segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Cinco razões para ter medo*

A primeira razão é que o medo é inevitável. É possível que alguém passe a vida inteira sem experimentar o amor, a saudade, o ódio. Mas – o medo? Duvido. Pense num bebê de um ou dois anos, no rosto assustado com que ele encara um desenho, uma imagem na TV. Amor e ódio precisam de um mínimo de justificativa; o medo não. É um sistema-de-alarma embutido em nossos neurônios há milhões de anos. Devemos em grande parte a esse sistema a nossa sobrevivência como espécie. Se não há como fugir dele, temos que experimentá-lo, saboreá-lo, medi-lo, conhecê-lo a fundo.


Em segundo lugar: o medo é uma revelação. Ele vem de um lugar oculto, e só vem quando quer, não quando nós queremos. Não sei de que modo alguém possa sentir medo voluntariamente. Isso não existe. O medo é algo que nos sobrevém, que nos envolve, queiramos ou não. Podemos gerá-lo artificialmente (e aqui entram os livros e filmes de terror, etc.), mas será sempre isto: um medo artificial, um medo de mentirinha. Não é o terror pânico, aquele que nos amolece as pernas e nos esvazia os intestinos. Quando experimentar este, caro leitor, agradeça, por mais que a experiência tenha sido humilhante ou constrangedora. Agora você está mais perto de saber quem realmente é.


Terceiro: o medo nos faz manter os pés no chão. E neste caso em particular estou me referindo não ao medroso contumaz, mas ao sujeito metido a valente, ao ousado, ao aventureiro, ao que gosta de enfrentar desafios. Se ele tem a cabeça no lugar, ele sabe que o medo é um bom conselheiro. O conselho que o medo nos dá não é “Bora correr!” Quando sentimos medo, algo está nos dizendo que finalmente estamos diante de uma coisa que pode nos servir de peso e de medida. Já disse algum filósofo que sujeito corajoso não é o que não sente o Medo, mas o que sabe mantê-lo sob controle e continuar fazendo o que tem pra fazer.


O quarto motivo é que o medo é um ativador aleatório de sistemas. Não sabemos quais são os sistemas de reflexos físicos e mentais que ele vai ativar em nós, mas só saberemos se o experimentarmos. O campo de batalha já mostrou valentões que se encolhem apavorados e sujeitos lesos que se transformam em heróis. A experiência-limite que desencadeia o medo desencadeia também outras reações correlatas que variam de caso para caso.


Em quinto lugar (e esta é uma razão para convencer os mais cínicos) o medo dá dinheiro. Vejam a imensa indústria atual do filme de terror, do romance de terror. (Curiosamente, não se cultiva mais hoje em dia um teatro de terror, a não ser como sátira ou paródia; foram-se os dias do Grand Guignol francês) É um medo de mentirinha, como afirmei acima, mas pessoas sensatas argumentarão que se é pra sentir medo é melhor divertir-se sentindo um medo inofensivo e sob controle (aí estão os parques de diversão com suas montanhas-russas e o escambau) do que o medo de alguma coisa hostil que nos ameaça pra valer.

Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

Visão 1944*



Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico
esperando a passagem dos soldados.

Meus olhos são pequenos para ver
luzir na sombra a foice da invasão
e os olhos no relógio, fascinados,
ou as unhas brotando em dedos frios.

Meus olhos são pequenos para ver
o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade
que amanhã será pó e pus no arame.

Meus olhos são pequenos para ver
a bateria de rádio prevenindo
vultos a rastejar na praia obscura
aonde chegam pedaços de navios.

Meus olhos são pequenos para ver
o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.

Meus olhos são pequenos para ver
o corpo pegajento das mulheres
que foram lindas, beijo cancelado
na produção de tanques e granadas.

Meus olhos são pequenos para ver
a distância da casa na Alemanha
a uma ponte na Rússia, onde retratos,
cartas, dedos de pé boiam em sangue.

Meus olhos são pequenos para ver
uma casa sem fogo e sem janela
sem meninos em roda, sem talher,
sem cadeira, lampião, catre, assoalho.

Meus olhos são pequenos para ver
os milhares de casas invisíveis
na planície de neve onde se erguia
uma cidade, o amor e uma canção.

Meus olhos são pequenos para ver
as fábricas tiradas do lugar,
levadas para longe, num tapete,
funcionando com fúria e com carinho.

Meus olhos são pequenos para ver
na blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono.

Meus olhos são pequenos para ver
o deslizar do peixe sob as minas,
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.

Meus olhos são pequenos para ver
os coqueiros rasgados e tombados
entre latas, na areia, entre formigas
incompreensivas, feias e vorazes.

Meus olhos são pequenos para ver
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro —e o muro é branco.

Meus olhos são pequenos para ver
essa fila de carne em qualquer parte,
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo.

Meus olhos são pequenos para ver
a gente do Pará e de Quebec
sem noticia dos seus e perguntando
ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.

Meus olhos são pequenos para ver
todos os mortos, todos os feridos,
e este sinal no queixo de uma velha
Que não pôde esperar a voz dos sinos.

Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos,
proibidos de viver, mas em que a vida
lateja subterrânea e vingadora.

Meus olhos são pequenos para ver
as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos,
os rios desatados, e os poderes
ilimitados mais que todo exército.

Meus olhos são pequenos para ver
toda essa força aguda e martelante,
a rebentar do chão e das vidraças,
ou do ar, das ruas cheias e dos becos.

Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo te dispersas.

Meus olhos são pequenos para ver
atrás da guerra, atrás de outras derrotas,
essa imagem calada, que se aviva,
que ganha em cor, em forma e profusão.

Meus olhos são pequenos para ver
tuas sonhadas ruas, teus objetos,
e uma ordem consentida (puro canto,
vai pastoreando sonos e trabalhos).

Meus olhos são pequenos para ver
essa mensagem franca pelos mares,
entre coisas outrora envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.

Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
— mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.

Carlos Drummond de Andrade in. A Rosa do Povo. Ed. Circulo do Livro, 1988. pp. 161-4.


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A Guilhotina*



Uma alta porta sem porta, um batente vazio. No alto, suspensa, a lâmina mortal.

Teve vários nomes: a Máquina, a Viúva, a Barbeadora. Quando decapitou o rei Luís, passou a se chamar Luisinha. E finalmente foi batizada, para sempre, de Guilhotina.

Em vão foram os protestos de Joseph Guillotin. Mil vezes alegou que não era filha dele essa carrasca que semeava terror e atraía multidões. Ninguém escutava as razões daquele médico, inimigo jurado da pena de morte: dissesse o que dissesse, todo mundo continuava acreditando que ele era o pai da atriz principal do espetáculo mais popular das praças de Paris.

E todo mundo também acreditou, e continua acreditando, que Guillotin morreu guilhotinado. Na verdade, ele exalou o último suspiro na paz do leito, com a cabeça bem colada no corpo.

A guilhotina trabalhou até 1977, quando um modelo ultra-rápido, de comando elétrico, executou um imigrante árabe no pátio da prisão de Paris.


Eduardo Galeano. in. Espelhos. Ed. L&PM, 2009. pp. 172-3.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Gota d´água*


Tudo está na natureza encadeado e em movimento – cuspe, veneno, tristeza, carne, moinho, lamento, ódio, dor, cebola e coentro, gordura, sangue, frieza, isso tudo está no centro de uma mesma e estranha mesa / Misture cada elemento – uma pitada de dor, uma colher de fomento, uma gota de terror / O suco dos sentimentos, raiva, medo ou desamor, produz novos condimentos, lágrima, pus e suor / Mas, inverta o segmento, intensifique a mistura, temperódio, lagrimento, sangalho com tristezura, carnento, venemoinho, remexa tudo por dentro, passe tudo no moinho, moa a carne, sangre o coentro, chore e envenene a gordura / Você terá um ungüento, uma baba, grossa e escura, essência do meu tormento e molho de uma fritura de paladar violento que, engolindo, a criatura repara o meu sofrimento co’a morte, lenta e segura / Eles pensam que a maré vai mas nunca volta / Até agora eles estavam comandando o meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando, recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta e tão forte quanto eles me imaginam fraca / Quando eles virem invertida a correnteza, quero saber se eles resistem à surpresa, quero ver como eles reagem à ressaca.

BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. “Gota D’Água”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira Ed., 1982, pp.160-161.
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