sábado, 30 de junho de 2012

Um dia na vida do Perfeito Idiota Brasileiro*

O texto abaixo é uma versão revisada, atualizada e abrasileirada do Manual do Perfeito Idiota Latino-americano, dos anos 1990.
PIB. Chamemos de PIB. O Perfeito Idiota Brasileiro.
Vamos descrever o dia do PIB. Vinte e quatro horas na vida de um PIB para que os pósteros, a posteridade, tenham uma idéia do Brasil de 2012.
Ele acorda às sete horas da manhã. Tem que preparar o próprio café da manhã. Já faz alguns anos que sua mulher parou de fazer isso para ele, e ficou caro demais para ele pagar uma empregada doméstica.
Ele lamenta isso.  Era bom quando havia uma multidão de nordestinas sem instrução nenhuma que saíam de suas cidades por falta de perspectiva e iam dar no Sul, onde acabavam virando domésticas.
PIB dá um suspiro de saudade. Chegou a ter uma faxineira e uma cozinheira nos velhos e bons tempos. Num certo momento, PIB percebeu que as coisas começaram a ficar mais difíceis. Havia menos mulheres dispostas a trabalhar como domésticas, e os salários foram ficando absurdos.
Para piorar ainda mais as coisas, ao contrário do que sempre acontecera, a última empregada de PIB recusou votar no candidato que ele indicou.
Mulherzinha metida.
PIB tomou o café na cozinha, com o Globo nas mãos. Assinava o jornal fazia muitos anos. Se todos os brasileiros fossem como o Doutor Roberto Marinho, PIB pensou, hoje seríamos os Estados Unidos.
Por que ainda não ergueram estátuas para ele?
Com o Globo, PIB iniciou sua sessão de leituras matinais. Mais ou menos quarenta minutos, antes de ir para o escritório.
Leu Merval. Quer dizer, leu o primeiro parágrafo e mais o título porque naquele dia o texto, embora magnífico, estava longo demais. Havia um artigo de Ali Kamel. “Um cabeça”, pensou PIB. “Deve ter o QI do Einstein.” Mas também aquele artigo –embora brilhante, um tratado perfeito sobre o assistencialismo ou talvez sobre o absurdo das cotas, PIB já não sabia precisar — parecia um pouco mais comprido do que o habitual. Deixou para terminar a leitura à noite.
PIB vibrou porque, se não bastassem Merval e Kamel, havia ainda Jabor.
Um gênio. Largou o cinema para iluminar o Brasil com sua prosa espetacular. Um verdadeiro santo. Podia estar com a sala da casa cheia de Oscar.
Começou a ler Jabor e refletiu. “Impressão minha ou hoje aumentaram o tamanho do Jabor?” PIB sacudiu a cabeça, na solidão da cozinha, num gesto de reverência extrema por Jabor, mas também achou melhor deixar para ler mais tarde. Era seu dia de sorte. Também o historiador Marco Antônio Villa estava no Globo. “Os primeiros 18 meses do governo Dilma foram fracassos sobre fracassos” era a primeira linha. Bastava. Villa sempre surpreendia com pensamentos que fugiam do lugar comum.
Como uma terrorista chegou ao poder? Bem, tenho que comprar algum livro de história do Villa. Ele com certeza escreveu vários.
Completou a sessão de leituras da manhã na internet. Leu Reinaldo Azevedo.  Quer dizer, naquela manhã, leu um parágrafo. Na verdade, metade. Menos. O título. Não importava. Azevedo era capaz de mesmerizar toda uma nação com a luz cintilante de meia dúzia entre milhares de linhas que produzia incessantemente. PIB deixava escapar um sorriso de admiração a cada vez que li a palavra “petralha” em Azevedo.
Rei é rei. Um cabeça pensante. Por que será que não ocorreu a nenhum presidente da República contratar esse homem como assesor especial? Se o Brasil bobear, a Casa Branca vem e contrata.
Ainda na internet, uma passagem pelo Blog do Noblat. Naquele dia, no blog havia uma coluna assinada por Demóstenes. PIB deu parabéns mentais a Noblat por abrir espaço a Demóstenes, nosso campeão mundial da moralidade, nosso Catão.
Por que falam tanto do tal do Assange e do Wikileaks quando temos tantos caras muito melhores?
A caminho do trabalho, PIB ligou na CBN. Ouviu uma entrevista com o filósofo Luiz Felipe Pondé. “Meu pequeno carro não contribui para o aquecimento do planeta”, disse Pondé, o nosso Sócrates, o Aristóteles verde-amarelo.
Preciso anotar essa. Meu pequeno carro não contribui para o aquecimento global.
Isso o levou a reparar nos ciclistas nas ruas de São Paulo. Cada dia parecia haver mais. Mau sinal. Havia muitas bicicletas no trajeto. PIB sentiu vontade de atropelá-las.  Odiava ciclistas. Atrapalhavam os motoristas.
Abria uma única exceção: Soninha. Desde que ela continuasse a posar pelada em nome das bicicletas.
Hahaha.
Na CBN ouviu também informações e comentários sobre o mundo. “Prestígio em Paris dá vantagem a Sarkozy nas eleições presidenciais”, a CBN avisou. PIB admirava Sarkozy. Proibir a burca foi um gesto histórico. As muçulmanas deveriam ser gratas a Sarkozy. Elas haveriam de votar maciçamente nele para dar a ele o segundo mandato para o qual a CBN dizia que ele era o favorito.
Os maridos obrigam as coitadas a usar burca.
O tema do islamismo estava ainda em sua mente quando se instalou em seu cubículo de gerente na empresa. PIB refletiu sobre o mundo. Tinha lido em algum lugar que no Afeganistão as pessoas queriam que os soldados americanos fossem embora.  Os afegãos estavam queimando bandeiras dos Estados Unidos. A mesma coisa estava ocorrendo no Iraque. E no Iêmen. Em todo o Oriente Médio, fora Israel.
Ingratos. Como eles não percebem que os Estados Unidos estão lá para promover a democracia e levar a civilização? Os americanos estão acima de interesses mesquinhos por coisas como o petróleo.
Era um perigo o avanço muçulmano. Não que apoiasse, mas PIB entendia o norueguês que matara 77 pessoas por considerar que o governo de seu país era leniente demais com os muçulmanos.
A raça branca está em perigo.
Entretido em salvar a raça branca, PIB não percebeu o tempo passar. Só notou pela fome que já era hora de comer. A opção, mais uma vez, foi pelo Big Mac do shopping, e mais a Coca dupla. Detestava os ativistas dos direitos dos animais porque combatiam os Big Macs. PIB estava tecnicamente obeso, mas na semana que vem iniciaria uma dieta e começaria também a se exercitar.
Fim do expediente. A estagiária estava com um decote particularmente ousado. Talvez estivesse sem sutiã. PIB a chamou algumas vezes para discutir assuntos que na verdade não tinham por que ser discutidos. A questão era olhá-la. Valeu o dia, refletiu.
Na volta, mais uma vez foi tomado pela tentação de atropelar os ciclistas. “Quando você deseja muito uma coisa, todo o universo conspira a seu favor”. PIB se lembrou da frase de seu escritor favorito, Paulo Coelho. Então ele desejou muito que as bicicletas sumissem.
Xiitas.
Algum colunista escrevera isso sobre os ciclistas. PIB não lembrava quem era, mas concordava inteiramente. Os ciclistas são gente esquisita que deve fazer ioga e praticar meditação, suspeitava PIB.
Tudo gay!
Já incorporara para si mesmo a frase genial de Pondé.
Meu carro pequeno não contribui para o aquecimento global.
No churrasco de domingo, ia soltar essa. Teve um breve lapso de inquietação quando se deu conta de que os brasileiros que tanto contribuíam para a elevação do pensamento nacional já não eram tão novos assim, O próprio Merval era imortal apenas pela sua contribuição às letras, reconhecida pela Academia. Então lhe veio à cabeça a juventude sábia de Luciano Huck, e ficou mais sossegado.
A mulher não percebeu quando ele chegou. Não era culpa dela. A televisão estava ligada com som alto na novela da Globo. PIB lera várias vezes que as novelas tinham uma “missão civilizadora” no Brasil. Mais uma dívida dos brasileiros perante Roberto Marinho: a perpetuação das novelas. A mídia impressa brasileira reconhecia a “missão civilizadora” na forma de uma cobertura maravilhosa das novelas. Uma vez um leitor da Folha reclamou por encontrar na Ilustrada seis artigos sobre novelas.
O brasileiro só sabe reclamar. E reivindicar. Uma besta!
PIB deu um alô que não foi ouvido. Ou pensou ter dado. Sentou ao lado da mulher, e o silêncio confirmou para ele sua tese: depois de muitos anos de casamento as pessoas se entendem tão bem que não precisam trocar uma só palavra. Nem se tocar. É quando o casamento chega ao estágio da perfeição: ninguém tem que se empenhar para nada. A cada quinze dias, PIB tomava Viagra e descarregava as tensões sexuais com uma escorte que cobrava 400 reais.
Tá barato.
Não ligava para novelas. Mas soubera no escritório que Juliana Paes aparecia de vez em quando pelada. Passou por sua cabeça um pensamento rápido.
Talvez eu devesse pedir para a patroa me avisar quando a Juliana Paes ficar sem roupa.
Terminada a novela, era a sua vez na televisão. Futebol. Bacana o futebol passar bem tarde, depois da novela. Provavelmente a Globo pensara nisso para ajudar os pobres que moravam longe e demoravam horas para chegar em casa depois do trabalho.
“Boa noite, amigos da Globo!”
Um carisma total o Galvão. Subaproveitado. Devia estar no Ministério da Economia, e não narrando futebol. 
PIB lera que Galvão estava morando em Mônaco. Sabichão. Ficava muito mais fácil, assim, cobrir a Fórmula 1. Nunca alguém da estatura moral de Galvão optaria por Mônaco para não pagar imposto. Galvão certamente faria bonito na Dança dos Famosos, pensou PIB.
PIB não torcia a rigor para time nenhum. Era, essencialmente, anticorintiano. Com seu saco de pipocas na mão, viu, contrariado, o Corinthians vencer.
Amanhã os boys vão estar insuportáveis.
PIB queria muito ver o Jô.
Era um final de dia perfeito, ainda mais porque antes havia o aperitivo representado por William Waack. PIB achava um privilegio poder ver Waack não apenas na Globo como na Globonews. Os Marinhos podiam cobrar pela Globonews, mas não faziam isso para proporcionar cultura de graça aos brasileiros. PIB zapeava quando Waack dava suas lições na televisão, mas os fragmentos que pescava eram suficientes.
Jô. Não posso perder Jô. Uma enciclopédia. Podia ser editorislista do Estadão. Hoje ele vai entrevistar o Mainardi!
PIB bem que queria ver Jô. Ou pelo menos incluí-lo no zapeamento. Duas palavras de Jô valiam por mil das pessoas normais.
Mas não foi possível.
PIB acabou dormindo no sofá, do qual sua mulher achou preferível não o tirar, e onde ele roncou tão alto quanto o som da tevê — e teve, como sempre, o sono límpido, impoluto, irreprochável dos perfeitos idiotas.


Paulo Nogueira. in. Diário do Centro do Mundo

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Antonio Silvino*


Uma foto tem circulado nas redes sociais, mostrando dois homens de terno, frente a frente. São eles o presidente-ditador Getúlio Vargas e o ex-cangaceiro Antonio Silvino, que recebera indulto após 23 anos de cadeia, por bom comportamento (havia sido condenado a 239 anos). Diferentemente de Lampião, que em vinte anos de cangaço nunca foi preso, Silvino cumpriu pena, alfabetizou-se na prisão, converteu-se ao protestantismo  e trabalhou em vários tipos de artesanato até receber o indulto de Vargas. São duas histórias diferentes, dois finais diferentes.  Lampião, que era 23 anos mais novo, morreu numa emboscada na gruta de Angicos em 1938.  Silvino, aprisionado em 1914 (antes mesmo de Lampião entrar para o cangaço) morreu em 1944, na casa de uma prima, em Campina Grande. (Quando eu era menino, várias vezes me mostraram a vilazinha humilde onde ele findou seus dias, em frente à Praça Félix Araújo, esquina com a Arrojado Lisboa).

A carreira de Silvino está documentada nos folhetos de Francisco das Chagas Batista, que cobrem suas aventuras até 1912.  Uma ótima avaliação deles está em Memória de Lutas de Ruth Brito Lemos Terra (Global, 1983), onde ela compara a abordagem de Chagas Batista, mais documental, com a de Leandro Gomes de Barros, mais fantasiosa e romantizada. Tal como Lampião, Silvino foi exaltado por poetas e escritores como um guerreiro nobre e ético. Em As Infâncias de Quaderna, de Ariano Suassuna, é ele quem resgata o menino Quaderna, raptado por ciganos, e o devolve à família; em Menino de Engenho, José Lins do Rego reconstitui uma visita do cangaceiro ao coronel José Paulino, que o recebe à mesa, com todas as honras.

Foi, aliás, o próprio Zé Lins que em 1938 levou Graciliano Ramos a visitar Silvino na prisão, antes do seu indulto.  Numa crônica no Jornal de Alagoas (18-9-1938, aqui: http://bit.ly/NI7SRl), Graciliano faz um retrato elogioso do ex-cangaceiro, onde ficam evidentes os preconceitos de raça e classe que ambos inconscientemente compartilhavam. Diz ele: “Antonio Silvino é um homem branco. Seria mais razoável que fosse um representante das raças inferiores, que, no Nordeste e em outros lugares, constituem a maioria da classe inferior. Mas é um branco, e se for examinado convenientemente, não dá para bandido. (...) Homem de ordem, indispôs-se com outros homens de ordem, fez tropelias no sertão, caiu numa cilada e penou vinte anos para lá das grades. Continuou, porém, a ser o que era, apesar da cadeia: homem de ordem, membro da classe média, com todas as virtudes da classe média”. Sertanejos escritores, políticos ou cangaceiros que respiravam o mesmo ar, as mesmas idéias.


Braulio Tavares. in. Mundo Fantasmo

Ao deus Verme*

Laurence Olivier interpretando Hamlet

[Fragmento do diálogo entre Hamlet e Horácio diante de uma caveira no cemitério. Cena I, Ato V.]


Hamlet

Essa caveira possuía língua, e outrora podia cantar! Como esse pícaro a atira ao solo, qual se fosse a queixada de Caim, que cometeu o primeiro assassínio! Essa pode ter sido a cabeça de um cavilador, que esse asno agora sobrepuja; de alguém que teria gostado de enganar a Deus, não pode?

Horácio

Pode, meu senhor.

Hamlet

Ou de um cortesão, capaz de dizer: "Bom dia, dileto senhor! Como estás, bom senhor?" Este pode ter sido o fidalgo tal, que gabava o cavalo do fidalgo qual, quando tinha a intenção de pedi-lo, não pode?

Horácio

Pode, meu senhor.

Hamlet

Ora, é isso mesmo; e agora pertence à fidalguia Vérmina, desqueixado e golpeado no cocuruto com a pá de um sacristão; eis uma boa mudança: fôssemos hábeis para vê-la! Custou tão pouco a formação desses ossos, que servem apenas para jogar a malha? Só de pensar nisso os meus me doem.

[...]

Hamlet

Eis outra. Não será - quem sabe - a caveira de um causídico? Onde estão agora suas distinções, suas sutilezas, seus processos, seus direitos de posse e subterfúgios? Como é que suporta que esse rude pícaro lhe pespegue cacholetas com uma pá imunda, e não lhe fala num processo por lesões corporais? (Pega a caveira.) Hum! esse indivíduo talvez tenha sido em seu tempo um grande comprador de terras, com seus títulos debitórios e obrigações de solver, com suas ficções legais para transformar em domínio pleno a propriedade vinculada, seus duplos fiadores, seus expedientes para invalidar gravames: esse é o final de tais chicanas, e o resultado de tais simulações, ficar com o solerte crânio cheio de pura sujeira? Não lhe quererão os garantes simples nem duplos garantir as compras que excedem o comprimento e a largura de um contrato em pergaminho denteado? As próprias escrituras de suas terras dificilmente caberão nesta caixa (Bate na caveira.) e o próprio dono não possui mais terra do que cabe nela, não?

Horácio

Nem mais um nada que seja, meu senhor.

...

W.Shakespeare. in. A tragédia de Hamlet: príncipe da Dinamarca. Ed. Abril, 1976. p. 203-5. 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Snuff Movie na TV*




“A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar. A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Por que a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona”. (GALEANO, Eduardo. "O livro dos abraços". 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 2010, p.149).

Confortavelmente sentados em nossas poltronas somos “atacados” pela realidade, claro, uma realidade editada e ordinária. O espetáculo televisivo nos convida a participar, embora passivamente, do grande Show da vida. As telas cada vez maiores parecem colocar diante de nossos olhos enfeitiçados um mundo real. Somos aprisionados pela “grade” de programação. Somos atraídos por bundas, requebros, lágrimas, risos, tragédias, banalidades culinárias, falas discordantes e concordantes, produtos e Sangue.

Gostaria de me ater a esta última oferta, o Sangue. Não sei se vocês já repararam, mas nós temos uma atraçãozinha sádica pelo sangue. (O dos outros, óbvio!). Acidentes, desastres, morticínios, homicídios, suicídios, crimes de toda e qualquer monta nos prendem a atenção, mesmo que nos neguemos a olhá-los. As imagens de corpos dilacerados, carbonizados, fraturados, desmembrados, deformados etc., acabam alimentando o nosso pervertido e muitas vezes “inocente” desejo de sangue.

Incrível, mas não demorou muito a tornamos este fetiche algo comercial. A literatura, os jornais, o cinema, o rádio, a TV, e hoje a internet, são canais que nos alimentam, nos vendem e nos ligam a esta obscura faceta humana. O sangue corre solto por todos os lados, geralmente é o sangue alheio, e quanto mais distante, mais regozijo.

O cinema “clandestino” chegou mesmo a vender cenas de mortes REAIS de pessoas, não como estas que nos acostumamos a ver no noticiário jornalístico, mas cenas reais gravadas com o único fito de retratar alguém sendo assassinado. Estes filmes, conhecidos como Snuff Movie, atendem ao prazer perverso de determinados sujeitos. Os Snuff Movies representam o ápice do estado catártico de um indivíduo que se identifica com a violência potencializada na morte, no sofrimento, na dor e no sangue alheio.

O espetáculo em si tem o poder de extravasamento e purgação dos sentimentos reprimidos. Assim, por exemplo, o fazemos diante da tela mágica da TV quando nos mobilizamos para assistir um crime, uma violência qualquer, uma pornografia, uma traição, um ato incontido, uma revolta da carne ou do instinto, enfim, coisas que jamais teríamos a coragem de fazer, que teríamos medo, mas que naquele instante nós realizamos potencialmente, liberados que fomos dos demônios particulares, do sofrimento próprio e da morte própria.

Hoje, as câmeras espalhadas em cada fresta, em cada canto por nós frequentado alimentam nosso voyeurismo, nossa vontade de ver. Elas potencializaram nossa catarse porque tornaram pública a morte e a dor alheia, que já não pertencem mais ao foro íntimo, porque se transformaram em pauta jornalística. A dor e a morte reais estão na TV por vários ângulos, com nitidez de som e imagem em alta definição.

Quem não parou para assistir ao vivo, por exemplo, o ataque ao World Trade Center? Quem ainda não viu um crime registrado por “um circuito interno” de câmeras? Quem não acompanhou o passo a passo da morte da Juíza Patrícia Acioli, dado com “exclusividade” pelo Fantástico? Ou assistiu a morte, também ao vivo, da Professora Geísa no ônibus 174? A chacina na escola de Realengo no Rio? Ou coberturas feitas por programas "policiais" especializados no sensacionalismo? Sem falar de novelas, filmes, desenhos animados etc. Enfim, ossos, vísceras, tiros, facadas, membros contorcidos, cadáveres, gemidos, gritos, sangue... Tudo isso nos induz ao gozo coletivo, paramos para ver, ficamos chocados, comentamos, mas no intimo saímos com uma satisfaçãozinha perversa, parece até ficção, embora as mortes e os crimes sejam reais.

Os Snuff Movies estão na nossa programação diária, como um cardápio eles compõem nossa dieta visual. Eles tranqüilizam “quem se comporta bem”. Desligada a TV, levantamos ensanguentados e felizes da poltrona. Podemos até dizer que após esta pausa digestiva estamos prontos para encarar a vida lá fora.



Josenias Silva. in. Publicado no jornal O Dia, de Teresina – PI, em 01/10/2011. Caderno Em Dia, Coluna Fórum, pág. 4.


Tempo Real*



Esta é uma expressão curiosa, surgida, pelo que me consta, com a Internet.  Antes dela tínhamos milhões de coisas acontecendo em tempo real mas não nos sentíamos obrigados a dar um nome a isto. “Em tempo real”, na linguagem de hoje, significa um fenômeno qualquer em que transmissão e recepção sejam simultâneos, ou seja, a coisa acontece num lugar e é vista em outro no mesmo momento.  (Se bem que nada é simultâneo, de acordo com a Física. Há sempre um intervalo, mas em termos da percepção humana é uma fração de segundo tão pequena que para efeitos práticos pode ser ignorada. Para tais grandezas, físicos e matemáticos usam o adjetivo “desprezível”, que sempre me pareceu meio insultuoso.)

Em tempo real significa aquela noite inesquecível em que o U-2 fez um show demolidor num estádio na Califórnia, e eu assisti o show em meu PCzinho no Rio de Janeiro, sentado na minha cadeira giratória, indo buscar cerveja na geladeira. Alguém pode argumentar que se o show tivesse ocorrido na véspera e eu o estivesse vendo 24 horas depois (ou 240 horas depois, etc.) minha impressão de ineditismo seria a mesma, e não discuto.  Aí é que entram as sutilezas do Espírito do Tempo.  O prodigioso não é que a gente esteja vendo aquilo em tempo real, mas que SAIBA que está vendo em tempo real. O prodigioso não é a simples transmissão da informação, mas o pequeno triunfo psicológico que ela nos proporciona, aquela sensação de momentânea onipotência, a sensação de estarmos (a Humanidade inteira, ou pelo menos uma parte importante dela) envoltos num casulo telepático em que tudo nos acontece ao mesmo tempo aqui e agora.  Isto é precioso.

Talvez tenhamos sentido algo assim quando nos deparamos pela primeira vez com o telégrafo; com o rádio; com o telefone; com a televisão; mas isto nunca ocorreu com tanta intensidade. Quando estou num chat, tipo frase-vai, frase-vem, com algum amigo que está na Europa ou na Ásia penso: “Ora, isto não é mais extraordinário do que um telefonema”. Mas telefonemas são uma comunicação um-a-um, e a Internet nos proporciona isto multiplicado por multidões incalculáveis. E reparem bem na poesia do nome.  Todo tempo é real, não é mesmo? Quando leio uma peça de Ésquilo, foi real o momento em que foi escrita, é real o momento da leitura, bem como é real o intervalo de 2.500 anos que nos separa.  Hoje, porém, temos um real simultâneo, e não um real esgarçado no tempo. Como se o fato de outros seres humanos estarem pensando na mesma coisa no mesmo instante tornasse essa coisa mais espessa, mais socialmente verdadeira, mais humanamente real.  E, em última análise, é isso mesmo que acontece.

Braulio Tavares. in. Mundo Fantasmo

sábado, 23 de junho de 2012

Pecado Capital*



"Dinheiro na mão é vendaval / na vida de um Sonhador!" (Eh! Sabedoria Popular):
curtam aí este clássico da nossa MPB:


Paulinho da Viola No Globo de Ouro. De 1976.
Música tema da novela Pecado Capital.

A fúria feminina*

                        "... não existe no inferno nada que se compare à fúria de uma mulher rejeitada."

W. Shakespeare

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O que faz o brasil, Brasil?*



[...] tanto os homens como as sociedades se definem por seus estilos, seus modos de fazer as coisas. Se a condição humana determina que todos os homens devem comer, dormir, trabalhar, reproduzir-se e rezar, essa determinação não chega ao ponto de especificar também que comida ingerir, de que modo produzir, com que mulher (ou homem) acasalar-se e para quantos deuses ou espíritos rezar. É precisamente aqui, nessa espécie de zona indeterminada, mas necessária, que nascem as diferenças e, nelas, os estilos, os modos de ser e estar, os “jeitos” de cada qual. Porque cada grupo humano, cada coletividade concreta, só pode pôr em prática algumas dessas possibilidades de atualizar o que a condição humana apresenta como universal. As restantes ficam como uma espécie de fantasma a nos recriminar pelo fato de as termos deixado nos bastidores, como figuras banidas de nosso palco, embora estejam de algum modo presentes na peça e no teatro.

No fundo, essa questão do relacionamento dos universais de qualquer sistema com um sistema específico é das mais apaixonantes de quantas existem no panorama das Ciências Humanas. Trata-se, sempre, da questão da identidade. De saber quem somos e como somos, de saber por que somos. Sobretudo quando nos damos conta de que o homem se distingue dos animais por ter a capacidade de se identificar, justificar e singularizar: de saber quem ele é. De fato, a identidade social é algo tão importante que o conhecer-se a si mesmo através dos outros deixou os livros de filosofia para se constituir numa busca antropologicamente orientada. Mas o mistério, como se pode adivinhar, não fica na questão do saber quem somos. Pois será necessário descobrir como construímos nossas identidades. Sei que sou José da Silva, brasileiro, casado, funcionário público, torcedor do Flamengo, carnavalesco da Mangueira, apreciador incondicional das mulatas, católico e umbandista; jogador esperançoso e inveterado da loto, porque acredito em destino – e não outra pessoa qualquer. Em sendo José, não sou Napoleão ou William Smith, cidadão americano de Nova York; ou Ivan Ivanovich, patriota soviético. Posso distinguir-me assim porque me associo intensamente a uma série de atributos especiais e porque com eles e através deles formo uma história: a minha história. Mas como é que sei o que sou? Como posso discutir a passagem do ser humano que nasci para o brasileiro que sou?

Como se constrói uma identidade social? Como um povo se transforma em Brasil? A pergunta, na sua discreta singeleza, permite descobrir algo muito importante. É que no meio de uma multidão de experiências dadas a todos os homens e sociedades, algumas necessárias à própria sobrevivência, como comer, dormir, morrer, reproduzir-se etc., outras acidentais ou superficiais: históricas, para ser mais preciso – o Brasil foi descoberto por portugueses e não por chineses, a geografia do Brasil tem certas características como as montanhas na costa do Centro-Sul, sofremos pressão de certas potências européias e não de outras, falamos português e não francês, a família real transferiu-se para o Brasil no início do século XIX etc. Cada sociedade (e cada ser humano) apenas se utiliza de um número limitado de “coisas” (e de experiências) para construir-se como algo único, maravilhoso, divino e “legal”...

Sei, então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque gosto de comer feijoada e não hambúrguer; porque sou menos receptivo a coisas de outros países, sobretudo costumes e idéias; porque tenho um agudo sentido de ridículo para roupas, gestos e relações sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova York; porque falo português e não inglês; porque, ouvindo música popular, sei distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque futebol para mim é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos; porque vou à praia para ver e conversar com os amigos, ver as mulheres e tomar sol, jamais para praticar um esporte; porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais; porque sei que não existe jamais um “não” diante de situações formais e que todas admitem um “jeitinho” pela relação pessoal e pela amizade; porque entendo que ficar malandramente “em cima do muro” é algo honesto, necessário e prático no caso do meu sistema; porque acredito em santos católicos e também nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no estudo, na instrução e no futuro do Brasil, porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como fazem os meus amigos americanos, que sempre se vêem e existem como indivíduos!

Pois bem: somando esses traços, forma-se uma seqüência que permite dizer quem sou, em contraste com o que seria um americano, aqui definido pelas ausências ou negativas que a mesma lista efetivamente comporta. A construção de uma identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões. Tome uma lista de tudo o que você considera importante – leis, idéias relativas a família, casamento e sexualidade; dinheiro; poder político; religião e moralidade; artes; comida e prazer em geral – e com ela você poderá saber quem é quem. Não é de outro modo que se realizam as pesquisas antropológicas e sociológicas. Descobrindo como as pessoas se posicionam e atualizam as “coisas” desta lista, você fará um “inventário” de identidades sociais e de sociedades. Isso lhe permitirá descobrir o estilo e o “jeito” de cada sistema. Ou, como se diz em linguagem antropológica, a cultura ou ideologia de cada sociedade. Porque, para mim, a palavra cultura exprime precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer coisas.

Mas é preciso não esquecer que essas escolhas seguem uma ordem. É certo que eu inventei um “brasileiro” e um “americano” que o acompanhava por contraste linhas atrás, mas quem me garante que aquilo que disse é convincente para definir um brasileiro foi a própria sociedade brasileira. Ou seja: quando eu defini o “brasileiro” como sendo amante do futebol, da música popular, do carnaval, da comida misturada, dos amigos e parentes, dos santos e orixás etc., usei uma fórmula que me foi fornecida pelo Brasil. O que faz um ser humano realizar-se concretamente como brasileiro é a sua disponibilidade de ser assim. Caso eu falasse em elegância no vestir e no falar, no gosto pelas artes plásticas, na visita sistemática a museus, no amor pela música clássica, na falta de riso nas anedotas, no horror ao carnaval e ao futebol etc., certamente estaria definindo outro povo e outro homem. Isso indica claramente que é a sociedade que nos dá a fórmula pela qual traçamos esses perfis e com ela fazemos desenhos mais ou menos exatos.


Roberto DaMatta. in. “O que faz o brasil, Brasil?”. Ed. Rocco, 1986. p.15-18.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A Autoridade*

Em épocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saiam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo.

Assim era a vida ente os índios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los.

Somente as meninas recém nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.

Eduardo Galeano. in. "Mulheres". Ed. L&PM, 2007, p. 11.

domingo, 17 de junho de 2012

Senhas*



Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto 


Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos

Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas

O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até os estetas
Eu não julgo competência
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades

O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Não, não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem

Eu gosto dos que têm fome
E morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem 


Adriana Calcanhotto. in. “Senhas”, 1992. (CBS/Columbia)

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História da Leitura*

Jean-Baptiste Camille Corot (1796-1875) 
La Liseuse, 1845-1850 
Huile sur toile, 42,5 x 32,5 cm 
Zurich, Fondation Collection E.G. Bührle 
© Zurich, Fondation Collection E.G. Bührle / ISEA-SIK, photo : J.-P. Kuhn 


A leitura tem uma história. Não foi sempre e em toda parte a mesma. Podemos pensar nela como um processo direto de se extrair informação de uma página; mas se a considerássemos um pouco mais, concordaríamos que a informação deve ser esquadrinhada, retirada e interpretada. Os esquemas interpretativos pertencem a configurações culturais, que têm variado enormemente através dos tempos. Como nossos ancestrais viviam em mundos mentais diferentes, devem ter lido de forma diferente, e a história da leitura poderia ser tão complexa quanto a história do pensamento. [...] Não há caminhos diretos ou atalhos, porque a leitura não é uma coisa distinta, como uma constituição ou uma ordem social, que pode ser rastreada através do tempo. É uma atividade que envolve um relação peculiar - por um lado o leitor, por outro o texto. Embora os leitores e os textos tenham variado segundo circunstâncias sociais e tecnológicas, a história da leitura não deve ser reduzida a uma cronologia dessas variações. Deveria ir além para confrontar o elemento de relação no cerne da questão: como as funções variadas do leitor interpretavam os textos desiguais?

A questão soa obscura, mas muita coisa depende disso. Consideremos a frequência com que a leitura mudou no curso da história - a leitura que Lutero fez de Paulo, a leitura de Marx fez de Hegel, a leitura que Mao fez de Marx. Esses pontos se sobressaem em um processo muito mais profundo, muito mais vasto - o esforço do homem para encontrar significado no mundo que o cerca e no interior de si mesmo. Se pudéssemos compreender como ele tem lido, poderíamos nos aproximar de um entendimento de como ele compreende a vida; e dessa maneira histórica, poderíamos até satisfazer parte de nossa própria ânsia de significado.


Robert Darnton. História da Leitura. in. BURKE, Peter (org.). "A escrita da história": novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992, p. 233-234.

A Pata da Gazela*



Pensem os fisiologistas como quiserem, o pé é a parte mais distinta do corpo humano; sem ele a estatura não teria a nobreza que Deus só concedeu à criatura racional.

O pé revela o caráter, a raça e a educação. Cada uma das feições e dos gestos desse órgão de nossa vontade tem uma expressão eloqüente. Há quem não adivinhe em um pé delicado e nervoso a alma de fina têmpera? Ao contrário, um pé chato e pesado é a prova infalível de um gênio tardo e pachorrento.

Vergílio, o poeta mais elegante que tem existido, compreendeu que Vênus ocultasse nos olhos do filho, na selva líbica, a beleza imortal de seus olhos, de seu sorriso, de suas formas sedutoras; mas não aquilo que era sua essência divina, sua graça olímpica. Foi pelo andar que ela revelou-se deusa; et vera incessu patuit dea.

Nunca sentiste o doce contato do pé da mulher amada? É uma sensação deliciosa que penetra no seio d’alma.

[...]

Apaixonei-me por esse pezinho, que eu nunca vira, que não conhecia. Sagrei-lhe minha alma como ao ignoto deo de minhas adorações.

(Fragmento).

José de Alencar. in. A Pata da Gazela. Ed. Ática, 1999.

sábado, 16 de junho de 2012

O corpo é uma festa*




     "... O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa."

Eduardo Galeano

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Horizontes*

Photo: Sebastião Salgado


     "... quem tem muito pouco, ou quase nada, merece que a escola lhe abra horizontes."


Emília Ferreiro

Encruzilhadas*

Photo: Pedro Martinelli


                "... as civilizações não são   fortalezas, mas encruzilhadas."

Octávio Paz

Futuro próximo*


Ray Bradbury (1920-2012)
Ray Bradbury, mestre da ficção científica cujas evocações líricas do futuro refletiam ao mesmo tempo o otimismo e as ansiedades dos seus Estados Unidos do pós-guerra, morreu na terça feira (5/6). Tinha 91 anos.
Bradbury foi o principal autor responsável por trazer a ficção científica moderna para o gosto literário popular. Seu nome aparecia perto do topo de qualquer lista de importantes autores de ficção científica do século 20, ao lado de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein e o polonês Stanislaw Lem. Seus livros venderam mais de oito milhões de exemplares em 36 idiomas.
Bradbury vendeu sua primeira história a uma revista antes de completar 21 anos e, quando chegou aos 30, ele já tinha criado para si uma reputação com As Crônicas Marcianas (The Martian Chronicles), coleção de histórias publicada em 1950.

O livro celebrava o lado romântico da viagem espacial, ao mesmo tempo condenando os abusos sociais que a tecnologia moderna tornava possíveis, e seu impacto foi imediato e duradouro. Os críticos que desmereciam a ficção científica como coisa de adolescente elogiaram as Crônicas como um conjunto de fábulas morais situadas num futuro que parecia estar ao alcance.

Bradbury não foi o primeiro autor a representar a ciência e a tecnologia como um misto de bênção e abominação. O advento da bomba atômica em 1945 fez com que muitos americanos adotassem uma posição ambivalente em relação à ciência. A mesma “super ciência” que pôs fim à Segunda Guerra parecia ameaçar a própria civilização. Os autores de ficção científica, acostumados a pensar no papel da ciência na sociedade, tinham comentários ácidos a fazer a respeito da ameaça nuclear.
Mas o público da ficção científica, publicada principalmente em revistas pulp, era minúsculo. Bradbury buscava um público maior: os leitores de revistas de tiragem maciça como Mademoiselle e The Saturday Evening Post. Estes leitores não tinham paciência para o jargão técnico dos contos de ficção científica. Assim, ele eliminou o jargão; embalou suas especulações a respeito do futuro numa mistura sedutora de coloquialismos simpáticos e metáforas poéticas.

As Crônicas Marcianas provavelmente ainda é a obra mais conhecida de Bradbury. Tornou-se uma leitura comum nos cursos do ensino médio e superior. O próprio Bradbury fazia pouco do ensino formal. Ele chegou a ponto de atribuir seu sucesso como autor ao fato de nunca ter frequentado a faculdade.

Poe e Verne

Em vez disso, Ray Bradbury lia tudo aquilo que lhe chegava às mãos, autores como Edgar Allan Poe, Júlio Verne, H. G. Wells, Edgar Rice Burroughs e Ernest Hemingway. Ele os homenageou em 1971 no ensaio autobiográficoHow Instead of Being Educated in College, I Was Graduated From Libraries (Como em vez de me formar na universidade, me graduei em bibliotecas).

Ele se referia a si mesmo como “autor de ideias”, expressão à qual atribuía um significado diferente da erudição e do estudo aprofundado. “Eu me divirto com as ideias; brinco com elas”, disse ele. “Não sou uma pessoa séria, e não gosto de pessoas sérias. Não me vejo como um filósofo. Trata-se de algo insuportavelmente monótono.” E acrescentava: “Meu objetivo é entreter a mim e aos demais”.
Ele descreveu seu método criativo como uma “associação de palavras”, com frequência iniciada por um de seus versos favoritos de alguma poesia.
A paixão de Bradbury pelos livros encontrou expressão no seu romance distópico Fahrenheit 451, publicado em 1953. Mas sua principal inspiração foi a infância passada em Illinois. Ele se gabava de recordar completamente seus primeiros anos, incluindo o momento do próprio nascimento.

Os leitores não tinham motivos para duvidar. Nas suas melhores histórias e no romance autobiográfico A Cidade Fantástica (Dandelion Wine, 1957), ele deu voz às alegrias e aos medos da infância. Quanto aos protagonistas de suas histórias, por mais que se afastassem de casa, aprendiam que nunca poderiam escapar ao passado.

Raymond Douglas Bradbury nasceu no dia 22 de agosto de 1920 na pequena cidade de Waukegan, Illinois. Criança pouco atlética que sofria de pesadelos, ele se deleitava com as fábulas dos Irmãos Grimm e das histórias de L. Frank Baum a respeito de Oz. Ele descobriu as revistas de ficção científica e começou a colecionar as tiras de quadrinhos de Buck Rogers e Flash Gordon. Uma conversa com um mágico de parque de diversões chamado Mr. Eletrico que abordou a questão da imortalidade deu a Bradbury, então com 12 anos, o ímpeto de se tornar escritor.
Em 1934, a família se mudou para Los Angeles, onde Bradbury se tornou um fã dos filmes, frequentando o cinema até nove vezes por semana. Estimulado por um professor e pelos autores profissionais que conheceu na Liga da Ficção Científica, ele deu início à rotina de produzir pelo menos mil palavras por dia em sua máquina de escrever, prática que manteria por toda a vida.
Capote e Huxley

Seu primeiro grande sucesso veio em 1947 com o conto Festa de Família (Homecoming), narrada por um menino que se sente como um forasteiro numa reunião de família cheia de bruxas, vampiros e lobisomens, justamente por não ter poderes sobrenaturais. A história, escolhida por um jovem editor da Mademoisellechamado Truman Capote, valeu a Bradbury, então com 27 anos, o Prêmio O. Henry como um dos melhores contos americanos daquele ano.

Por mais que os puristas da ficção científica se queixassem da atitude despreocupada de Bradbury diante dos fatos científicos – ele deu à sua versão fictícia de Marte uma atmosfera respirável –, o establishment literário demonstrou imenso entusiasmo. Um dos heróis pessoais de Bradbury, Aldous Huxley, o considerou um poeta.
As Crônicas Marcianas foi criado a partir de 26 contos. A narrativa engloba um período que vai de 1999 a 2026, relatando uma série de expedições a Marte e suas consequências. Os marcianos nativos, capazes de ler pensamentos, resistem aos primeiros enviados da Terra, mas acabam fracassando diante de sua tecnologia avançada conforme os humanos passam a destruir os vestígios de uma civilização antiga.

O paralelismo com o destino das culturas indígenas americanas é levado aos limites da paródia; os marcianos são finalmente extintos por uma epidemia de catapora. Quando a guerra nuclear destrói a Terra, os descendentes dos colonizadores humanos percebem que se tornaram marcianos, tendo uma segunda chance de criar uma sociedade justa.
Truffaut e Orwell

Fahrenheit 451, a denúncia de Bradbury da queima de livros numa versão futura dos EUA (o título se refere à temperatura na qual o papel pega fogo), é talvez sua narrativa de maior sucesso nos moldes de um livro. Foi adaptado para o cinema por François Truffaut em 1966. Fábula exemplar de um dito incendiário, Fahrenheit 451foi comparado a 1984, de George Orwell.

Conforme a reputação de Bradbury cresceu, ele escreveu o roteiro para a versão de Moby Dick filmada por John Huston em 1956, alguns scripts para a série Alfred Hitchcock Presents (no Brasil, Suspense), poesias e peças de teatro.

Embora Bradbury defendesse o programa espacial como uma aventura que a humanidade não ousaria deixar de lado, ele se contentou em restringir as próprias aventuras ao domínio da imaginação. Viveu na mesma casa por mais de 50 anos, criando quatro filhas ao lado da mulher, Marguerite, que morreu em 2003. Recusou-se durante muitos anos a viajar de avião, preferindo os trens, e nunca aprendeu a dirigir.
Por mais que a vida sedentária de autor lhe parecesse agradável, ele não era um recluso. Desenvolveu certo talento para falar em público, algo que fez dele uma personalidade muito procurada para palestras. Ele falava de sua luta para reconciliar seus sentimentos ambíguos em relação à vida moderna, tema que inspirou boa parte da ficção que conquistou um público tão amplo e simpático.
E falava do futuro, descrevendo como este o atraía ao mesmo tempo que o afastava, deixando-o apreensivo e esperançoso.

Gerald Jonas, do New York Times. Reproduzido do suplemento “Link” do Estado de S.Paulo, 11/6/2012; tradução de Augusto Calil.

sábado, 9 de junho de 2012

A Consolação da Filosofia*


Anício Mânlio Torquato Severino Boécio

O aristocrata romano Boécio (480-524) tinha tudo para ser feliz, segundo os parâmetros habituais. Era rico, poderoso, influente. Tinha uma inteligência excepcional: verteu para o latim toda a obra de Aristóteles e Platão. A decadente Roma, em sua época, estava sob o domínio bárbaro dos godos. Boécio era intensamente admirado pelo imperador godo, Teodorico. Dele ganhou uma função de destaque na administração pública. Tudo corria pelo melhor para Boécio até que a roda da fortuna se movimentou. Acusado de traição, algo que com o tempo se viu ser uma falácia criminosa, foi condenado à morte. Enfrentou suplícios antes da execução: por exemplo, uma correia de couro apertada em seu crânio. Boécio recebeu a marca dos condenados à morte: a letra grega Theta queimada na carne. Era assim que os presos destinados a morrer eram distinguidos dos demais.

Do martírio de Boécio nasceu um clássico entre os clássicos da literatura ocidental: o livro A Consolação da Filosofia, escrito por ele no curto e tumultuado período entre a sentença e a morte. Tudo de que Boécio dispunha materialmente para escrever suas reflexões eram pequenas tábuas e estiletes. Isso lhe fora passado por amigos solidários. Mas ele tinha, acima de tudo, uma cultura e memória prodigiosas. Em seus dias, a elite intelectual costumava guardar na memória os textos clássicos, lidos em voz alta desde a infância e arquivados nos cérebros privilegiados como o de Boécio como uma espécie de “biblioteca invisível’. Foi com a ajuda dessa biblioteca nada convencional que Boécio escreveu um comovente, sublime, duradouro testemunho de como a filosofia pode ajudar as pessoas a enfrentar situações cruéis como a que ele experimentou.

Trata-se de um espetacular triunfo do espírito sobre a força, e isso logo foi reconhecido. A Consolação da Filosofia foi uma das três obras mais lidas na Idade Média, ao lado da Bíblia e de A Regra Monástica, de São Bento. Há, no Brasil, uma fina edição da Martins Fontes, na qual a tradução competente direta do latim se combina com um prefácio primoroso. Boécio cria, no livro, uma conversa entre ele, perturbado por sua queda, e uma musa, que representa a filosofia. Ele está prestes a morrer e no entanto tem uma espécie de renascimento espiritual nos diálogos com a musa.

A filosofia lhe mostra que os bens cuja perda ele tanto lamenta, das propriedades à vida mesma, se têm o brilho do vidro também têm sua fragilidade. O único bem que não nos pode ser tirado é aquilo que temos dentro de nós, uma “musculatura interior” que nos faz aceitar com graça e dignidade os reveses do destino. “A felicidade pode entrar em toda parte se suportarmos tudo sem queixas”, escreveu Boécio. Há em nós uma tendência deletéria à insatisfação que impede a felicidade. Mesmo quando a sorte nos é favorável achamos razões para queixas. Queremos mais, sempre mais, em apaixonadas manobras da ambição que terminam em frustração. Sem o controle das paixões, e a mais perversa delas é a ambição, simplesmente não existe chance de ser feliz. Foi o que ensinou Boécio.


Paulo Nogueira. in. Diário do Centro do Mundo

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