quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Gozar a vida*




“O que você está fazendo com a capacidade de 4.000 orgasmos de sua existência?” 

Wilhelm Reich

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Do suicídio*



Por Albert Camus



As pessoas se matam porque a vida não vale a pena ser vivida, eis uma verdade incontestável – infecunda, entretanto, porque é um truísmo. Mas será que esse insulto a existência, esse questionamento em que mergulhamos, provém do fato de ela não ter sentido? Será que seu absurdo exige que escapemos dela, pela esperança ou pelo suicídio? Eis o que será preciso esclarecer, perseguir e ilustrar, descartando todo o resto. O absurdo comanda a morte, temos que dar prioridade a este problema sobre os outros, independentemente de todos os métodos de pensamento e brincadeiras do espírito desinteressado.


in. O mito de Sísifo, 2010, p.22.

“Hugo Cabret”*



Por Braulio Tavares



Filmes de celebração ao cinema são um subgênero especial da arte cinematográfica. Narcisismo umbilical? Conspiração nostálgica? Sentimentalismo para eleitos? Talvez quem faça filmes assim esteja querendo, às vezes, injetar um pouco de sonho e de fantasia em algo que foi só fantasia e sonho no passado, mas a partir de certa idade tornou-se (para diretor, roteirista, atores, técnicos) apenas profissão, obrigação a mais, caminho sem escolha. Fazer filmes sobre “a magia do cinema” é uma tentativa de recuperar o frescor e a alegria dos começos felizes.

Este filme de Martin Scorsese, baseado num livro de Brian Selznick, aborda o cinema por vias transversas: mecanismos de relojoaria, autômatos, um misterioso livro manuscrito… Em cenas cruciais do filme os personagens trocam entre si as palavras “mistério” e “aventura”, e sorriem, como se uma senha tivesse sido fornecida e aceita. É um filme de jovens-adultos na linha de O enigma da pirâmide (“Young Sherlock Holmes” de Brian Levinson) mas também um filme para adultos-jovens na linha de Amélie Poulain de Jean-Pierre Jeunet. Sua homenagem ao cinema mudo vai se desvelando a partir da metade da narrativa, mas os autores não esquecem de fazer menção à literatura aventuresca (Alexandre Dumas, Julio Verne) cujo espírito recupera. É mais que adequado que um filme sobre Georges Méliès, o criador dos efeitos especiais do cinema mudo, seja feito em 3-D, reconstituindo a reação espantada das platéias e refletindo-se, na narrativa, naquelas longas sequências de perseguição e rápidos deslocamentos que não têm outro propósito senão o visual. O movimento cinematográfico é algo como uma melodia: umas pessoas sentem beleza nisso, outras não. Reclamar das vertiginosas perseguições deste filme em 3-D é como reclamar das iluminuras medievais e dizer que nada acrescentam ao texto bíblico.

O filme é longo e poderia contar a mesma história com 15 minutos a menos; imagino que Scorsese fez de propósito, para bater de frente com a montagem-relâmpago de hoje em dia. Quis uma montagem analítica, como a prosa de Dumas ou Verne. Se a montagem é lenta, é a câmara que é rápida, voando como uma seta, uma bala teleguiada, através de “tableaux” sucessivos e minuciosos como a arte da Belle Époque. Seu filme é uma homenagem ao Cinema, arte híbrida de química, ótica e mecânica. Uma arte que reúne os amantes de relojoarias, lanternas mágicas, diafragmas e íris, imagens impalpáveis, criaturas artificiais, sonhos, pesadelos, monstros de papelão, lâmpadas, desenhos que se movem, fantasmagorias, ectoplasmas, cavernas de Platão, ilusionismo, prestidigitação, imaginação, memória, aventura e mistério.


(28.2.12)


A síndrome do loop e a crítica*



Por Nicolau Sevcenko



É fato que não se pode prever o curso e o ritmo das inovações tecnológicas, mas a conclusão seguinte – de que também não podemos resistir a elas ou compreendê-las – não é verdadeira. Podem-se fazer muitas coisas com a técnica, e graças ao seu incremento é possível fazer cada vez mais. Mas uma coisa que a técnica não pode fazer é abolir a crítica, pela simples razão de que precisa dela para descortinar novos horizontes. Os sistemas políticos que tentaram banir a crítica morreram, sintomaticamente, por obsolescência tecnológica. A crítica, portanto, é a contrapartida cultural diante da técnica, é o modo de a sociedade dialogar com as inovações, ponderando sobre seu impacto, avaliando seus efeitos e perscrutando seus desdobramentos. A técnica, nesse sentido, é socialmente conseqüente quando dialoga com a crítica.

[fragmento]

in. A corrida para o século XXI, 2001, p.17.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A mulher vitoriana*



Por Emily Brontë



Cathy permaneceu em Thruscross Grage cinco semanas; até o Natal. Durante esse tempo, seu tornozelo curou-se completamente e seus modos melhoraram muito. A patroa, naquele período, visitou-a muitas vezes, e iniciou seu plano de reforma, tentando despertar-lhe o amor próprio, com belas roupas e lisonjas, que ela aceitava de boa vontade. De modo que, em vez de uma pequena selvagem, embarafustando pela casa, de cabeça descoberta, e lançando-se sobre a gente para abraçar-nos até tirar-nos o fôlego, vimos descer de um lindo poldro negro uma pessoa muito distinta, com cabelos castanhos que caiam de sob um chapéu de castor, enfeitado de plumas, e com um comprido vestido de veludo, que ela era obrigada a suspender com as duas mãos para poder andar. Hindley apeou-a do cavalo, exclamando, encantado:

- O que, Cathy! Estas uma verdadeira beleza! Quase não te conheço. Agora sim, estás parecendo uma senhora.


[fragmento]


in. O morro dos ventos uivantes, 1979, p. 53.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A muralha e os livros*


Por Jorge Luis Borges

                                                                                                                               Shih Huang Ti

Li, há dias, que o homem que ordenou a edificação da quase infinita muralha chinesa foi aquele primeiro Imperador, Shih Huang Ti, que também ordenou que se queimassem todos os livros anteriores a ele. Que as duas vastas operações – quinhentas ou seiscentas léguas de pedras, opostas aos bárbaros, a rigorosa abolição da história, isto é, do passado – tenham procedido de uma só pessoa e tenham sido de certo modo seus atributos, inexplicavelmente me satisfez e, ao mesmo tempo, me inquietou. Indagar as razões dessa emoção é a finalidade desta nota.

Historicamente, não há mistério nas duas medidas. Contemporâneo das guerras de Aníbal, Shih Huang Ti, rei de Tsin, submeteu a seu poder os Seis Reinos e eliminou o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas serviam para defender; queimou os livros, porque a oposição os invoca para louvar os antigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum entre os príncipes; a única coisa singular em Shih Huang Ti foi a escala em que agiu. É o que deixam entrever alguns sinólogos, mas sinto que os fatos que narrei não são apenas um exagero ou hipérbole de disposições triviais. Cercar um horto ou jardim é uma coisa comum, mas não cercar um império. Também não vão pretender que a raça mais tradicional renuncie à memória do seu passado, mítico ou verdadeiro. Três mil anos de cronologia tinham os chineses (e nesses anos, o Imperador Amarelo e Chuang Tzu e Confúcio e Lao Tzu), quando Shih Huang Ti ordenou que a história começasse com ele.


[fragmento]


in. Nova antologia pessoal, 1969, pp. 202-203.


A mudez dançada*



Por Clarice Lispector


Danse à Saint Germain des Prés, Paris, 1951
                                                                         Foto: Robert Doisneau

A dança propriamente dita se inicia. O homem é moreno, miúdo; obstinado. Ela é severa e perigosa. Seus cabelos foram esticados, essa vaidade da dureza. É tão essencial essa dança que mal se compreende que a vida continue depois dela: este homem e esta mulher morrerão. Outras danças são a nostalgia dessa coragem. Esta dança é a coragem. Outras danças são alegres. A alegria desta é séria. Ou a alegria é dispensada. É um triunfo mortal de viver o que importa. Os dois não riem, não se perdoam. Compreendem-se? Nunca pensaram em se compreender, cada um trouxe a si mesmo como único estandarte. E quem for vencido – nessa dança os dois são vencidos – não se adoçara na submissão, terá aqueles olhos finalmente espanhóis, secos de amor e raiva. O esmagado – os dois serão esmagados – servirá vinho ao outro como escravo. Embora nesse vinho, quando vier a paixão do ciúme, possa estar a morte. O que sobreviver se sentirá vingado. Mas para sempre sozinho. Porque só esta mulher era a sua inimiga, só este homem era o seu inimigo, e eles se tinham escolhido para a dança.


in. Elenco de cronistas modernos, 2005, p. 257.

Chorar*



Por Eduardo Galeano



Foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:

- Por que choram na frente dela, se ela ainda está viva?

E os que choravam responderam:

- Para que ela saiba que gostamos muito dela.

in. O livro dos abraços, 2010, p. 214.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Das causas do sofrimento humano*



Por Sigmund Freud



O sofrimento ameaça de três lados: a partir do próprio corpo, que, destinado à ruína e à dissolução, também não pode prescindir da dor e do medo como sinais de alarme; a partir do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças superiores, implacáveis e destrutivas, e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que provém desta última fonte talvez seja sentido de modo mais doloroso que qualquer outro; tendemos a considerá-lo como um ingrediente de certo modo supérfluo, embora não seja menos fatalmente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.


in: o mal-estar na cultura, 2010, pp. 63-64.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Eles & Elas*



machismo é coisa do passado...






mas um “cadim” de gentileza nunca é demais...

Conte apenas com você mesmo*



Por Paulo Nogueira



UMA BREVE  discussão ‘filosófica’.
Somos todos atormentados pela idéia da solidão, não somos? Certo.
Almoçar sozinho, ir ao cinema sozinho, viajar sozinho: estes são alguns dos nossos pesadelos de todos os dias. A solidão é um anátema, um estigma, quase uma marca cravada na carne do solitário.
Mas.
Mas por quê?
Bem, uma das razões é que a solidão é tratada a pontapés em todos os filmes, em todas as novelas e em todas as conversas que vemos e travamos. Ninguém basta a si próprio. Essa a mensagem contínua que recebemos.
Faz sentido?
Não, não faz. Isso nos leva a depender sempre dos outros para sermos felizes. Cícero disse o seguinte: “Quem depende apenas de si mesmo e em si mesmo coloca tudo tem todas as condições de ser feliz.”
Muito tempo depois, Dostoievski escreveu que ficar sozinho é uma “necessidade natural, como dormir e comer”. Schoppenhauer disse que as pessoas não suportam a solidão porque não suportam a si mesmas. Os chineses ricos, no final da vida, costumavam abandonar toda a riqueza e conforto para, numa vida solitária e remota, terem a chance de meditar e refletir.
Uma única vez vi, num filme, uma mensagem sábia sobre o tema. Foi em Beleza Americana. A menina adolescente presencia uma briga horrível entre os pais num jantar. Fica chocada e vai para o seu quarto, onde a mãe depois aparece e diz: “Hoje você aprendeu a maior das lições. Conte apenas com você mesma.”
Platão não teria dito uma frase melhor.


Os teus pés*



Por Pablo Neruda



Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram voo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.



terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Último desejo*



Por Eduardo Galeano


La Coruña, verão de 1936: Bebel García morre fuzilado.

Bebel usava a esquerda para jogar e para pensar.
No estádio, veste a camiseta do Depor. Na saída do estádio, veste a camiseta da Juventude Socialista.

Onze dias depois da morte de Franco, quando acaba de fazer vinte e dois anos, enfrenta o pelotão de fuzilamento:

 - Um momento – ordena.

E os soldados, galegos como ele, boleiros como ele, obedecem.

Então Bebel desabota a braguilha, lentamente, botão por botão, e cara a cara com o pelotão lança uma longa mijada.

Depois, abotoa a bragueta:

- Agora, sim.

­in: Espelhos, 2009, p. 271.

Amor*



Por Paulo Leminski



Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.


in: Caprichos & relaxos, 1985.

Carnaval*

Freud, Jung & Sabina – e o sexo masoquista*



Por Paulo Nogueira



Jung e Sabina, no filme de Cronenberg

Na era do cinema para débeis mentais consagrado por Hollywood e cuja apoteose é o Oscar, é um prazer redobrado ver um bom filme como Métodos Perigosos, de David Cronenberg, diretor de A Mosca.
Clap, clap, clap. Aqui estou, aplaudindo de pé.
A história é fascinante: o triângulo formado por Jung, Freud e a jovem russa Sabina Spielgen no começo dos anos 1900. Fazia pouco tempo que Freud cunhara a palavra “psicanálise”, em sua Viena.
Não é exatamente um triângulo amoroso. A cópula, em si, aliás nada convencional, fica a cargo de Sabina e Jung. Ela, filha de uma família judia rica da Rússia, acabaria internada no hospital psiquiátrico suíço em que Jung, começava sua carreira. Sabina tinha 19 anos, e Jung, com menos de 30, já experimentava o tédio do casamento com Emma.
Jung testa em Sabina aquilo que aprendera ao ler intensamente Freud, a psicanálise. Logo descobre a natureza de seu distúrbio. O pai batia nela. E ela ficava sexualmente excitada ao apanhar. Masoquismo. Não demora muito, Jung está dando a Sabina aquilo de que ela gosta – castigo físico. E sexo: viram amantes. Ele a desvirgina e depois disserta sobre as virtudes da poligamia.

 Sabina
Sabina, intelectualmente brilhante, acabaria enveredando também pela psicanálise. Sua estatura só seria devidamente apreciada nos anos 1970, quando foram descobertas cartas que mostravam não apenas o papel decisivo dela na ruptura entre Freud e Jung como, mais que isso, suas idéias originais no campo da psicanálise ao estabelecer um vínculo decisivo entre o impulso sexual e o instinto de sobrevivência. (Freud, para quem o sexo era ligado ao prazer e não à sobrevivência, não perdoou o que julgou canalhice no comportamento de Jung ao supostamente se aproveitar da vulnerabilidade da paciente indefesa.)
Desde que vieram à luz as cartas em que fica clara a grandeza histórica de Sabina, ela foi objeto de biografias, peças, artigos acadêmicos – e, agora, o filme de Cronenberg. Nele, Sabina é interpretada notavelmente por Keira Knightley. (Fiquei bem mais impressionado com Keira como Sabina do que com Meryl Streep como Thatcher, e não estou falando aqui em beleza e juventude.)
Sabina cumpriu o destino de tantos judeus de sua geração. Foi morta, com as duas filhas, em sua Rússia natal pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial.
Mas sua participação como protagonista na história da psicanálise – como paciente, como amante, como pensadora e como pivô do rompimento dos dois grandes gênios da matéria – acabaria por imortalizá-la, como prova o filme de Cronenberg. É um trabalho tão bom que me fez comprar, na mesma noite, o livro “Sex versus Survival”, de John Launer, que narra a trajetória de Sabina. (Astutamente, a Amazon lançou o ebook quando saiu o filme. Li em poucas horas quase todo, e recomendo vivamente.)
Mais uma vez, clap, clap, clap para o filme, cujo trailer você pode ver no pé deste artigo.
De pé.

[Trailer clique aqui]



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Que tal*




Por Torquato Neto


Torquato Neto

Quero morrer no Carnaval
Curtindo a sensacional desgraça
Dessa praça completamente igual
Ao resto que conheço em beira de estrada
Quero morrer no Carnaval
Encalhado na monumental bagunça tropical
Que por obra e graça dessa mesma praça
Danço, danço feito um mais
Que se salva
Uma corrente é uma corrente
Assim como uma rosa é uma certa rosa
Quente, superquente, distante diante da frente
Dessa praça completamente igual
Que eu conheço
Trivial variado
É o lado de dentro
Trancado, trancado
que tal.


(1972)


in: Kenard Kruel, Torquato Neto ou a carne seca é servida, 2008, p. 288.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Ouse tudo!!!*


Por Lou Andreas-Salomé




Lou Andreas-Salomé (1861-1937)

Ouse, ouse... ouse tudo!!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! 
Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, 
mas algo de bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!!

Lima Barreto nas ruas de hoje*

Por José Castello



Entre tantas coisas, o que mais me entusiasma na leitura de "O passeador", romance de Luciano Hidalgo (Rocco), é seu esforço, delicado mas firme, para recuperar a imagem ainda hoje tão esmaecida, tão "escolar", do genial Lima Barreto. Seu esforço para segui-lo pelas ruas de um Rio de Janeiro que decai, enquanto se moderniza - o escritor como testemunha aflita de uma transformação. Para recuperar sua força, tão desprezada pelas vozes enfáticas e cheias de si do Modernismo de 1922. 

Ainda hoje, o Modernismo de 22 ergue-se como uma barreira entre nosso presente, nosso acelerado século 21, e a obra de Afonso Henriques de Lima Barreto. Morto justamente no ano de 1922, aos 41 anos de idade, ele teve no modernismo uma espécie nada sutil de carrasco. Com suas palavras de ordem renovadoras, sua aposta cega nas vanguardas, sua obsessão pelo futuro, os modernistas não souberam ver a força renovadora, a postura avançada, a aliança com o futuro que a obra de Lima significa. 

Misturando dados biográficos com uma imaginação exuberante, Luciana Hidalgo nos dá um romance que coloca Lima Barreto justamente onde ele devia sempre estar: no centro de uma grande aflição. Quase um século depois de sua morte, essa alma andarilha e aflita continua a nos servir como modelo para enfrentar um mundo que há muito desistiu das vanguardas (e,portanto, do futuro), mas que se transformou numa espécie monstruosa de devorador do presente. 

Mundo do imediato, do instantâneo, do tempo real, como se sentiria nele Lima Barreto? Certamente, nada bem. Contudo, ele se pudesse caminhar pelo Rio de Janeiro de hoje, onde duas vertentes opostas - beleza profunda e modas fúteis - também se misturam, nos ofereceria, por certo, um olhar devastador. Aquele olhar em que a crítica forte se mistura com a doçura, mescla que tanto nos falta. 

Lima Barreto via com desconfiança o mundanismo - e veria com a mesma desconfiança, por certo, o universo de celebridades que, hoje, toma a frente da cena midiática. Desconfiava do progresso a qualquer preço - e hoje desconfiaria também de certa idéia repetitiva e vazia de futuro que, enquanto parece avançar, nos arrasta para trás. Mulato em um país que acabava de abolir a escravatura, Lima veria hoje com desconfiança, por certo, a suposta "falta de preconceitos" raciais que esconde, no dia a dia, os preconceitos mais repulsivos. 

Faltam-nos os olhos agudos de Lima Barreto, sempre discreto, sempre pequeno, um tanto irônico quando pensa em si mesmo. Sem pose, sem desejo de fama e fortuna, livre das pressões da glória, disposto apenas - como fazem os grandes escritores - a viver e escrever. Se frequentava, com entusiasmo, um sebo na rua Gonçalves Dias, hoje, por certo, ele ainda estaria no mesmo sebo - em vez de perambular pelas livrarias de shopping. Retrocesso? Apego doentio ao passado? Ou, vamos experimentar pensar assim, busca de um caminho que seja apenas seu? 

O andarilho solitário é o oposto do homem contemporâneo que busca os holofotes e flerta com as multidões. O gosto pelo lentos passeios a pé (o flanar) contrasta com a alegria rápida dos jovens de hoje (Lima morreu jovem!), que preferem a inércia das lan house ou, ao contrário, as performances espetaculosas dos esportes radicais à lentidão do livre pensar. Observe-se as fotos que ficaram do escritor e nelas encontramos uma placidez que se mistura com a paciência. Paciência que tanto nos falta. 

Lima Barreto: nosso contemporâneo. É através de uma ficção, um romance delicado, e não de uma defesa de tese, que isso se torna mais claro. O romance de Luciana Hidalgo nos sugere que leiamos o velho Lima com novos olhos. Com nossos olhos - e não com os olhos daqueles que o desprezaram e até tentaram anular. Com os olhos do presente, um presente que não se ilude nem com o sangue do passado, nem com as miragens do futuro. Que tal encarar Lima Barreto? Um mundo inteiro se abre.



A importância de um elogio*



The Bathroom / Fernando Botero




O marido, nu, olha-se no espelho e diz para a esposa:

- Estou tão feio, gordo, careca, sacudo, brocha, acabado!

Preciso de um elogio...

 A esposa responde:

- A sua visão está ótima!!!



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Por que escrevemos*



Por Braulio Tavares


Escrevemos por dinheiro. Somos mercenários? Não vejo por quê. Um bancário iria passar oito horas no caixa, diariamente, só por idealismo ou para dar sua contribuição ao sistema financeiro? Um político se daria a todo aquele nhém-nhém-nhém somente por amor à pátria? Todo mundo trabalha por dinheiro: operários, camponeses, professores, balconistas, camelôs, enfermeiros, advogados, taxistas. O X da questão não é “não querer dinheiro”, porque de dinheiro todo mundo precisa. O X é: não fazer nada somente pelo dinheiro, porque isto roça pela prostituição; fazer a mesma coisa em circunstâncias em que não haja dinheiro envolvido; enobrecer e valorizar esse dinheiro. Sempre que eu ganho um dinheiro com um texto de cordel, por exemplo, eu me sinto na obrigação de reinvestir um pouco dele (e do meu tempo) no cordel, cuja existência me permitiu ganhá-lo.

Escrevemos por vaidade. Para ver nosso nome no jornal, nossa foto na revista, nossa entrevista na TV. Escrevemos para ser reconhecidos em público; “Olha lá... Aquele é Fulano de Tal. Pense num cara inteligente!”. Quem não gosta disso? Eu gosto, e muito. Não importa o nome que se dê: vaidade, orgulho, amor próprio, auto-estima. Todo mundo precisa, lá num porãozinho bem escuro e íntimo, justificar a própria existência diante de si mesmo. Todo mundo precisa dizer: “eu sou o cara que faz tal coisa, e faz bem”. Sem isso ninguém levanta da cama de manhã. Principalmente no inverno, e sabendo que a conta bancária está no vermelho. Escrevemos para podermos dizer: “Ora dane-se, eu sou o Raio da Silibrina, tão pensando o quê?!”

Escrevemos por missão. A missão nos é imposta de fora para dentro ou de cima para baixo, não importa. Nossa missão quem nos dá são os outros, e disso não tem como fugir. A vida é uma combinação de mares e de ventos levando nosso barquinho. Claro que temos velas e temos remos, mas, mandar no vento ou nas ondas? Nem pensar. Às vezes pensamos que nossa missão é uma coisa, e a vida nos dá outra, e é nessa outra que descobrimos melhor quem somos. É bom realizar os sonhos, mas é bom também sabermos que podemos realizar coisas com as quais não tínhamos sonhado. Às vezes é até melhor.

Escrevemos por prazer. Nelson Rodrigues dizia que sem sorte ninguém consegue sequer atravessar uma rua. Pois digo eu que sem prazer ninguém sequer conjuga um verbo. O prazer não é constante e contínuo. Escrever é cansativo, desgastante e muitas vezes é como atravessar um deserto. Mas se é o que você gosta de fazer, há sempre a possibilidade de na próxima página ou no próximo parágrafo as coisas se combinarem daquela forma que produz o prazer que buscamos. O prazer de fazer bem feito e de acreditar (pelo menos) que nunca na História do mundo alguém pensou a frase brilhante que a gente acabou de digitar. O prazer é sempre possível; basta apenas a gente esquecer o dinheiro, a vaidade, a missão, e não parar de escrever.

(24.12.2010)



A civilização do couro*



Por Capistrano de Abreu


Pode-se apanhar muitos fatos da vida daqueles sertanejos dizendo que atravessaram a época do couro. De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os bangüês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz.


[fragmento]


in: Capítulos de história colonial, 1998, p.135.

O diabo é mulher*



Por Eduardo Galeano



    "O Julgamento de George Jacobs, Agosto 5, 1692"
T.H. Matteson, 1855. Pintura a óleo.
Peabody and Esses Museum


O livro Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomendava o mais impiedoso exorcismo contra o demônio que tinha tetas e cabelos compridos.

Dois inquisidores alemães, Henrich Kramer e Jakob Sprenger, escreveram, por encomenda do Papa Inocêncio VIII, esse fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Santa Inquisição.

Os autores demonstravam que as bruxas, harém de Satã, representavam as mulheres em estado natural, porque toda a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável. E advertiam que esses seres de aspecto belo, contato fétido e mortal companhia encantavam os homens e os atraíam, com silvos de serpente, caudas de escorpião, para os aniquila-los.

Esse tratado de criminologia aconselhava a submeter a tormentos todas as suspeitas de bruxaria. Se confessavam, mereciam o fogo. Se não confessavam, também, porque só uma bruxa, fortalecida pelo amante, o Diabo, nas festas de feitiçaria, conseguia resistir a semelhante suplício sem abrir a boca.

O Papa Honório III havia sentenciado:

- As mulheres não devem falar. Seus lábios levam o estigma de Eva, que foi a perdição dos homens.

Oito séculos mais tarde, a Igreja Católica continua negando-lhes o púlpito.

O mesmo pânico faz com que os fundamentalistas muçulmanos lhes mutilem o sexo e tapem seus rostos.

E o alívio pelo perigo conjurado leva os judeus muito ortodoxos a começar o dia sussurrando: 

- Obrigado, Senhor, por não ter me feito mulher. 


in: Espelhos, 2009, pp.115-116.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Literato cantabile*



Por Torquato Neto


agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
Os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.


[fragmento].


in: Kenard Kruel, Torquato Neto ou a carne seca é servida, 2008, p. 263.

Todo cais é uma saudade de pedra*



Por Josenias Silva


Teve o primeiro que carregou a primeira pedra e a assentou no lugar do começo, depois vieram outras e mais outras. Ao primeiro juntaram-se mais alguns, cada qual com suas pedras e seu estilo próprio. E assim, ao cabo de muitas idas e vindas, surgiu o cais; mais que um amontoado de pedras, história de muitas vidas contada na beira do rio e nos calos das mãos. Do primeiro que se dispôs (ou foi obrigado) a fazê-lo, daquele que carregou a pedra fundamental, nada se sabe, não ficou nem o nome, mas com certeza sem sua pedra inicial não viriam as outras, nem os barcos ou homens, nem riquezas, nem cidades de rio. Ao pedreiro, que talhou na pedra esta engenhosa arte de escorar-se na água, efetivamente se deve agradecer a toda história de cais.


Ninguém se lembrava de que aquelas lajes, hoje enegrecidas pelos destinos que cruzaram por ali, vieram em lombo de burro desde o campo de aviação. Quantos anos, uma pedra, depois outra, o rio sempre atrapalhando. Paciência daqueles homens – a mãe contava, o rio foi baixando, baixando, e eles fizeram o cais. Nenhuma pedra mais se levantou como aquelas do cais novo. E vivem fiscalizando, uns homens tomando conta das rachaduras. (BRASIL, Assis. Beira Rio Beira Vida, 2008, p.98).


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O fio e os rastros*



Por Carlo Ginzburg



  Moça com brinco de pérola, 47 x 40 cm. 
Vermeer de Delft - 1632-1675
The Mague Mauritshuis



Os historiadores, escreveu Aristóteles (Poética, 51b), falam do que foi (do verdadeiro), os poetas, daquilo que poderia ter sido (do possível). Mas, naturalmente, o verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de partida. Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como oficio alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo.


in: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício, 2007, p.14.

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