sábado, 31 de março de 2012

Desilusão de ótica*




Houve um tempo em que o pior insulto que um fotógrafo podia receber, ao mostrar uma imagem, era a de que ela estava “fora de foco”. Apresentar uma foto que não estivesse nítida era um palavrão visual que marcava, por muito tempo, a falta de habilidade em manejar um equipamento e a insensibilidade em mostrar um pedaço de papel contendo alguma coisa nebulosa. Uma habilidade que, se supunha, um bom profissional deveria administrar com a mesma maestria com que um bom espadachim maneja seu sabre ou um bom escritor sua pena.
A tecnologia digital suprimiu a possibilidade de perder a foto decisiva por falta de prática na hora de focar, com a objetiva autofoco e uma avalanche de recursos – sejam eles embutidos nas câmeras, sejam na pós-produção – que permitem a qualquer um fotografar. E quando digo “qualquer um” é isso mesmo que quero dizer; qualquer pessoa pode produzir uma imagem, não é preciso nem prática nem habilidade para apertar o botão de qualquer aparelho e desse ato surgir uma imagem. Se ela é uma boa foto ou não, é outra historia. Mas esse não é o ponto. O ponto é que, hoje, a pior suspeita que se pode levantar sobre um fotógrafo é a de que ele manipulou sua imagem. O palavrão, hoje, se chama photoshop. E o fotógrafo que se atrever a deixar rastros de seu uso, no seu trabalho, passa a ser visto como amador.
Devo lembrar, porém, que a manipulação de imagens não é novidade. Mesmo nos desenhos das paredes da caverna de Lascaux os animais têm uma das quatro patas levantada para dar a percepção de que estavam se movimentando pelas pradarias perigordianas.
A supressão da memória

O pintor francês Ingres imaginou a tela de sua autoria “Napoleon I on his Imperial Trone” (1806) como uma maneira de enaltecer o imperador e, na sequência, conseguir apoio oficial para futuros trabalhos. Infelizmente, Ingres caprichou tanto no retrato que Napoleão, mesmo com seu ego inflado e sonhos de conquistador a se perder no horizonte, rejeitou o trabalho, achando que o pintor tinha passado da conta. Um caso de puxa-saquismo artístico que custou caro a Ingres; nunca recebeu uma encomenda oficial.
Outro pintor, o inglês John Singer Sargent, caiu em desgraça entre a alta sociedade da capital francesa depois de apresentar o retrato de Amelie Gautrau, o famoso Madame X, no Salão de Paris em 1884. O escândalo foi provocado pelo fato de uma das alças do vestido de madame Gautrau aparecer, na tela, displicentemente caída. O escândalo “deixou o artista pasmado e a modelo banhada em lágrimas”. E o que era para ser o ápice de uma ascensão social anunciada – a senhora Gautrau era conhecida pela excelência de suas roupas e sua beleza, e imaginava que aquela tela a tornaria o talk of the town parisiense – se transformou, no século 19, em um exemplo de crash and burn digno do mercado de celebridades de hoje. Sargent refez o quadro e, na tela que pode ser contemplada no Museu de Arte Metropoliano de Nova York, duas alças – finíssimas, é verdade – cobrem os ombros de madame Gautrau.

Cair em desgraça era o que levava os dirigentes do Partido Comunista russo, ou do chinês, a desaparecer, como por milagre, das fotos oficiais depois de certo tempo. Na medida em que os camaradas iam entrando em declínio político, as caras deles sumiam das fotos. O fenômeno de supressão da memória era feito pelos retocadores que, com um pincel e um estilete, seguiam os caprichos históricos de Stalin ou Mao Tse-tung.
A ferramenta não faz o mecânico

A tecnologia digital, além de facilitar o ato de fotografar, tem de compensar de alguma maneira a quantidade de imagens erradas que são jogadas para o ar, por segundo, no mundo. Para isso existem mais de 80 ferramentas e plug ins dentro do photoshop. Com elas você pode retocar uma imagem, substituindo uma área por outra, ou copiar um pedaço da superfície retratada por outra. Ou, ainda, pode diminuir, e aumentar, partes do corpo, ou alterar o formato das roupas vestidas. Não consigo imaginar aonde Méliès poderia ter chegado se tivesse tido acesso na sua época a alguma coisa parecida. Mas posso contemplar, um dia sim, outro também, o que são capazes de fazer mentes sem talento no acabamento das imagens atuais.

A ideia por trás do photoshop não é a otimização da mentira, mas melhorar a luz e atenuar eventuais condições adversas em que a foto tiver sido feita. No aplicativo está reunido todo o conhecimento necessário para que as pessoas, os lugares, os objetos saiam bem na foto, o mesmo conhecimento que por muitos anos foi dominado por poucos e agora está ao alcance de qualquer um. Não podemos esquecer que a Playboy foi lançada em 1953 e as mulheres dentro das páginas dela sempre pareceram, apesar de quererem ser as garotas da vizinhança, perfeitas.
Mas, assim como o hábito não faz o monge, a ferramenta não faz o mecânico. Uma boa imagem não é conseguida a partir de instrumentos de aperfeiçoamento, e sim em função de um bom equipamento e de uma boa luz. O uso do programa que corrige os erros de português do Word, que estou usando neste momento, não implica que o texto será melhor ou pior, apenas mais legível.
O enganador em seu lugar

As aparências podem enganar, mas não durante muito tempo. Um sorriso – verdadeiro photoshop da simpatia estampada no rosto – só convence se as intenções são verdadeiras. O mesmo se pode dizer de uma foto. E os exageros das imagens maltratadas afundam como a propaganda enganosa que tentam empurrar através da retina dos consumidores.
A manipulação de imagens, não se enganem os puristas, não é nenhuma novidade. A novidade é o espanto que essa manipulação possa provocar nas pessoas e a suposta vitimização do consumidor que, para algumas mentes legislativas, parece ser incapaz de analisar sozinho as informações que recebe. Como se tudo tivesse de ser mastigado, tirando a possibilidade de discernir o certo do errado e de se supor a ausência de uma inteligência própria no indivíduo, que funcionaria melhor quando substituída por uma coletiva, em que uns poucos dizem, e decidem, o que é bom para todos. Daí para a infantilização das pessoas, e que elas sejam tratadas como crianças, é um passo.
A propaganda através de imagens poderá ser enganosa, com ou sem photoshop, porque a honestidade é um aplicativo mental que depende de cada um. Ninguém altera a imagem do frasco do produto, que vai ser encontrado fisicamente no supermercado ou no balcão de vendas; o que se extrapola é o tamanho do sonho, o tamanho do intangível.
Quem quiser burlar o próximo o fará como sempre foi feito, com lei ou sem lei. Cabe uma outra lei, a do mercado, colocar o enganador em seu lugar.

Love, Love, Love...



"Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?"

Fernando Pessoa

A Cela*




A escuridão é ampla e envolvente.

O silêncio total, cortado apenas por aquele velho barulho que parte de seus ouvidos.

Sempre fora assim: quando em silêncio, em paz ou em expectativa, o zumbido voltava, em duração enervante, direto como a fala direta do policial:

- Deixa as mãos dele algemadas.

Aos poucos, ia apalpando o escuro da cela, o silêncio da escuridão, o zumbido do próprio corpo - estava no chão frio: não era cimento nem tijolo, terra batida, úmida, mas não molhava ao ponto de ensopar sua roupa - os braços para trás das costas, os pulsos algemados.

Aos poucos, ia apalpando o chão com o corpo, de bruços, o rosto quase a tocar a areia: - sentia o cheiro da terra - uma terra vermelha e usada, com cheiro de mofo, cheiro de urina - sentia as paredes, mesmo sem vê-las na escuridão: a opressão do cubículo estava em seu corpo, em seus poros.

A posição era incômoda: as mãos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na areia fria.

- Deixa as mãos dele algemadas.

Por quanto tempo cheirava a terra abafada pelo próprio corpo? Horas, dias - lembrou-se de que precisava comer ou urinar ou falar ou gritar, mas na verdade não tinha vontade de fazer coisa alguma, queria apenas permanecer na posição incômoda, como se estivesse em maratona para provar que o corpo podia resistir a tudo.

Tentou se mexer, mas sentiu que o ombro direito, fincado no chão, estava dolorido - puxou o braço nas costas, e as algemas nos pulsos rasgaram a carne com um estremecimento: o silêncio foi interrompido com uma espécie de chiado - podia agora saber que sangrava, havia um novo odor no ar abafado - o sangue cheirava a barro, a ferro com ferrugem, cheirava a terra seca quando recebe as primeiras chuvas.

Era isso ou apenas imaginava um odor ou adivinhava a cor viva embebendo a terra cinza - e sangue e terra acabavam por formar uma abstração, um enigma.

Também não sabia se era noite, se era dia claro - uma cela sem grades, sem a pequena janela no alto, talvez sem porta. Mas por mais fechada que estivesse, uma porta sempre deixava passar alguma claridade, uma réstia de luz, um sopro vivificador. Nenhuma luz, nem uma leve brisa.

Da posição em que estava, mais uma vez tentava esquadrinhar o escuro, à procura de um ponto, de uma indicação que pudesse ser o ar ou a luz. Via o escuro de baixo para a frente e para cima, em ângulo ascendente.

Do teto também não escapava coisa alguma, mas o quarto - era mais um quarto do que uma cela comum - estava frio, embora abafado, um tanto úmido, cheirando a mofo. E se estava frio, úmido, cheirando a mofo, era porque recebia, em qualquer hora, chuva, vento ou algum raio de sol perdido.

Assim, concluiu: era noite, e como o frio apertava na espinha agora, concluiu: era madrugada, e como o cheiro do ar entrava em suas narinas, filtrado através do que quer que fosse, concluiu: a manhã estava próxima, e como o estômago reclamava o vazio estertor, concluiu: faz mais de vinte e quatro horas que não me alimento.

E se decidiu a esperar pela manhã próxima - alguma claridade poderia atravessar aquela escuridão, pelo teto, pelos lados, onde deveria existir uma porta, fechada tão rente à parede como se fosse um prolongamento dela. E se decidiu a esperar que lhe trouxessem alguma coisa para comer, e se decidiu a esperar que acontecesse algo, mesmo um pequeno barulho ou um grito ou alguém caminhando lá fora ou dizendo algumas palavras.

"Lá fora".


Assis Brasil. in. Os que bebem como os cães. Ed. Renoir, 2009, pp. 13-14.

Terapia do riso*


Seu nome deu sua profissão.

Galeno começou curando os ferimentos dos gladiadores e terminou sendo o médico do imperador Marco Aurélio.

Acreditou na experiência, e desconfiou da especulação:

- Prefiro o longo e penoso caminho ao hábil e curto atalho.

Em seus anos de trabalho com os doentes, comprovou que o costume é a segunda natureza e que a saúde e a enfermidade são modos de vida: aos pacientes de natureza enfermiça,  aconselhava a mudar de hábito.

Descobriu ou descreveu centenas de doenças e curas, e provando remédios comprovou:

- Não há melhor medicina que o riso.


Eduardo Galeano. in. Espelhos. Ed. L&PM, 2009, p.60.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Hedy Lammar*




Me lembro do nome dessa atriz austríaca porque era uma das preferidas de minha mãe. Ouvi-a muitas vezes falar em “édi-lamár” antes mesmo de ver esse nome escrito. O filme que a levou para Hollywood foi Êxtase (1933), um filme tcheco em que aparecia nua e simulava um orgasmo. Nos EUA, por pouco não estrelou Casablanca. Seu grande sucesso foi Sansão e Dalila (1949), ao lado de Victor Mature. Largou o cinema cedo, porque não suportava Hollywood; era uma “atriz difícil”. Morreu em 2000, aos 86 anos. A julgar pelas fotos da época, era linda. Tinha um rosto que era uma mistura de Vivien Leigh e Ava Gardner. (Que coisa injusta, e inútil, é comparar os rostos de mulheres bonitas.)

Ela aparece hoje nesta coluna por outros motivos. Ainda na Áustria, nos anos 1930, foi casada com um poderoso industrial simpatizante do nazismo, em cuja mansão costumavam se reunir altos oficiais militares, discutindo tecnologia e armamentos. Falavam livremente na frente dela, que aos seus olhos era apenas uma esposinha atriz, do tipo bonita e burra. Não era. Era inteligente e tinha uma cabeça engenheira. Quando largou o marido e foi para Hollywood, ficou amiga do compositor e roteirista George Antheil, que morou em Paris e era amigo de Man Ray, Stravinsky e Ezra Pound. Em 1940 os dois começaram a conversar sobre a guerra de submarinos que afundava os navios aliados, e começaram a trabalhar juntos num projeto de controle de torpedos pelo rádio. Hedy procurava criar um comando de rádio que mudasse de frequências, e Antheil sugeriu usar uma fita perfurada com as das pianolas mecânicas. Nesta página (http://bit.ly/sotDzn), vê-se uma cópia da patente requerida pelos dois, com data de 1942. (Um sistema semelhante é usado hoje nos celulares, para evitar interferência.) Em 1997, a Electronic Frontier Foundation concedeu-lhe (e, postumamente, a Antheil) um prêmio pelo desenvolvimento pioneiro dessa tecnologia, chamada de Salto de Frequência ou FHSS (Frequency Hopping Spread Spectrum).


Antheil escreveu sobre ela: “Hedy é uma ótima garota, mas meio maluca, que além de ser muito bonita passa a maior parte do tempo livre inventando coisas. Ela acabou de inventar um novo tipo de ‘soda pop’, que está patenteando, imagine só”. O engenheiro Nino Amarena, que a entrevistou em 1997, disse: “Nunca achei que estava conversando com uma estrela de cinema, mas com uma inventora, uma colega. Quando duas mentes afins falam sobre tecnologia, desaparece a idade, o sexo, a experiência de cada um”. Todos dizem que a beleza de Hedy foi uma espécie de maldição que a jogou num ambiente que ela detestava, o “star system” dos estúdios de cinema.



Braulio Tavares. in. Mundo Fantasmo

quinta-feira, 29 de março de 2012

Os livros são objetos transcendentes*





Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.
(Caetano Veloso, Livros)
Veja o Clip:

Ray Charles*

Ray Charles (1930-2004)


Sinta o som do "ceguinho"... Maravilhoso!!!!


Hit the road Jack!





My Bonnie 

quarta-feira, 28 de março de 2012

O bicho*




Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.


Manuel Bandeira. in. Estrela da vida inteira. Ed. José Olympio, 1979, p. 179.

Millôr*

As cidades imóveis e os paraísos fabricados*




Não se espante com o barulho. Ele vai aumentar. O dia está amanhecendo, mas o  movimento é grande. A estratégia de sair da crise oferecendo carros encantou a população. Houve uma corrida ao consumo de um bem ambicionado. Ficou mais fácil  ter o último modelo do ano do que manter o mais velho. Era, antes, um sacrifício arrumar grana para qualquer coisa. Os carros tocam suas dissonantes sinfonias. Acordam, provocam engarrafamentos longos, causam acidentes, completam a vaidade de muita gente. Uma máquina atuante e cheia de fascínio, quase uma moradia no mundo pós-moderno. Não se preocupe com o caos. Há promessas de construções de viadutos e planos fabulosos para alcançar a mobilidade que pede a Fifa.

As cidades estão se desfigurando. Elas não podem se transformar em fotografias permanentes do passado, porém a velocidade das mudanças transtorna. As praças viraram estacionamentos, não sobra lugar para a prática de nada. Os ruídos impedem uma boa conversa, os bancos servem para o descanso merecido dos habitantes das ruas e as árvores suspiram pedindo atenção. Será que caminhamos para o concreto armado e o asfalto sem sinais do verde e dos ventos refrescantes? Sinto-me encurralado.

Há quem reclame da violência da vida urbana. Protestos contínuos, brigas das torcidas de futebol, ônibus sem horário definido, drogas vendidas nas esquinas com desenvoltura, tudo isso não é lenda. Basta tentar circular e verificar os embalos de quem sonha com o desenvolvimento. Como querer calma com tensões cotidianas? O mercado imobiliário fabrica paraísos, inventa torres e se apropria dos terrenos com uma volúpia incomensurável. E o poder público tem alguma política de salvação ou compactua com as ambições das poderosas construtoras? Nada acontece sem negociações. Como elas se dão? Quem vence? Que interesses merecem destaques?

Se optar por ficar em casa, melhor fechar as janelas para evitar, também, a poeira das máquinas moventes que não dormem e se assanham com os afetos dos seus donos. Os deslocamentos da afetividade são visíveis. Os objetos recebem atenção especial. Eles garantem status e respeito na vizinhança. Por isso, correr atrás das liquidações das lojas é quase uma diversão. Faz-se a festa, até no estrangeiro. O modo brasileiro de enfrentar as crises capitalistas globalizou-se. Até os Estados Unidos adoram receber turistas com suas bolsas volumosas vindos de um país antes tão menosprezado. A necessidade se mobiliza e não protege as cerimônias. O valor de troca espalha-se com cinismos e justificativas fundamentadas.

Este é o mundo que vivemos. Uma selva disfarçada em vitrines e shoppings, talvez com mais armadilhas do que as existentes nas velhas aventuras de Tarzan. Um grande mercado que não cessa de usar seduções e inventar novidades. Não imagine consistências e nem tenha vergonha de cultivar desconfianças. A quantidade de assinaturas exigidas pela burocracia não comprova que a honestidade é soberana. Pergunte e se pergunte. O conforto quer silenciar a inquietude. Não esqueça que não há dominação absoluta. Os mais espertos temem falhas, configuram segredos, reúnem-se em salas vedadas ao máximo, mas o mundo gira.


Antonio Rezende. in. Astúcias de Ulisses

Minutos de Sabedoria: Equilíbrio*



Procure viver com equilíbrio, mesmo dentro da agitação da vida diária. 

Não se deixe levar pela onda desordenada que envolve a todos.

Pode trabalhar muito, ter atividades grandes, mas nunca deixe de fazer tudo a tempo e a hora, equilibradamente.

Reserve uma hora para sua leitura, para sua meditação, para sua higiene mental, a fim de manter-se constantemente em equilíbrio.



C. Torres Pastorino. in. Minutos de Sabedoria. Ed. Vozes, 2000, p. 210.



Velhice*




Para um homem consciente, a velhice e o que esta pressagia não é nenhuma surpresa. Ele é consciente dela na medida em que não oculta de si mesmo o seu horror. Em Atenas havia um templo consagrado à velhice, aonde levavam as crianças.


Albert Camus. in. O mito de Sísifo. Ed. Record, 2010, p.87.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Consciência da morte*


"Anjos", representação da morte infantil no Brasil dos oitocentos


Sabemos que a morte faz parte da vida e que nascer é começar a morrer (não conhecemos outra forma de vida senão a finita, a que se acaba...); sabemos que o ser humano é mortal, que todos havemos de morrer e que disso ninguém escapa. Não sabemos qual será a nossa hora nem se o fato de morrer é um ponto final absoluto. Tememos, por um lado, o sofrimento que eventualmente pode preceder a morte, e, por outro lado, tememos, com outra espécie de temor, que com a morte tudo se acabe para nós; nos angustia a ideia de uma aniquilação definitiva.

Sabemos, pois, que a morte não é um problema ou obstáculo - eventualmente superável -, mas sim uma condição. Essa condição nos é revelada, em parte, pela efemeridade. É óbvio que não há remédio que funcione contra a morte, e tampouco a saúde é esse remédio. Esse conhecimento nos acompanha por toda a vida e, inclusive quando se pretende mantê-lo em voluntário esquecimento, nos segue qual sombra sussurrante.

A consciência da morte dá motivo para a afirmação de que só o homem morre. Ainda que  normalmente expliquemos o contraste entre o inanimado, que passa, se desgasta, se destrói, desaparece, e o vivo, que morre, também se poderia dizer com uma certa propriedade que só o homem morre, já que só ele é consciente do morrer: a planta murcha, o animal expira, o homem morre. Sua vida está configurada pela consciência de sua mortalidade. As plantas e os animais também "morrem", porém não são conscientes disso; são finitos, mas ignoram sua finitude.


Josep. M. Esquirol. in. O respirar dos dias, Ed. Autêntica, 2010, p. 102.


Sexo e desejo*




"As mulheres querem amor, os homens querem sexo." Se esse simples estereótipo fosse verdade, não existiria a questão do vício do sexo. O apetite dos homens pelo sexo, com tantas parceiras quanto possível, seria simplesmente uma questão definidora de sua masculinidade. O desejo das mulheres pelo amor dominaria qualquer tendência para o sexo, que seria o preço para se conseguir a recompensa de amar e ser amada.

Mas esta antiga observação, pelo menos no mundo atual, poderia ser modificada. As mulheres querem sexo? Sim, pela primeira vez as mulheres coletivamente, e não como especialistas em uma ars erotica, são capazes de buscar o prazer sexual como um componente básico de suas vidas e de seus relacionamentos. Os homens querem amor? Certamente, apesar das aparências em contrário - talvez mais que a maioria das mulheres, embora de formas que ainda precisam ser investigadas. A posição dos homens no domínio público foi alcançada à custa de sua exclusão da transformação da intimidade.



Anthony Giddens. in. A transformação da intimidade, Ed.Unesp, 1993, p.79.


domingo, 25 de março de 2012

O efêmero e o perpétuo*



Robert Doisneau (April 14, 1912 – April 1, 1994) 

A perpetuação da memória é, de uma forma geral, o denominador comum das imagens fotográficas: o espaço recortado, fragmentado, o tempo paralisado; uma fatia de vida (re)tirada de seu constante fluir e cristalizada em forma de imagem. Uma única fotografia e dois tempos: o tempo da criação, o da primeira realidade, instante único da tomada do registro no passado, num determinado lugar e época, quando ocorre a gênese da fotografia; e o tempo da representação, o da segunda realidade, onde o elo imagético, codificado formal e culturalmente, persiste em sua trajetória na longa duração. O efêmero e o perpétuo, portanto.



Boris Kossoy. in. Os tempos da fotografia, Ed. Ateliê, 2007, p.133.




Lisbon Revisited (1923)*






Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Álvaro de Campos



Fernando Pessoa. in. Poemas, Ed. Nova Fronteira, 1980, pp. 127-8.


As invisíveis*


"la soldadera"

Mandava a tradição que os umbigos das recém nascidas fossem enterrados debaixo da cinza do fogão, para que cedo aprendessem qual é o lugar da mulher, e que dali não se sai.

Quando explodiu a revolução mexicana, muitas saíram, mas carregando os fogões nas costas. Por bem ou por mal, por seqüestro ou por vontade própria, seguiram os homens de batalha em batalha. Carregavam o bebê preso na teta e nas costas as panelas e caçarolas. E as munições: elas se encarregavam de que não faltassem tortillas nas bocas nem balas nos fuzis. E quando o homem caía, empunhavam a arma.

Nos trens, os homens e os cavalos ocupavam os vagões. Elas viajavam nos tetos, rogando a Deus que não chovesse.

Sem elas, soldadeiras, cucarachas, adelitas, vivandeiras, galletas, joanas, pelonas, guachas, aquela revolução não teria existido.

Nenhuma recebeu pensão.



Eduardo Galeano. in. Espelhos, Ed. L&PM, 2009, p. 251.



O tempo que nos resta*



Há um simples e precioso conselho, exemplo de sabedoria prática, na Regra que escreveu São Benedito para seus monges: “Fazes as pazes antes do por do sol...” Fazer as pazes pode ser perdoar, desculpar-se, entender-se, falar-se, dar-se a mão, abraçar-se ou dedicar um simples olhar benévolo. Fazer as pazes também é uma maneira de dar tempo ao outro. Como convivência entre as pessoas nem sempre é fácil e cômoda, podendo haver mal-entendidos, erros, ofensas, invejas, cuidados e diversas desavenças, deve-se procurar agir de maneiras que permitam continuar convivendo; uma dessas maneiras de agir é fazer as pazes.

Mas, segundo São Benedito, é oportuno fazer esse gesto antes que o sol se ponha, ou seja, antes que o dia acabe; evidência que nunca deveríamos esquecer: que o dia acaba, que a vida humana e seu tempo são finitos. A expressão mais inequívoca de tal finitude é a mortalidade, e, provavelmente, a característica que mais define a nossa condição é que somos conscientes de nossa mortalidade. Somos ou teríamos de sê-lo, já que, às vezes, por efeito de diversas espécies de anestésicos, vivemos e fazemos as coisas como se isso houvesse de durar para sempre. Assim pois, o bom conselho beneditino, além de deixar clara nossa capacidade de amar o próximo, é também uma maneira de manter desperta a consciência de nossa condição finita e mortal.

Há, todavia, outro aspecto que merece ser destacado: a partir de um ponto de vista tanto individual como coletivo, saber que o tempo não se amplia indefinidamente, e sim que tudo chega ao fim, nos torna mais responsáveis. Certamente temos de responder pelo que está em nossas mãos enquanto ainda temos tempo. Apenas à primeira vista isso pode parecer um pouco chocante, mas logo depois se descobre sua lógica: quando sabemos que não temos todo o tempo do mundo, e sim um tempo limitado, é que decidimos fazer o esforço. A consciência da finitude leva à ação.

Paradoxalmente, é quando há previsões a curto e médio prazo que o alarme dispara e se começa a estar disposto a fazer alguma coisa. Poderíamos apresentar um sem número de exemplos e situações sociais nas quais não se agiu até que o mal já fosse iminente. Em muitos desses casos já não se pode evitar a desgraça. Ou seja, não se agiu (não se fizeram as pazes) quando realmente fazia falta (antes do pôr do sol). Contudo, “melhor tarde do que nunca”..., sempre se pode ter a sorte de acabar salvando alguma coisa.


[fragmento]


Josep M. Esquirol. in. O respirar dos dias, Ed. autêntica, 2010, pp. 99-100.


Beijo do Hotel De Ville*



kiss by the Hotel De Ville, 1950
Robert Doisneau

O poético repórter fotográfico parisiense Robert Doisneau (1912-1924) gostava de se referir a si mesmo como pecheur d´images, um pescador de imagens. Ele fez algumas das fotos de beijo mais conhecidas do mundo, e o seu Beijo do Hotel De Ville chegou a ser publicado na revista Life em 1950. A imagem em preto-e-branco em alto contraste mostra um homem e uma mulher se beijando numa rua movimentada de Paris. O fascínio é imediato. Além do abraço dos dois transbordar um clima de paixão e romance, o cenário não poderia ser mais perfeito: Paris, a cidade de l´amour. Não é de admirar que o tal beijo tenha sido amplamente difundido em reproduções que decoram de cartazes a cartões postais pelo mundo todo hoje em dia, funcionando como lembrete inspirador da importância de buscar momentos assim, de felicidade perfeita.

Julie Enfield. in. História íntima do beijo, Ed. Matrix, 2008, p.177. 




sábado, 24 de março de 2012

O mestre do humor*


Chico Anysio (1931 - 2012)

Num país de tanta injustiça e misérias, rir sempre foi uma grande expressão da tristeza do nosso povo. Este Blog (que leva o humor a sério) humildemente agradece a esse (e a tantos outros) artista brasileiro pela capacidade de nos fazer tomar consciência da realidade pela via do humor, que, segundo o filósofo Wittngenstein, não é apenas um estado de espirito, mas uma visão de mundo.

Pela sua biografia, sensibilidade e competência,

Obrigado "Mestre" Chico. 


...

 Abaixo, três momentos deste grande artista brasileiro:




Chico, por ele mesmo:






Monólogo: "Mundo Moderno":




Em show no ano de 1969: 






Educação pelos sonhos*



Por Vasko Popa



Salto de telhado em telhado
E com enorme rede de borboletas
Caço tecnocratas burocratas
Gnoseocratas

Coloco os mais belos exemplares
Em pequenos vidros com álcool
E escrevo nos rótulos
Cada nome pesquisado

Mostro-os aos alunos em classe

Junto com dinossauros
Gigantossauros tiranossauros
Que descem obedientes
Das paredes da sala de aula

E tu adoças o meu sonho
Vejo que a orelha esquerda te sorri

Provoca-me um quieto inseto
Meu conhecido professor de biologia



A obrigação de dizer*



A língua, como performance de toda linguagem, não é nem reacionária nem progressista: ela é simplesmente fascista; pois o fascismo não é a proibição de dizer, é a obrigação de dizer.


Roland Barthes

sexta-feira, 23 de março de 2012

Valeu Chico!*


“Não tenho medo de morrer. Tenho pena.”

Chico Anysio


Tenha um propósito*


Se você perde seu propósito… é como se você estivesse quebrado.

Fala do personagem Hugo Cabret no filme de Martin Scorsese 


quinta-feira, 22 de março de 2012

Broto tem que usar monoquíni*



Por Josenias Silva

Fiu, Fiu.. Que bárbaro!
...

Vinha caminhando na praia / Quando escutei grande gritaria / Parei nem sei o que pensei

Como todo bom brasileiro / Fui também bancar o olheiro / E o que vi não esqueci / Nem quero recordar

Um brotinho de monoquini / Que antes só usava biquíni / Vinha caminhando assanhada / Pra lá e pra cá
...

Me aproximei de mansinho / Pra melhor olhar
Quando de repente o brotinho / Resolveu nadar

Grande confusão outra vez / Se não sou forte não tinha vez / Nadou, nadou até que cansou / E foi pro sol secar /

Não posso contar o que vi / Mas sei que nunca mais esqueci / Broto tem que usar monoquíni / Não suporto mais o biquíni

...

(Eu sou fã do monoquíni, Roberto Carlos)



Amigo, você já viu um “brotinho” de monoquíni por aí?

Acredito que se você tenha agora menos de 50 provavelmente não teve a oportunidade de ver um “broto” desses. Uma pena!

O monoquíni foi uma peça do vestuário de praia feminino muito cultuado nos anos 60. O monoquíni – também conhecido como “engana-mamãe” – foi criado por Rudi Gernreich na Califórnia (EUA) em 1964, e consistia basicamente numa peça única (mono) que ia das  coxas até a cintura (com versões mais curtas), sendo depois atado por duas tiras finas que cruzavam os seios e as costas.

Uma maravilhosa invenção do diabo que, infelizmente para nós marmanjos de plantão, não deu muito certo por aqui (um despeito!).  

Mas não seja por isso, olha o tal do monoquíni aí.






Na versão clássica:




E como diria o rei Roberto:

Fiu, fiu... que bárbaro!



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