à visão existencialista do mundo e à visão do absurdo.

Seria uma atividade tipo “o ovo ou a galinha” tentar descobrir se Camus lia romances policiais norte-americanos na Argélia ou se via os “filmes noir” dos anos 1940. Em muitos desses filmes encontramos perfeitos equivalentes do Meursault de seu livro: indivíduos sem um projeto de vida, sem um propósito, vivendo para o presente e aceitando, meio atordoados, o que o presente lhes impõe. Não têm ambições nem fazem planos para o futuro; não são capazes de grandes afetos nem de grandes ódios; avançam pela vida como que anestesiados, meio indiferentes, cultivando pequenos objetivos – arranjar algum dinheiro, ter onde dormir, comer sem fome, amar sem amor.

Meursault é assim, e é até surpreendente que uma garota como Marie Cardona queira casar com ele. A resposta dele é típica: concorda em casar com ela, “se isso a faz feliz”, mas dá a entender que nunca tomaria a iniciativa de pedi-la, e que se outra mulher lhe fizesse a proposta ele provavelmente aceitaria também. A passividade de Meursault o conduz ao crime e à condenação, quando todas as provas, em retrospecto, parecem defini-lo como um homem frio, insensível, cruel. Ele é o indivíduo alienado, disponível, sem projeto, exposto ao vento das vontades alheias, que podem levá-lo em qualquer direção. Atentados políticos são muitas vezes praticados por gente assim, gente como Lee Oswald, Sirhan Sirhan, Ali Agca. Foram soprados por uma doutrina assim como um barco é soprado pelo vento, mas essa doutrina lhes é essencialmente estranha.

“O Estrangeiro” é uma história de crime tipo “whydunit”, onde o que importa não é “quem” cometeu o crime nem “como”, e sim “por quê”. “Por causa do calor”, diz ele ao explicar ao tribunal por que abateu um árabe a tiros, na praia. Meursault é o homem absurdo, num mundo em que não chorar no enterro da mãe é tão crime quanto matar um homem. O livro se passa em Argel, mas não é difícil imaginá-lo nos EUA, a história de um rapaz do Bronx que mata um negro a tiros durante um passeio a Coney Island.


*Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O Ser para a Morte*


Photo: Ricky Brown

A publicidade da convivência cotidiana “conhece” a morte como uma ocorrência que sempre vem ao encontro, ou seja, como “casos de morte”. Esse ou aquele, próximo ou distante, “morre”. Desconhecidos “morrem” dia a dia, hora a hora. “A morte” vem ao encontro como um acontecimento conhecido, que ocorre dentro do mundo. Como tal, ela permanece na não-surpresa característica de tudo aquilo que vem ao encontro da cotidianidade. (...) O discurso pronunciado ou, no mais das vezes, “difuso” sobre a morte diz o seguinte: algum dia, por fim, também se morre mas, de imediato, não se é atingido pela morte.

*Martin Heidegger. In. “Ser e Tempo”. Ed. Vozes, 2005, pp.35. (v.2).

Da Morte dos Paradigmas*

Affonso Romano De Sant´Anna (BH-1937).

"A chamada 'pós-modernidade' é uma situação curiosíssima. Como falar de paradigmas dentro de um contexto cultural em que se tornou comum negar o paradigma? Teriam, os paradigmas, deixado de existir? Ou a negação do paradigma pertence a outro tipo de paradigma? A negação do paradigma pode ser analisada paradigmaticamente.

E, aí, começamos a fazer uma análise da teoria do discurso e da retórica que envolve essa questão. Thomas Kuhn perguntava: “Por que alguém pode se dedicar a resolver enigmas? Por que a sua libido se concentra nessa façanha? Como o seu imaginário se mobiliza para isso?”. No caso das ciências sociais ele dizia que talvez fosse o desejo de ser útil, de percorrer caminhos novos, a esperança de descobrir uma ordem ou a necessidade de pôr à prova o conhecido e estabelecido.

Eu acrescentaria que nessa questão do confronto com os paradigmas exauridos, paradigmas que não nos satisfazem, o cientista, o teórico e o artista se dedicam a resolver ou enfrentar este enigma, também, por uma questão pessoal. Ou seja, enquanto certos problemas não se transformam em problemas pessoais, nós não os enfrentamos com a devida coragem e audácia.

Dizia Hannah Arendt que se ela não conseguisse entender a lógica do nazismo, ela enlouqueceria, portanto, se dedicou a estudar isso. De alguma maneira, acho que o desafio hoje, diante da nossa cultura, é o mesmo: essa intersecção entre o sujeito e o seu tempo, o sujeito e o seu momento histórico.

A contemporaneidade se meteu em uma irremissível poética da dispersão. Foi uma grande conquista que a modernidade trouxe, e a pós-modernidade também, mas toda conquista implica o surgimento de novos problemas para manter o domínio e, quando o império vai além do que pode e expande suas fronteiras, dilui-se e começa o seu declínio.

Por isso, a situação da pós-modernidade, sobretudo, me faz lembrar de uma frase de Jean Luc Chalumeau que dizia que a nossa situação, hoje, lembra a de Alexandre, O Grande, que, depois de ter conquistado todo o mundo, só podia chorar e ficar deprimido por não ter mais nada o que conquistar. Pois nós acabamos de sair de um século mortal e mortífero. Morte de Deus, morte da história, morte do homem, morte da arte e quase morte da morte.

Nesse sentido, o vasto cemitério em que perambulamos, como zumbis, entre o sentido e o não sentido, complementa – e isso é grave – a mais devastadora orgia de sangue, destruição e guerras que a história já teve. Teorizar sobre a morte de certas categorias pode não fazer jorrar sangue no papel, mas sim apenas justificar a morte onde quer que ela esteja."


*Affonso Romano De Sant´Anna. In. Fronteiras do Pensamento

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Excesso de sentidos*

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

*Fernando Pessoa in. “Poesia de Álvaro de Campos”. Ed. Martin Claret, 2006, p. 208.
_______ 
“Primavera” Spring, c. 1992.
Katia Malizia, ( Italy – 1968).


terça-feira, 9 de julho de 2013

Abismo*

Serge Marshennikov, c.2008.

Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.

*Eduardo Galeano in. “Mulheres”. Ed. l&pm, 2007, p.28.



sexta-feira, 5 de julho de 2013

O Acaso dos Olhares*

a composição das cores não resume a vida.
há sentimentos intraduzíveis, amarguras perdidas no passado,
ânimos desfeitos pelos sonhos vagabundos.
não adianta exaltar o vermelho, apagar o cinza, confundir o branco com a paz.
os significados não testemunham a permanência.
cada olhar redefinido no susto conta uma história inesperada.
o jogo é da sorte e do azar,
os limites se inventam inutilmente,
os espelhos conservam segredos que os deuses desconhecem.
o labirinto é moradia aflita dos paraísos.

*Antonio Paulo Rezende in. A Astúcia de Ulisses

_______
Femme en pleurs, c. 1937.
Pablo Picasso, 1881-1973.




quarta-feira, 3 de julho de 2013

Roda viva*

_____A humanidade concordou em desconhecer que a morte seja também a juventude do mundo. De olhos vendados recusamo-nos a ver que só a morte incessantemente assegura um rejuvenescimento sem o qual a vida declinaria. Recusamo-nos a ver que a vida é a armadilha oferecida ao equilíbrio, que a vida é inteiramente instabilidade e desequilíbrio e que neles se precipita. É um movimento tumultuoso que incessantemente provoca a explosão, mas explosão incessante, que não cessa de esgotar, e que só pode prosseguir sob uma condição: a de que os seres que ela gera e cuja força explosiva está esgotada cedam o lugar a novos seres que entram na roda com nova força.

*Georges Bataille in. “O Erotismo”. Ed. Antígona, 1988, p.52.

________
Morning bouquet.
Alfred Guillou, 1884-1926


sexta-feira, 28 de junho de 2013

O fardo dos dias*

Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quadro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa”, isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou restabelecimento.

*Albert Camus in. “O Mito de Sísifo”. Ed. Record, 2010, p.27.
_______ 
Colheita, c.1880.
Julien Dupré, 1851-1910.




quarta-feira, 26 de junho de 2013

Oriente & Ocidente*

_______O Mundo nunca esteve tão pequeno como agora. O atual estágio de desenvolvimento das novas mídias de massa seguramente contribuiu para aproximar cada vez mais o homem “Ocidental” comum do homem “Oriental” comum. Uma batalha se trava em torno do controle material e simbólico da realidade. Mas o que são o “Ocidente” e o “Oriente” senão entidades geográficas e históricas construídas por densa carga discursiva e simbólica? Segundo Edward Said,

“(...) o Oriente não é um fato inerte da natureza. Ele não está meramente “ali”, assim como o próprio Ocidente tampouco está apenas “ali”. Devemos levar a sério a grande observação de Vico de que os homens fazem a sua história, de que só podem conhecer o que eles mesmos fizeram, e estendê-la à geografia: como entidades geográficas e culturais – para não falar de entidades históricas – , tais lugares, regiões, setores geográficos, como “Oriente” e o “Ocidente”, são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto, sustenta e, em certa medida, refletem uma à outra.”

Edward W. Said in. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Ed. Companhia das Letras, 2007, p.31.

_________
Make-up: Gene Ginno Alducente.
Photo: Tina Patni.


domingo, 16 de junho de 2013

Globalização, Bobalização*



Nesta civilização onde as coisas importam cada vez mais e as pessoas cada vez menos, os fins foram seqüestrados pelos meios: as coisas te compram, o automóvel te governa, o computador te programa, a Tv te vê. (...) As coisas têm atributos humanos, acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura de consumo fez da sociedade o mais lucrativo dos mercados. Os dolorosos vazios do peito são preenchidos com coisas ou com o sonho de possuí-las. E as coisas não se limitam a abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário. (...) Dizes-me quanto [e o quê] consomes, dir-te-ei quanto vales. (...).

*Eduardo Galeano in. “De Pernas pro Ar: a escola do mundo ao avesso”. Ed. l&pm, 2011, pp. 255-277.

A impunidade do sagrado motor*


Os direitos humanos se humilham aos pés dos direitos das máquinas. São cada vez mais numerosas as cidades, sobretudo cidades do sul, onde as pessoas são proibidas. Impunemente, os automóveis usurpam o espaço humano, envenenam o ar e, frequentemente, assassinam os intrusos que invadem seu território conquistado. Qual a diferença entre a violência que mata com motor e a violência que mata com faca ou bala? (...) A caçada aos que caminham integra as rotinas da vida cotidiana nas grandes cidades latino-americanas, onde a armadura de quatro rodas estimula a tradicional prepotência dos que mandam e dos que agem como se mandassem. A carteira de motorista equivale ao porte de arma e dá permissão para matar. Há cada vez mais energúmenos dispostos a esmagar quem lhes atravesse o caminho. Nestes últimos tempos, tempos de histeria da insegurança, à impune truculência sobre rodas soma-se o pânico dos assaltos e dos seqüestros. Torna-se cada vez mais perigoso, e cada vez menos freqüente, parar o carro diante da luz vermelha da sinaleira: em algumas cidades, a luz vermelha é como uma ordem de aceleração. As minorias privilegiadas, condenadas ao medo perpétuo, pisam no acelerador para fugir da realidade, e a realidade é essa coisa muito perigosa que espreita do outro lado dos vidros fechados do automóvel.


*Eduardo Galeano in. “De Pernas pro Ar: a escola do mundo ao avesso”. Ed. l&pm, 2011, pp. 237-250.

domingo, 9 de junho de 2013

Em tempos de copa*


Para a maior parte da humanidade hoje, onze homens jovens num campo de futebol é que personificam “o país”, o Estado, “o nosso povo”, e não os políticos, as constituições e as movimentações militares. Aparentemente, esses times nacionais são compostos de cidadãos nacionais. Mas todos nós sabemos que esses milionários dos esportes aparecem num contexto nacional apenas alguns dias por ano. Em sua principal ocupação, eles são mercenários transnacionais, regiamente pagos, quase todos a serviço de outros países. Os times aclamados a cada dia por um público nacional são montagens heterogêneas que só Deus sabe quantos países e raças, em outras palavras, daqueles que são reconhecidos como os melhores jogadores do mundo. Na maioria dos clubes nacionais bem-sucedidos há, por vezes, não mais que dois ou três jogadores nativos. Isso é lógico mesmo para torcedores racistas, pois o que eles querem acima de tudo é um clube vitorioso, ainda que não mais racialmente puro.


*Eric Hobsbawm in. “Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX”. Ed. Companhia das Letras, 2013, p. 52.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Os intelectuais: papel, função e paradoxo*


Sartre e Foucault em meio aos protestos de maio de 68

O “breve século XX” de revoluções e guerras de religião ideológica tornar-se-ia a era característica do engajamento político dos intelectuais. Eles não só defendiam suas próprias causas na época do antifascismo e depois do socialismo de Estado, mas também eram vistos dos dois lados como reconhecidos pesos pesados do intelecto.  Seu período de glória estendeu-se do fim da Segunda Guerra Mundial ao colapso do comunismo. Foi essa a grande época das mobilizações contra alguma coisa: contra a guerra nuclear, contra as últimas guerras imperiais da velha Europa e as primeiras do novo império mundial americano (Argélia, Suez, Cuba, Vietnã), contra o stalinismo, contra a invasão soviética da Hungria e da Tchecoslováquia, e assim por diante. Os intelectuais formavam a linha de frente de quase todas.

(...) Essa era do intelectual como principal face pública de oposição política recuou para o passado. Onde estão os grandes promotores de campanhas e signatários de manifestos? Com poucas e raras exceções, mais notavelmente o americano Noam Chomsky, estão calados ou mortos. Onde estão os celebrados maîtres à penser da França, os sucessores de Sartre, Marelau-Ponty, Camus e Raymond Aron, de Foucault, Althusser, Derrida e Bourdieu? Os ideólogos do fim do século XX preferiram abandonar a tarefa de buscar a razão e a mudança social, deixando-a para as operações automáticas de um mundo de indivíduos puramente racionais, supostamente maximizando seus benefícios através de um mercado que opera racionalmente e tem uma tendência natural, quando livre de interferência externa, a alcançar um equilíbrio duradouro. Numa sociedade de incessante entretenimento de massa, os ativistas agora acham os intelectuais menos úteis como fonte de inspiração duradoura de causas do que roqueiros e astros de cinema mundialmente famosos. Os filósofos já não têm condições de competir com Bono ou Eno, a não ser que se reclassifiquem como essa nova figura do novo mundo do espetáculo midiático – a “celebridade”. Vivemos uma nova era, ao menos até que o ruído universal de autoexpressão do Facebook e os ideais igualitários da internet produzam seu pleno efeito público.

O declínio dos grandes intelectuais protestativos deve-se, portanto, não apenas ao fim da Guerra Fria, mas à despolitização de cidadãos ocidentais num período de crescimento econômico e ao triunfo da sociedade de consumo. O trajeto que vai do ideal democrático da ágora ateniense às irresistíveis tentações de shopping center reduziu o espaço disponível para a grande força demoníaca dos séculos XIX e XX: a saber, a crença em que a ação política era o jeito de aperfeiçoar o mundo. A rigor, o objetivo da globalização neoliberal era precisamente reduzir o tamanho, o escopo e as intervenções públicas do Estado. Nisso, foi parcialmente bem-sucedida.


*Eric Hobsbawm in. “Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX”. Ed. Companhia das Letras, 2013, pp. 230-231.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Tempos Fraturados*

[no século xx] a combinação de tecnologias novas e consumo de massa não só criou o cenário cultural geral em que vivemos, mas também deu origem a sua melhor e mais original realização artística: o cinema. Vem daí a hegemonia dos Estados Unidos democratizados na aldeia global do século xx, sua originalidade nas formas de criação artística – literária, musical, teatral, misturando as tradições eruditas e subalternas –, mas também a escala do seu poder de corromper. O desenvolvimento de sociedades nas quais uma economia tecnoindustrializada imerge nossa vida em experiências universais, constantes e onipresentes de informação e produção cultural – de som, imagem, palavra, memória e símbolos – é, historicamente, inédito. Transformou totalmente nossa maneira de apreender a realidade e a produção de arte, sobretudo acabando com o tradicional status privilegiado das “artes” na velha sociedade burguesa, quer dizer, sua função como medida do que é bom e do que é ruim, como transmissoras de valores: verdade, beleza e catarse.

*Eric Hobsbawm in. “Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX”. Ed. Companhia das Letras, 2013, p. 14.

_______ 
Elvis I and II , c. 1963.
Andy Warhol, 1928 – 1987.



segunda-feira, 27 de maio de 2013

Igualdade na diversidade*



Menina no interior do Paraná, Brasil, 1996.
Photo: Sebastião Salgado


Tratamento igual não significa tratamento uniformizante, que desrespeita, padroniza e apaga as diferenças. O que se quer é uma igualdade que se constitua em diálogo entre os diferentes, capaz de explorar a riqueza que vem da pluralidade de tradições e de culturas. Enquanto a diversidade cultural for um obstáculo para o êxito escolar, não haverá respeito às diferenças, mas produção e reprodução das desigualdades.

Vera Maria Candau in. Sociedade, Educação e Cultura(s): questões e propostas. Ed. Vozes, 2002, p.71.

domingo, 19 de maio de 2013

A Papisa Joana*


Papesse Jeanne, c. 1695.


(...) uma personagem que nunca existiu, mas mesmo assim deixou traços na história. (...) [Papisa Joana], a mulher que teria ocupado o trono de são Pedro por volta de 855 e cuja existência é aventada por diversas hagiografias. Na realidade, ela só existiu num imaginário que tem inspirado os mais diferentes círculos até a época contemporânea. Sem existência concreta, essa papisa constitui porém um verdadeiro acontecimento, pois suscita uma convicção coletiva, fonte de comportamentos imitados. O relato conta o destino de uma mulher originaria da Inglaterra, mas nascida em Mogúncia, que se teria travestido para seguir o amante no mundo masculino dos estudos superiores. Ela obtém êxito no empreendimento e alcança em Roma um sucesso invejável, que lhe permite entrar para a hierarquia da Cúria e ser eleita papa. Seu suposto pontificado teria durado apenas dois anos, terminando por um escândalo, pois Joana não conseguia renunciar aos prazeres da carne. Para perplexidade de Roma, ei-la grávida. A moral da história triunfa quando Joana morre durante uma procissão, após ter dado à luz publicamente seu filho. Conta-se ainda que, depois desse episódio tenebroso, verifica-se sistematicamente o sexo dos papas a cada eleição. O fato serve, pois, para regulamentar o rito de entronização dos novos pontífices. Situada no século IX, essa história seria tida por verdade incontestável durante muito tempo, a partir do século XIII: “De 1250 a 1450 ou 1550, ao longo de dois ou três séculos, a Igreja crê e obriga a crer na existência de Joana, embora o episódio lhe seja um desdouro”.

(...) A Igreja Apostólica Romana é unânime em apresentar a história como autêntica, ainda que de algum modo ela comprometa a imagem de infalibilidade papal. Por volta de 1260, a narrativa das aventuras de Joana ganha amplitude com o “exemplum” do dominicano Estevão de Bourbon. No século XIII, isso tem muito que ver com a insistência na prédica, que exigia a multiplicação dos exemplos disponíveis. A história não aparece, nesse “exemplum”, como um assunto interno do pontificado, mas como “um delito cujo cacife aumenta-lhe a gravidade e estende-lhe o alcance”. (...) Nesse caso, a famosa ruptura entre verdade factual e lenda não parece tão simples de delimitar, pois a verdade de Joana é ao mesmo tempo aceita, estabelecida e posta fora de qualquer refutação. O paradoxo chega ao extremo quando o relato de Joana contribui para reforçar a noção de infalibilidade do pontífice. Todavia, no século XVI, os protestantes se apossam de Joana para lançar descrédito sobre Roma. Como o papa encarna o Anticristo, Joana se torna a prova viva da inversão satânica que reina na Cidade Eterna. Joana não se recuperará dessa guerra de religiões. Demonizada pelos luteranos, é abandonada pela Igreja oficial, que passa a ver nela pura lucubração. Contudo, se Joana deixa o palco da instituição religiosa, invade maciçamente o campo literário, onde faz uma segunda carreira, tornando-se fonte de inspiração até para os romancistas contemporâneos.

*François Dosse in. “O Desafio Biográfico: escrever uma vida”. Ed. Edusp, 2009, pp.146-147.

sábado, 18 de maio de 2013

Subjetividades*


Forças poderosas e estratégias insuspeitadas redesenham, a cada dia que passa, nosso rosto incerto no espelho do mundo. Face à vertigem das mutações em curso, sobretudo nessa matéria prima tão impalpável quanto incontornável a que chamamos de subjetividade, e a exemplo do que ocorreu desde a queda do muro de Berlim, não paramos de nos perguntar: o que se passou, o que terá acontecido que de repente tudo mudou, que já não nos reconhecemos no que ainda ontem constituía o mais trivial cotidiano? Aumenta nosso estranhamento com as maneiras emergentes de sentir, de pensar, de fantasiar, de amar, de sonhar, e cada vez mais vemo-nos às voltas com imensos aparelhos de codificação e captura, que sugam o estofo do que constituía, até há pouco, nossa mais intima espessura.

*Peter Pál Pelbart in. “A vertigem por um fio: políticas de subjetividade”. Ed. Iluminuras, 2000, p. 11.

__________ 
Le Desespere, c.1844-45.
Gustave Courbet, 1819-1877.
Óleo sobre tela, 45 cm x 55cm.


segunda-feira, 6 de maio de 2013

O cavaleiro invisível*



Dom Quixote e Sancho Pança, por Gustave Doré (1832 - 1883)


Um homem solitário, caseiro, beirando os cinqüentanos, cansado da vida pequena e vazia na qual nada acontece, resolve ir ao mundo em busca de aventura, justiça e amor.

A vida que vive não é a venturosa vida dos livros, é outra, enfadonha e triste. O melancólico senhor, habitante da região de La Mancha, na Espanha, mergulhou nas histórias de cavalaria, a elas dedicou seu tempo e sua alma, de tal modo que esqueceu o mundo real. 

Vendeu até mesmo parte de suas terras, que não eram tantas, para comprar volumes e mais volumes de livros de cavaleiros andantes.

O valoroso fidalgo, de modestas posses, alto e seco de carnes, revolta-se: é preciso espelhar o sonho na realidade, plantar uma flor no solo ressequido da realidade.

Alonso Quijano vai ao mundo à procura daquilo que mudará o imóvel destino, quer reviver em si as lendas da cavalaria, e tecer outras, delas extraindo glória, reconhecimeno e o amor de sua amada, a não menos inventada Dulcineia del Toboso.

O que nos diz o Quixote é que a vida cotidiana é insuficiente. Falta vida à vidinha.

A figura imortal criada por Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1615) é o resumo da alma humana em suas maravilhas, esperanças, desesperos, contradições e tragédias. 

O Cavaleiro da Triste Figura saiu pelas estradas poeirentas e bosques da Espanha para resgatar os oprimidos, dar ânimo aos infelizes, levantar os desvalidos, socorrer os caídos, lutar contra todas as injustiças, e para salvar a si mesmo. 

Montado no magro Rocinante ele vai, armado cavaleiro andante, com escudo, espada e lança, tendo por companheiro Sancho Pança, meio louco e meio sensato como o amo, montado em seu jumento.

A vida tal como é não basta. É necessário inventar outra, erguer a aurora da escuridão. É preciso viver intensamente os dias que passam velozes e irrecuperáveis. 

Viver com a urgência de quem se despede. Viver como quem morre.  

"Eu, Sancho, nasci para viver morrendo."

Ninguém no mundo terá jamais autoridade para censurar Dom Alonso pelo desvario e fracasso da louca odisséia. Só os secos de espírito o fariam.

Não será essa busca o anelo secreto que habita o coração de tantos homens e mulheres na difícil jornada através do mundo hostil e trevoso, sonhando e lutando por uma outra existência, que faça valer a pena ter nascido? 

Há talvez um Dom Quixote adormecido e invisível em cada um de nós, à espreita da hora da rebeldia.

"Cada qual é artífice de sua ventura", ensinou-nos o Quixote.

*Jorge Adelar Finatto in. O Fazedor de Auroras

domingo, 5 de maio de 2013

Giudizio Universale*


"Giudizio Universale", 1541
Michelangelo Buonarroti, 1475-1564.
Detalhe: Cappella Sistina, Vaticano


sábado, 4 de maio de 2013

Antífona*


Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... 

[...]

Cruz e Sousa

*R. Magalhães Júnior in. “Poesia e vida de Cruz e Sousa”. Ed. Civilização Brasileira, 1975, p. 212.

_____
Les Deux Baigneuses, c. 1884.
W. A. Bouguereau, 1825-1905.
Óleo sobre tela, 129 cm x 201 cm.


Contos populares*


_________ os contos populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais. Longe de expressarem as imutáveis operações do ser interno do homem, sugere que as próprias mentalidades mudaram. Podemos avaliar a distância entre nosso universo mental e o dos nossos ancestrais se nos imaginarmos pondo para dormir um filho nosso contando-lhe uma primitiva versão camponesa do “Chapeuzinho Vermelho”. (...) “Chapeuzinho Vermelho” tem uma aterrorizante irracionalidade, que parece deslocada da Idade da Razão. Na verdade, a versão camponesa ultrapassa a dos psicanalistas, em violência e sexo. (Seguindo os Grimm e Perrault, Fromm e Bettelheim não mencionam o ato de canibalismo com a avó e o strip-tease antes da menina ser devorada). Evidentemente, os camponeses não precisavam de um código secreto para falar sobre tabus. (...) E por aí vai, do estupro e da sodomia ao incesto e ao canibalismo. Longe de ocultar sua mensagem com símbolos, os contadores de história do século XVIII, na França, retratavam um mundo de brutalidade nua e crua.

*Robert Darnton in. “O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa”. Ed. Graal, 2011, pp. 26-29.

_______
Chapeuzinho Vermelho e o Lobo, 1862.
Gustave Doré, 1832-1883.



A questão dos livros*



Colportor, s/d.

________ É importante poder sentir um livro – a textura do papel, a qualidade da impressão, a natureza da encadernação. Seus aspectos físicos fornecem pistas a respeito de sua existência como elemento num sistema social e econômico; e, se contiver anotações nas margens das páginas, pode revelar muito sobre seu lugar na vida intelectual dos leitores.

*Robert Darnton in. “A questão dos livros”. Ed. Companhia das Letras, 2010, p. 57.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O trabalho liberta?*


O desemprego multiplica a delinqüência e os salários humilhantes a estimulam. Jamais teve tanta atualidade o velho provérbio que ensina: “O vivo vive do bobo e o bobo de seu trabalho”. De resto, já ninguém diz, porque ninguém acreditaria, “trabalha e prosperarás”.

O direito ao trabalho já se reduz ao direito de trabalhar pelo que querem te pagar e nas condições que querem te impor. O trabalho é o vício mais inútil. Não há no mundo mercadoria mais barata do que a mão de obra. Enquanto caem os salários e aumentam os horários, o mercado de trabalho vomita gente. Pegue-o ou deixe-o, porque a fila é comprida.

*Eduardo Galeano in. “A escola do mundo ao avesso”. Ed. L&pm, 2011, p. 169.

________
Powerhouse Mechanic and Steam Pump, c. 1920.
Lewis Hine, 1874-1940.



A mulher de trinta anos*




O passo mais importante e decisivo na vida das mulheres é precisamente aquele que consideram sempre o mais insignificante. [...] Só aos trinta anos pode uma mulher conhecer os recursos desta situação. Aproveita-a para rir, gracejar e enternecer-se sem se comprometer. Possui então o tato necessário para atacar no homem todas as cordas sensíveis e estudar os sons que daí tira. O seu silêncio é tão perigoso como as suas palavras. Nunca se pode adivinhar, se nessa idade, é franca ou falsa, se zomba ou se é de boa fé nas suas confissões. Depois de ter-nos dado o direito de lutar com ela, de repente, com uma palavra, um olhar, um desses gestos cujo poder lhe é conhecido, termina o combate, nos abandona, e fica senhora do nosso segredo, ou para nos imolar com um gracejo, ou para se ocupar de nós, protegida igualmente pela sua fraqueza e pela nossa força.

*Honoré de Balzac in. “A mulher de trinta anos”. Ed. Nova Cultural, 1995, pp. 86-87.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Resolvi gostar*



O bisturi me descascou como uma cebola, desdobrou origamis das minhas vísceras, foi deixando listras de fogo-napalm por onde passava, e enquanto isso as algemas laceravam meus pulsos e eu cravava os dentes no trapo cheirando a querosene que me mandaram morder num acesso de piedade. A dor quando surge colapsa todo o resto do Real. Somente ela existe no Universo, somente os seus dois polos: o corpo que a sente e ela que ferve nesse corpo, como o bilhão de explosões nucleares que o Sol ruge por minuto. Resolvi gostar. Resolvi me entregar por completo àquela dor. Desisti de lutar contra ela, de pedir que parasse, resolvi aceitar que ela fazia parte de mim ou eu que fazia parte dela, e assim deixar que a dor crescesse a ponto de dissolver o conflito.

Fui manipulado como cabra-cega, seduzido por hipóteses e promessas, enleado por sorrisos, tapinhas nas costas e adiantamentos bancários, e todo dia pisava numa armadilha, caía numa arapuca, despencava num alçapão. Assinei folhas em branco confiando na descrição do que em breve seria impresso ali. Aceitei sem checar. Acreditei sem conferir. Fiz de conta que não vi o que se escancarou na minha frente, fiz de conta que não entendi o fato consumado que rolava de boca em boca. Fui bobo da corte, peão no roque alheio, inocente útil... Resolvi gostar. Virou um teste de até-onde-isso-vai. Virou uma experiência de laboratório onde o rato resolveu assumir o controle porque entendeu, enfim, que era uma experiência. Resolvi entender. Me interessei por tudo, como quem pela primeira vez entende um jogo de críquete, e transformei meu opróbrio em espetáculo.

Me depuseram, me manietaram, me sacanearam, me expuseram ao ridículo, me traíram, me bateram a carteira, me rasgaram os documentos, me enxovalharam a reputação em todos os órgãos de imprensa em quarenta idiomas, arrastaram minha estátua puxada por burros e alvejada por ovos podres. Meus partidários, meus cupinchas e meus apaniguados foram os primeiros a esfregar a sola suja do pé na minha cara. As mulheres me enxotaram rua afora com vassouras. As crianças surgiram excitadas à janela e gritaram à minha passagem seu primeiro palavrão. Aguentei as gargalhadas impiedosas dos bem-falantes, a mangação dos mendigos, a maledicência dos despeitados, o chute-no-traseiro com o sapato feroz dos ressentidos. Resolvi gostar. Resolvi permitir que aquele enxovalhamento fosse uma lavagem, uma purgação, um massacre de mim mesmo, uma sessão de bate-tapete que improvavelmente me restituísse a mim mais cru, mais mineral, mais resíduo de essência indestrutível. Àquela altura valia tudo. E eu só gosto quando chega nesse ponto.

*Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

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