sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O que não mudará no mundo após a virada*





Por Josenias Silva




Vou começar dizendo que não sou pessimista. Que odeio quando alguém me chama de pessimista. Quero dizer, pessimista é alguém que encara tudo pelo lado pior, que prefere ver os defeitos, que não acredita na vitória do bem sobre o mal, que de alguma maneira é conformado com o negativismo das coisas e até torce para tudo dar errado. Juro, não sou assim. Sempre considero que sofro um excesso de realismo, de desconfiança natural sobre algumas coisas, mas a isso não chamo de pessimismo. Direi que é apenas uma forma cautelosa de olhar a realidade.

O fato é que nos aproximamos novamente do fim de outro ano - o que é uma boa coisa. Um outro ano começará e isso já é razão suficiente para esperarmos o melhor. E geralmente o melhor nesse período do ano ganha o sentido de mudança, ou seja, espera-se que no ano que vem alguma coisa possa mudar de lugar, que seja trocar a casa, o carro, o namorado, emagrecer, estudar mais, parar de fumar, casar etc., etc., etc. Enfim, são tantas as possibilidades individuais que nem me arrisco a dizer nada, cada pessoa sabe de si e também não sei o que é melhor para ninguém.

Mas e o mundo, quero dizer, será que algumas coisas nunca irão mudar? Por exemplo, ninguém planeja acabar a fome no mundo no próximo ano, embora isso seja possível. Ninguém planeja extinguir a desigualdade social, ninguém planeja distribuir a riqueza do mundo de forma justa, ninguém planeja fazer cessar todas as guerras, ninguém planeja fazer a poderosa indústria farmacêutica descobrir cura para doenças lucrativas, ninguém planeja a paz entre as religiões, ninguém planeja o fim das ditaduras, ninguém planeja a liberdade de quem está preso injustamente, ninguém planeja educação e moradia para quem não tem, ninguém planeja o fim da corrupção política, ninguém planeja o fim do ódio de classe e de sexo, ninguém planeja o começo de uma outra humanidade menos desumana, ninguém planeja começar o ano em um mundo verdadeiramente novo, embora todo mundo sonhe com isso. E sonhar nesse caso não é planejar, sonhar aqui é entregar as coisas ao destino, a um futuro misterioso que se anuncia diante da velha novidade do mundo.

Mas como não sou pessimista desejo o melhor para todos, embora não acredite que tudo mudará de uma virada só.


Feliz ano “novo”!


quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Cogito*

Por Torquato Neto





eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível


eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora


eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim


eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.


A dor que deveras sente*



Por Josenias Silva



Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Fernando Pessoa in: Poemas, 1985, p. 47.


Dor, segundo o Aurélio significa:

1. Sensação desagradável, variável em intensidade e em extensão de localização, produzida pela estimulação de terminações nervosas especiais.  2. Sofrimento moral; mágoa, pesar, aflição. 3. Dó, compaixão, condolência.

Dor, segundo quem sente:

Intraduzível.




Receita para lavar roupa suja*



Por Viviane Mosé





Mergulhar a palavra suja em água sanitária. Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.

Algumas palavras quando alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza. Por exemplo, a palavra vida.

Existem outras - e a palavra amor é uma delas - que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente. São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.

Dizem que limão e sal tiram sujeira difícil, mas nada. Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão. Agora nunca vi palavra tão suja como perda. Perda e morte, na medida em que são alvejadas, soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura, que é capaz de esvaziar o vigor da língua. O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar. O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo. A culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha. Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade. Já a palavra força cai bem em qualquer mistura. Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras. Sob o risco de perderem o sentido. A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons. Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa. Conviva com a palavra durante alguns dias. Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo. Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade. Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra limpa é uma palavra possível.



Macabéa e Olímpico de Jesus*





Por Clarice Lispector






Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de “operário” e sim de “metalúrgico”. Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa, embora ganhasse menos que o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo. “Metalúrgico e datilógrafa” formavam um casal de classe. A tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendo-o do lado errado, na ponta da cortiça. O trabalho consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima da máquina para colocá-las embaixo, sobre uma placa deslizante. Nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo. A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco de dinheiro: dormia de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia.

Macabéa disse:

– As boas maneiras são a melhor herança.

– Pois para mim a melhor herança é mesmo muito dinheiro. Mas um dia vou ser muito rico disse ele que tinha uma grandeza demoníaca: a sua força sangrava.



Clarice Lispector, A Hora da Estrela, 1984, p.68.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Para Hobsbawm, classe média foi protagonista de revoltas em 2011*





Historiador compara este ano a 1848, quando movimentos sacudiram a Europa e deixaram novas ideias.




A classe média foi a grande protagonista e força motriz das revoltas populares e ocupações que marcaram o ano de 2011. Esta é a opinião de Eric Hobsbawm, um dos mais importantes historiadores em atividade. Em entrevista à BBC, o historiador marxista nascido no Egito, mas radicado na Grã-Bretanha, afirma ainda que a classe operária e a esquerda tradicional - da qual ele ainda é um dos principais expoentes - estiveram à margem das grandes mobilizações populares que ocorreram ao longo deste ano.

''As mais eficazes mobilizações populares são aquelas que começam a partir da nova classe média modernizada e, particularmente, a partir de um enorme corpo estudantil. Elas são mais eficazes em países em que, demograficamente, jovens homens e mulheres constituem uma parcela da população maior do que a que constituem na Europa'', diz, em referência especial à Primavera Árabe, um movimento que despertou seu fascínio.
''Foi uma alegria imensa descobrir que, mais uma vez, é possível que pessoas possam ir às ruas e protestar, derrubar governos'', afirma Hobsbawm, cujo título do mais recente livro, Como Mudar o Mundo, reflete sua contínua paixão pela política e pelos ideais de transformação social que defendeu ao longo de toda a vida e que segue abraçando aos 94 anos de idade.
As ausências da esquerda tradicional e da classe operária nesses movimentos, segundo ele, se devem a fatores históricos inevitáveis. ''A esquerda tradicional foi moldada para uma sociedade que não existe mais ou que está saindo do mercado. Ela acreditava fortemente no trabalho operário em massa como  sendo o veículo do futuro. Mas nós fomos desindustrializados, portanto, isso não é mais possível'', diz.
Hobsbawm comenta que as diversas ocupações realizadas em diferentes cidades do mundo ao longo de 2011 não são movimentos de massa no sentido clássico. ''As ocupações na maior parte dos casos não foram protestos de massa, não foram os 99% (como os líderes dos movimentos de ocupação se autodenominam), mas foram os famosos 'exércitos postiços', formados por estudantes e integrantes da contracultura.  Por vezes, eles encontraram ecos na opinião pública. Em se tratando das ocupações anti-Wall Street e anticapitalistas foi claramente esse o caso.''

Uma vida em meio a revoluções


Hobsbawm passou sua vida à sombra - ou ao brilho - das revoluções. Ele nasceu apenas meses após a revolução de 1917 e foi comunista por quase toda a sua vida adulta, bem como um autor e pensador influente e inovador.
Ele tem sido um historiador de revoluções e, por vezes, um entusiasta de mudanças revolucionárias. O historiador enxerga semelhanças entre 2011 e 1848, o chamado ''ano das revoluções'', na Europa, quando ocorreram uma série de insurreições na França, Alemanha, Itália e Áustria e quando foi publicado um livro crucial na formação de Hobsbawm, O Manifesto Comunista, de Marx e Engels.
Hobsbawm afirma que as insurreições que sacudiram o mundo árabe e que promoveram a derrubada dos regimes da Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen, ''lembram 1848, uma outra revolução que foi tida como sendo auto-impulsionada, que começou em um país (a França) e depois se espalhou pelo continente em um curto espaço de tempo''.
Para aqueles que um dia saudaram a insurreição egípcia, mas que se preocupam com os rumos tomados pela revolução no país, Hobsbawm oferece algumas palavras de consolo. ''Dois anos depois de 1848, pareceu que alguma coisa havia falhado. No longo prazo, não falhou. Foi feito um número considerável de avanços progressistas. Por isso, foi um fracasso momentâneo, mas sucesso parcial de longo prazo -  não mais em forma de revolução''.
Com a possível exceção da Tunísia, o historiador não vê perspectivas de que os países árabes adotem democracias liberais ao estilo das europeias. ''Estamos em meio a uma revolução, mas não se trata da mesma revolução. O que as une é um sentimento comum de descontentamento e a existência de forças comuns mobilizáveis - uma classe média modernizadora, particularmente, uma classe média jovem e estudantil e, é claro, a tecnologia, que hoje em dia torna muito mais fácil organizar protestos.''

Fonte:http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/para-hobsbawm-classe-media-foi-protagonista-de-revoltas-em-2011/n1597421630273.html



Leia no original em inglês: http://www.bbc.co.uk/news/magazine-16217726

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Sério, tem coisa que não compensa*





Por Josenias Silva





- Vá por mim! Sério, tem coisa que não compensa. Você me entende? 



Café não costuma faia*


Por Braulio Tavares





Pegar a garrafa térmica, lavá-la em água corrente, deixá-la na pia, perto do fogão. Pegar a chaleira e enchê-la até um ponto que o olho já sabe. Acender o fogo, colocar a chaleira, colocar o suporte e o porta-filtro sobre a boca da garrafa. Pegar o vidro com o pó, pôr no filtro a quantidade certa, também sabida “de olho”, impossível de quantificar. Quando outra pessoa vai fazer e pergunta: “quantas colheres?”, não há resposta possível. É no olho, ponto final. 

Sento e fico olhando a chaleira esquentar. Café é uma droga? Espero que a “Food and Drugs Administration” norte-americana nunca chegue a esse veredito. É um estimulante artificial; produz um estado de euforia mental durante algum tempo; produz insônia, nervosismo e outros efeitos colaterais (em gente fraca, é claro); e vicia. Será que vicia mesmo? Não sei porque nunca parei de tomar. Nos últimos 50 anos certamente não se passaram dez dias seguidos sem que eu tomasse uma xícara de café. E a quantidade normal do meu dia é pelo menos um litro.

O café produz em mim o que o uísque produzia em Humphrey Bogart (“Todo mundo está três doses abaixo do normal”) ou em Paulo Francis (“Bebo para tornar as outras pessoas mais interessantes”). Ele produz uma argamassa neuronial que une a paisagem na janela, a data no calendário, a imagem no espelho, as tarefas na agenda, as mensagens no monitor, o milhão de versos incompletos perpetuamente esvoaçando no meu espaço mental como mariposas em torno de um poste aceso. O café é um diapasão energético que deixa tudo vibrando no mesmo mantra. Deixa nossa mente vibrando em uníssono com o cosmo, dizendo a si mesma e ao cosmos: Yes, we can! Qual é o cosmos que resiste a uma cantada dessas?!

A água chia; depois, borbulha. Dizem os experts que a água não deve ferver, pois queima o pó e altera o gosto. Uma vida inteira de hábitos rústicos me acostumou a esse gosto alterado, portanto sempre exijo que a água esteja fervendo quando a derramo no centro do pó, num fio contínuo, fazendo movimentos circulares para que o pó inteiro fique umedecido por igual (movimento que os experts também desaconselham, eita povinho desmancha-prazeres). O aroma sobe. Lembro a frase de um amigo: “O melhor momento do café é o cheiro antes do primeiro gole, assim como o momento mais bonito da mulher é quando ela se despe enquanto a esperamos na cama”. O cheiro do café é a prelibação, o antegozo. O estímulo que anuncia o prazer anuncia sempre o prazer total e sem condições, o prazer perfeito e platônico. A realidade fica sempre aquém, mas não importa. Todo café é perfeito, na trajetória da chaleira à xícara, e da xícara à boca.




segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Natal 2011*

Por Braulio Tavares






 ...e a roda do Zodíaco e seu zoo, 
como um filme de doze fotogramas,
sobre esta Terra projetou seus dramas
que nos dão a ilusão chamada vida.
Tridimensional e colorida,
sensorial, corpórea, carne-e-osso...
De onde virá, então, a voz que ouço
sussurrando que tudo é a Matrix?
Compartilho com os nerds e com os geeks
a noção de que o mundo é Simulacro;

uma área que une o micro e o macro
nesta hipernovela em que caminho
de mãos nos bolsos, tranquilão, sozinho,
pelos jardins da General Glicério
fotografando a face do mistério
de existirem jardins, papelarias,
escolas, locadoras, padarias,
este café que acolhe os literatos,
grama verde, remédio contra ratos...
Tudo tão verossímil. Tão real.

Tudo é vento e é fogo, mel e sal,
pedra de gelo e brasa sobre a pele;
tudo que nos atrai e nos repele,
o corpo vivo e seus magnetismos.
Por baixo deste chão, quantos abismos?
Mas eu caminho, e piso sem receio,
e num piscar constato que passeio
em Manaíra, e compro tapioca,
e o pão daqui, igual ao carioca,
sugere a hipótese de um mundo só.

Passa um carro-de-mão com seu forró
estrondando milhões de decibéis;
fico marcando o ritmo com os pés
enquanto espero meu sinal abrir.
Os carros passam sem me pressentir,
sem saber que vivi por mais um ano;
bem ou mal, eis-me aqui, sem nenhum dano
a não ser os de ordem financeira...
Abriu! E eu atravesso na carreira
como o último Beatle de Abbey Road.

Chego à vitrine, apalpo o cartão Gold,
que já está da finura de uma seda...
Natal, poeta, é uma cana azeda
que a gente chupa e louva-lhe a doçura.
Melhor presentear literatura,
dar poemas aos membros da família!
Sai mais barato que trocar mobília,
renovar guarda-roupa e tudo o mais...
Distribuir sextilhas ou hai-kais
e dar o caso como resolvido.

Sigo, a tirar velhas canções do olvido,
afinal é Natal, “bimbalham sinos”,
exumam-se os enfeites naftalinos,
e volta a ressoar pela cidade
Luís Bordón, “A harpa e a cristandade”,
o mesmo que tocava no Alto Branco...
Tanto tempo passou? Pois serei franco,
dentro aqui tudo aquilo ainda existe;
não me venham dizer, de dedo em riste,
que o meu passado se apagou em mim.

E ao futuro, também, só digo Sim;
talvez um simulacro, mas sincero.
E este presente do futuro eu quero:
os olhos calmos de um bebê mutante
que parecem dizer: não chore, cante
(e que me dizem mais quando adormeço);
e assim me redescubro e reconheço
ao zerar cada ano, cada “game”.
Sobrevivi, ou seja, recriei-me,
sempre o mesmo, e mudando em pleno voo...




_____
*Visitem o Blog deste cidadão aqui: Braulio Tavares, Mundo Fanstasmo... excelente. O cara escreve muito...

O pai dos 99%*



Por Paulo Nogueira





Etienne de La Boétie é o pai dos “99%” – a vasta maioria da sociedade para a qual cabe uma pequena parcela de um bolo quase todo devorado pelo restante “1%”, para usar expressões vinculadas a um movimento que marcou intensamente 2011, o “Ocupe Wall Street”.

La Boétie escreveu aos 18 anos, em 1548, um pequeno grande livro chamado “Servidão Voluntária”. Nele, La Boétie sustentava que são as pessoas que dão poder aos tiranos. Por isso elas são mais dignas de desprezo do que os ditadores de ódio.

Foi o primeiro livro francamente libertário. Foi usado pelos protestantes franceses como uma inspiração para reagir à violência dos católicos, expressa tenebrosamente no Massacre de São Bartolomeu, na segunda metade do século XVI. Milhares de protestantes que tinham acorrido a um casamento da família real francesa foram mortos por forças católicas.

Mais tarde, o tratado circulou entre revolucionários em vários momentos da história. Em 1789, por exemplo. Os teóricos do anarquismo foram também fortemente influenciados por la Boétie. O autor avisa, logo no início de “Servidão Voluntária”, que seu objetivo é entender como “tantas pessoas, tantas vilas, tantas cidades, tantas nações sofrem sob um tirano que não tem outro poder senão o que a sociedade lhe concede”.

La Boétie formou-se com louvor advogado pela Universidade de Toulouse, e depois foi um juiz especialmente admirado pela integridade. Arbitrou, por seu caráter libertário e equânime, muitas disputas entre católicos e protestantes.

Morreu aos 33 anos. Deixou todos os seus papéis a um amigo que o imortalizaria num ensaio sublime sobre a amizade: Montaigne. Tinham-se aproximado na juventude, depois que Montaigne leu com encanto uma cópia manuscrita de “Servidão Voluntária”. É com base na amizade entre ele e la Boétie que Montaigne escreveu seu célebre tratado sobre a amizade. “Dois amigos formam uma unidade tão absoluta que é como se fossem dois tecidos em que é impossível ver a costura que os junta”, disse Montaigne.

Montaigne tinha 31 anos quando seu amigo morreu. Ficou arrasado a ponto de se recolher e largar tudo que fazia. A dor da morte de la Boétie acabaria sendo vital para que ele começasse a escrever seus Ensaios.

O livro de La Boétie foi lido durante muito tempo em edições clandestinas por pequenos grupos de gente culta e rebelde. Um editor francês, muito tempo depois da morte de Montaigne, teve a idéia de publicar o tratado de La Boétie como um apêndice dos Ensaios, logo depois do que tratava da amizade e do próprio La Boétie.

Foi então que “Servidão Voluntária” ganhou reconhecimento em grande escala.

Quando os “99%” se insurgem contra a desigualdade em várias partes do mundo, eles podem até não saber – mas estão prestando um tributo a um gênio que ainda na universidade compôs linhas perenes contra a tirania e os tiranos.




sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Mais ou menos*

Por Chico Xavier





A gente pode morar numa casa mais ou menos, numa rua mais ou menos, numa cidade mais ou menos, e até ter um governo mais ou menos.

A gente pode dormir numa cama mais ou menos, comer um feijão mais ou menos, ter um transporte mais ou menos, e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro.

A gente pode olhar em volta e sentir que tudo está mais ou menos...

TUDO BEM!

O que a gente não pode mesmo, nunca, de jeito nenhum... é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos, ser amigo mais ou menos, namorar mais ou menos, ter fé mais ou menos, e acreditar mais ou menos.

Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos.


2012, reinício do mundo!


Por Leandro Uchoas





Algum engraçadinho inventou que os Maias anunciaram, para 2012, o fim do mundo. Embora todos os especialistas em cultura maia já tenham desmentido o boato, prevaleceu a versão do travesso, que deve estar se matando de rir dos efeitos de sua traquinagem. Não é de hoje que os fofoqueiros são capazes de fazer um estrago na opinião pública. Agora, um exército de preocupados anda com a pulga atrás da orelha. Ponto para a mídia de mercado, que ganhou um motivo a mais para reciclar suas reportagens catastrofistas, sempre muito rentosas.
Por que, no entanto, ao invés de negar o boato, não nos aproveitamos dele? Por que não imaginar que, de fato, esse mundo velho, onde tudo está torto, chegou ao fim, para dar vez a um mudo novo, solidário, justo e efetivamente democrático? Por que não imaginar 2012 como um ano de reinício, oportunidade única para se refazer esse modelo injusto de sociedade? Por que não damos, nós mesmos, fim a esse planeta, para criar um outro, efetivamente de todos?
Os que têm pressa de viver, e sonhos para além da conta, acompanhem-me nessa brincadeira. E imaginemos como será o mundo depois do fim:
- as guerras serão feitas de música, as espadas serão feitas de flores, e os fuzis serão feitos de flautas.
- os tiranos que dominam povos inteiros perceberão o quanto é efêmero e imaginário seu poder, e o quanto eles não valem um grão de areia a mais do que o menino sujo e faminto a pedir moedinhas no sinal.
- as pessoas perceberão que, quando falamos de tiranos que dominam povos, não nos referimos apenas aos ditadores de países de nome complicado, mas também do que se convencionou chamar de “investidores” e “megaempreendedores”.
- aqueles mocinhos de barba bem cortada, gravata no pescoço e sapato bem engraxado, vão de repente parar de correr de um lado para o outro. Vão colocar uma bermuda velha, e olhar para o céu. Ou que seja para uma montanha, ou para uma multidão. E, ao perceber o quanto é imenso o mundo, e o quanto são transitórias e desimportantes suas preocupações, abandonarão a mentira que chamam de vida.
-os jovens, de tão sã e potente rebeldia, perceberão e respeitarão o valor imenso da sabedoria dos mais velhos, especialmente desses anjos de luz a que chamamos de mãe e pai. E os idosos perceberão e respeitarão o poder de transformação da rebeldia dos jovens, e o papel que ela cumpre na reciclagem do mundo.
- as crianças serão efetivamente crianças, o máximo que lhes for possível. Seu jeito doce de ser, e o som suave de seu riso, vão enfim tomar o mundo. E permanecerão crianças até mesmo quando tiverem que trabalhar, ter filhos e contas a pagar.
- as contas a pagar, os sobrenomes e os cargos não se tornarão mais importantes do que a amizade, a partilha, a arte, o vento, o sol e a lua. Nunca mais.
-a vida terá mais de feminino, mais de boemia, mais de vagabundagem, mais de poesia, mais de loucura, mais de sensibilidade. E se decretará, em lei, que todo encontro ou reencontro, mas todo mesmo, deve ser como um abraço.
- e também se decretará, em lei, que as algumas leis são uma grande encrenca.
- não haverá mais esses depósitos de pobres errantes chamados prisões. E os ladrões mais abomináveis, os banqueiros, vão ficar com uma baita preguiça de roubar tanto.
- aqueles que tanto desejam ser ricos e famosos vão olhar, ao menos uma vez, por cinco ou seis minutos que seja, pela janela de suas casas. Ao ver miséria humana, se ainda houver, hão de rever suas metas. Fazendo-o, tornar-se-ão, enfim, ricos de fato.
- a mentira não será mais o maior dos vícios humanos, nas ruas, nas casas e nos jornais.
- os homens da Política não mais almejarão a fortuna, enganosa, ou o poder, passageiro. E os cidadãos comuns entenderão que de seu voto depende a sanidade da Política. Afinal, virar as coisas para o problema é ser conivente com ele.
- a crise ambiental será resolvida com a única solução possível, a mudança radical do modo de se organizar a vida no planeta.
- serão abolidas, com um decreto de lei, todas as fronteiras do mundo, de países, de classes, de religiões, de idades, de culturas, de afetos.
- ninguém mais se importará sobre como as pessoas fazem amor, mas apenas se elas amam. Nada mais.
- todo recurso será mobilizado para educar crianças, porque a tarefa mais óbvia não pode viver de migalhas.
- os maiores vícios químicos serão não a pedra, mas o sorriso, não o pó, mas o abraço. E legiões de jovens serão abandonados na afetolândia.
Entretanto, caso o inesperado aconteça e essas previsões ainda não se confirmem, não há porque se desanimar. Permaneceremos na luta, incansáveis, construindo devagarzinho o cenário para que essa nova Terra surja, incomparável e bela, e para que dentro dela nasça algo que possa, de fato, e com justiça, ser chamado de Humanidade. Assim, quando ela vier, em um ano, um século ou um milênio, certamente terá um pouquinho de nós.



quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Soneto dos descuidos chulos [1496]*



Por Glauco Mattoso



Palavras são palavras... Se Chicago
é nome de cidade, sem falar
de Boston, Praga, Mérida, não cago
se chamo um nome sério de vulgar...

Se Bulhões de Carvalho eu batizar
a rua dum puteiro,nada vago
será o sentido dado. Esse lugar
do Rio sempre teve o pato pago...

Quem manda haver num nome som sacana?
Um cara de Timor chama Xanana,
não chama? E o mafioso era Buscetta!

Depois querem que eu seja cuidadoso!
Ou não me chamarei Glauco Mattoso,
ou gafes nada impede que eu cometa!


Glauco Mattoso, As mil e uma línguas, 2008, p.52.

_____
*Glauco Mattoso é poeta, ficcionista, chronista e columnista em diversas midias. Pseudonymo de Pedro José Ferreira da Silva (paulistano de 1951), o nome artistico trocadilha com "glaucomatoso" (portador de glaucoma, doença congenita que lhe acarretou perda progressiva da visão, até a cegueira total em 1995), alem de alludir a Gregorio de Mattos, de quem é herdeiro na satira politica e na critica de costumes. [informação retirada do site oficial do autor].

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Por um Natal sem neve na TV*



Por Laurindo Lalo Leal Filho



O final de ano na TV é sempre previsível. A propaganda cresce e os programas se repetem. São filmes com muita neve, os mesmos musicais e as infalíveis resenhas jornalísticas.

A televisão no Brasil não dita apenas hábitos, costumes e valores mas também o ritmo de vida da maioria da população. Nos dias úteis com seus horários para “donas de casa”, crianças e adultos e nos fins de semana, com uma programação diferenciada, supostamente mais adaptada ao lazer.

Mas não fica ai. A TV organiza também as comemorações das efemérides ao longo do ano, das quais o ponto alto é o Natal. Com muita antecedência saltam da tela canções da época e muita propaganda, criando clima para o “espírito natalino”.

As crianças são o alvo principal da publicidade. Se já são bombardeadas com apelos de compra o ano todo, no Natal a pressão cresce. 

Apresentadoras joviais e alegres conquistam a confiança dos pequenos telespectadores com seus dotes artísticos para, em seguida, atraí-los para as compras, no mais das vezes, desnecessárias. Da classe média para cima é comum ver crianças com brinquedos pouco ou nada usados, comprados apenas como resposta aos apelos publicitários.

Mas a TV não está só nas casas de quem pode comprar. Hoje ela é um bem universalizado no Brasil, advindo dai a sensação de exclusão sofrida por crianças cujas famílias estão impossibilitadas de satisfazer seus desejos. Esse desconforto resulta da crença de que o consumo é um valor em si, substituto da cidadania. Só é cidadão quem consome. 

“O que singulariza a grande corporação da mídia é que ela realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em democracia, do consumismo em cidadania” diz o professor Octávio Ianni no “Príncipe Eletrônico”, artigo que se tornou referência para a discussão do papel político da comunicação nas sociedade modernas. 

No Natal a metamorfose atinge o auge e segue até a virada do ano. As mercadorias ganham vida na TV e estão à disposição para satisfazer todos os nossos desejos, o mercado oferece democraticamente a todos os mesmos produtos e ao consumi-los exerceríamos nossos direitos de cidadãos. São falácias muito bem embaladas em luz, cores e sons sedutores.

As regras do jogo são essas. Quem mantém as TVs comerciais são os anunciantes. Mas, apesar disso, as emissoras poderiam ter um pouco mais de criatividade. Não há Natal na TV brasileira sem a milésima reprise do filme “Esqueceram de mim”, com neve em quase todas as cenas ou sem o indefectível “especial”, sempre com o mesmo cantor.

Dessa mesmice nem o jornalismo escapa. As chamadas resenhas de final de ano não são mais do que colagens em forma de “clips”, usadas mais para reviver sustos já sofridos pelo telespectador do que para informar. Em determinado ano, que pode ser qualquer um, o apresentador famoso abria a resenha na principal rede de TV exclamando: “um ano de arrepiar em todo o planeta. Incêndios, terremotos, furacões”. E dá-lhe imagens espetaculares que, de notícia, pouco tem.

Podia ser diferente? Claro que sim. Poderíamos ter na TV um Natal mais brasileiro e um final de ano criativo (com a publicidade mais controlada). Realizadores não faltam, o que faltam são oportunidades para mostrarem seus trabalhos. Mais de 200 deles apresentaram pilotos de programas no Festival Internacional de Televisão, realizado em novembro no Rio. Não haveria ai gente capaz de tirar a televisão da rotina desta época?

Criatividade é o que não falta na produção audiovisual brasileira. Precisamos é de ousadia para mostrá-la ao público oferecendo bens culturais capazes de enriquecê-lo espiritualmente. Ou como dizia um diretor da BBC, a melhor TV do mundo: “temos a obrigação de despertar o público para idéias e gostos culturais menos familiares, ampliando mentes e horizontes, e talvez desafiando suposições existentes acerca da vida, da moralidade e da sociedade. A televisão pode, também, elevar a qualidade de vida do telespectador, em vez de meramente puxá-lo para o rotineiro”.

Belo desafio, não? Feliz Natal.


(*) Artigo públicado originalmente na edição de dezembro da Revista do Brasil.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5363

O socialismo venceu!*


Por José Roberto Torero




Segundo a Wikipédia, o socialismo é um sistema em que há um forte planejamento central, o fim da diferenciação de classes e a propriedade coletiva dos meios de produção. Além disso, Marx dizia que, no socialismo, os homens poderiam trabalhar um dia como pescadores, no outro como pintores e depois como cozinheiros. O trabalho não seria apenas o modo de ganhar a vida, mas seria a própria vida. 

O socialismo ficou identificado como uma ideologia que pretendia diminuir o sofrimento de nossa existência, que queria acabar com a pobreza extrema, que achava que os homens deviam ter chances iguais. Essa ideia deu origem a organizações de trabalhadores, partidos políticos e guerras. Dominou boa parte do mundo e depois sumiu de boa parte dele. 

Nunca foi o que se esperava, por conta de seus adversários e de seus próprios homens. Em Cuba precisa de reformas e na China houve tantas reformas que há quem diga se transformou num capitalismo de estado. 

Porém, neste domingo, felizmente e infelizmente, o socialismo venceu. 

Não, não houve uma nova revolução que não saiu nos jornais. Nem um novo PC ganhou alguma eleição. O socialismo de que falo é um socialismo ludopédico, o socialismo do Barcelona. Um socialismo com uma pitada de anarquismo.

E nem me venham dizer que é exagero. Vejam bem, o time tem um planejamento central forte, feito por Pep Guardiola, que conhece bem seus recursos naturais e os utiliza de forma racional para o bem comum. Há também uma certa abolição de classes. Não há mais uma separação nítida entre zagueiros, meio campistas e atacantes. Principalmente entre estes dois últimos. Messi pode ser visto na ponta direita e zanzando como volante, Fábregas é um meio-campista mas aparece para finalizar, Dani Alves é um lateral que mais parece um ponta. Assim sendo, obviamente temos a propriedade coletiva dos meios de produção do gol, pois todos podem, e devem, atacar.

Quanto à pitada de anarquismo, vem da mobilidade decidida pelos próprios jogadores dentro de campo. Não é “cada um faz o que quer”, como se pensa erradamente sobre o anarquismo, mas um conjunto orgânico, que funciona como um ser vivo, com cada indivíduo se comportando como a célula de um grande organismo.

Muitos cronistas esportivos, imitando Francis Fukuyama, diziam que a história do futebol tinha acabado. Que a divisão de classes entre homens de ataque e de defesa era definitiva, com algumas exceções que confirmavam a regra. Mas não. De Barcelona, cidade que esteve ao lado da república na Guerra Civil Espanhola e flertou com o anarquismo, veio uma mudança radical. 

Hoje o Barcelona é o “fantasma que assombra a Europa”, como começa o Manifesto Comunista falando do socialismo. E não assombra só a Europa, mas o mundo inteiro. 

Se eu não fosse santista, teria me sentido um privilegiado por ter visto ao vivo esta vitória do Barcelona. Como sou, para mim foi um espetáculo cruel e sangrento, com o time grená mostrando o cálculo frio de um vilão de história em quadrinhos e um sadismo de nazista de filme americano.

Mas tudo bem. Passada a dor profunda, sei que vou poder assistir a jogos do time catalão com prazer. Certamente nunca verei o replay deste jogo contra o Santos, mas doravante assistirei a todos outros jogos desta utopia que vai mudar o futebol, porque os outros times terão que imitá-lo de alguma forma, do mesmo modo que o socialismo acabou sendo responsável pela socialdemocracia dos países nórdicos. 

Boleiros do mundo, uni-vos. Uni-vos ao belo futebol do Barcelona. Vós não tendes nada a perder, pois o futebol no resto do mundo, inclusive nestas nossas bandas, anda feio e sem arte.



______
*Quero ver agora quem será o próximo imbecil a estufar o peito e dizer que “O Brasil é o país do Futebol”... Piada! Sempre sonhei com o dia em que perderíamos esta infeliz referência. Só falta agora “o carnaval”, e chegaremos lá...

Ps.: Apenas acho que o José Roberto Torero esqueceu de falar dos níquei$ que rolam por trás desse esporte tão lucrativo e pouco afeito a “socialismos”. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A arte de ouvir*



Por Henning Mankell*

Tradução: Paulo Cezar de Mello




Cheguei à África com um objetivo: queria ver o mundo do lado de fora da perspectiva egocentrista européia. Podia ter escolhido a Ásia ou a América do Sul. Acabei na África porque a passagem aérea para lá era mais barata.

Vim e fiquei. Durante quase 25 anos, vivi em Moçambique em períodos alternados. O tempo passou e eu não sou mais jovem. Na realidade, estou chegando à velhice. Mas a minha razão de levar essa existência escarranchada, com um pé na areia africana e outro na neve européia— na melancólica região de Norrland, Suécia, onde cresci —, tem a ver com a vontade de ver com clareza, de compreender.

O modo mais simples de explicar o que aprendi com minha vida na África é recorrer à parábola sobre a razão de os seres humanos possuírem duas orelhas mas só uma língua. Por que isso? Provavelmente porque precisamos ouvir duas vezes mais do que falar.

Na África, ouvir é um princípio orientador. Princípio que tem se perdido na tagarelice ininterrupta do mundo ocidental, onde ninguém parece ter tempo nem mesmo desejo de ouvir quem quer que seja. Pela minha própria experiência, percebi como a necessidade que tenho de responder a uma pergunta durante uma entrevista para a TV ficou mais urgente do que era dez, quem sabe cinco anos atrás. É como se tivéssemos perdido completamente a capacidade de ouvir. Falamos, falamos e acabamos amedrontados pelo silêncio, o refúgio daqueles que ficam sem saber o que responder.

Sou velho o bastante para lembrar a época em que a literatura sul-americana emergiu na consciência popular e mudou para sempre nossa visão da condição humana e do significado de ser humano. Agora, penso que chegou a vez da África.

Por toda parte, gente do continente africano escreve e conta estórias. Com certeza, a literatura africana logo estará pronta a irromper na cena mundial — assim como aconteceu com a literatura sul-americana anos atrás, quando Gabriel García Márquez e outros conduziram uma revolta tumultuosa e altamente emocional contra verdades arraigadas. Brevemente um jorro literário africano oferecerá uma nova perspectiva sobre a condição humana. O escritor moçambicano Mia Couto, por exemplo, criou um realismo mágico africano que mistura linguagem escrita com as grandes tradições orais da África.

Se formos capazes de ouvir, vamos descobrir que muitas narrativas africanas apresentam estruturas completamente diferentes do que estamos acostumados. Eu simplifico demais, claro. No entanto, todo mundo sabe que há verdade no que estou dizendo: a literatura ocidental é normalmente linear; vai do começo ao fim sem grandes digressões no espaço ou no tempo.

Não é o que acontece na África. Aqui, em vez de narrativa linear, existem narrativas desimpedidas e exuberantes que saltam para trás e para frente no tempo e fundem passado e presente. Alguém que morreu há muito tempo pode intervir sem cerimônia numa conversa entre duas pessoas perfeitamente vivas. Isto só para dar um exemplo.

Os nômades que ainda habitam o deserto de Kalahari são conhecidos por contar estórias entre si durante suas caminhadas de um dia inteiro para procurar raízes comestíveis e animais de caça. Com frequência há mais de uma estória se desenrolando ao mesmo tempo. Às vezes, três ou quatro estórias seguem paralelas. Mas, antes de voltar para o local onde passarão a noite, eles procuram entrelaçar as estórias ou separá-las de vez, dando a cada uma sua própria conclusão.

Uns tantos anos atrás, sentei-me em um banco de pedra do lado de fora do Teatro Avenida em Maputo, Moçambique, onde eu trabalho como consultor artístico. Era um dia quente, e estávamos fazendo um intervalo nos ensaios a fim de dar uma escapada lá para fora, esperando que soprasse uma brisa fresca. Fazia tempo que o sistema de ar condicionado do teatro deixara de funcionar. Devia fazer mais de 38 graus lá dentro enquanto trabalhávamos.

Dois velhos africanos estavam sentados no banco, mas havia lugar também para mim. Na África, compartilha-se mais do que apenas água, um hábito fraternal. Mesmo quando se trata de sombra, as pessoas são generosas.

Ouvi os dois falarem de um terceiro homem velho que havia morrido recentemente. Um deles disse: “Eu estava de visita em sua casa. Ele começou a me contar uma estória assombrosa sobre algo que aconteceu quando ele era jovem. Mas a estória era longa. Veio a noite e concordamos que eu devia voltar no dia seguinte para ouvir o resto. Só que, quando eu voltei, ele tinha morrido.”

O homem caiu em silêncio. Resolvi que não deixaria aquele banco enquanto não escutasse a resposta que o outro daria ao que tinha ouvido. Tive um sentimento instintivo de que isso seria importante.
Finalmente, ele também falou:

“Não é um jeito bom de morrer — antes de ter contado o final da sua estória.”

Enquanto eu ouvia aqueles dois velhos, ocorreu-me que um termo para nomear nossa espécie, mais verdadeiro do que Homo sapiens, poderia ser Homo narrans, a pessoa que narra, que conta estórias. O que nos diferencia dos animais é o fato de que podemos escutar os sonhos, medos, alegrias, tristezas, desejos e frustrações das outras pessoas — e elas, por sua vez, podem escutar os nossos.

Muita gente comete o erro de confundir informação com conhecimento. Não se trata da mesma coisa. Conhecimento implica interpretar a informação. Conhecimento implica ouvir.

Então, se eu estou certo em dizer que somos criaturas narradoras, e na medida em que nos permitimos ficar quietos por um momento às vezes, a eterna narrativa irá prosseguir.

Muitas palavras serão escritas no vento e na areia, ou acabarão em algum obscuro jazigo digital. Mas o contador de estórias seguirá em frente até que o último ser humano pare de ouvir. Então, podemos enviar a grande crônica da humanidade para o universo infinito.

Quem sabe? Talvez haja alguém lá fora, desejando ouvir…


(*) Henning Mankell é autor de muitos livros, entre os quais os romances policiais protagonizados pelo personagem Kurt Wallander. O artigo foi publicado em 10 de dezembro de 2011 pelo New York Times




Santa Claus brasileiro*

Por Romeu Prisco



São Paulo (SP) - Jairo Bento Moreira, garoto de 12 anos de idade, escreveu a seguinte carta ao Secretário Especial de Assuntos Natalinos do Governo Federal:


"Querido Secretário,

Ainda bem que, agora, podemos contar com você, no lugar daquele ingrato Papai Noel, criado no exterior, com a participação da Coca-Cola, só para crianças privilegiadas. Meu pai de verdade, minha mãe e eu somos pobres. O trabalho e o salário que eles têm mal dão pra pagar o aluguel da casinha onde vivemos e pra comprar os alimentos básicos.

Por isso, querido Secretário Especial de Assuntos Natalinos, gostaria que, no próximo 25 de dezembro, você lembrasse da gente e nos trouxesse um "presentão". Não se trata de nada caro ou extraordinário. Não é veículo zero pro papai, geladeira inox pra mamãe e celular de última geração pra mim. Quero, apenas, que você nos traga de presente uma bela ceia de Natal.

Pro papai, pode ser uma suculenta feijoada, lotada de pertences variados e muitas bistequinhas de porco. Com caipirinha de aperitivo, laranja, couve e uma cocada de sobremesa.

Pra mamãe, lasanha de presunto, peru recheado e assado no forno, com batatas douradas. Como sobremesa, torta de morango.
Pra mim, sei lá. Poderia ser uma pizza gigante "delivery" à moda da casa, ou um "big Mac" de meio palmo de altura, com enorme quantidade de fritas. Mas, acho que vou mesmo me debruçar na lasanha e no peru da mamãe (traga duas porções) e, de sobremesa, uma cumbuca de salada de frutas com sorvete de chocolate, coberta com creme de chantily.

Caramba ! Mal posso esperar. Ah, ia esquecendo ! Quem sabe dê pra você também trazer umas velas decorativas, pra gente acender e colocar na mesa na hora da ceia. O endereço você deve conhecer, mas, convém lembrar. Por favor, anote:

Jairo Bento Moreira

Viela do Alagadiço, nº. 13

Jardim Felicidade

São Paulo – SP

CEP 12345-678

Viu? É só isso. Feliz Natal pra você e pra todas as crianças do Brasil.

Um beijão do

Jairo.

Na noite de Natal, pouco antes de meia-noite, Jairo recebeu um pacote e uma carta do Secretário Especial de Assuntos Natalinos, assim redigida:

"Querido Jairo,


Você me deixou com água na boca. No curso da árdua tarefa de fiscalizar as entregas dos presentes, pela empresa vencedora da concorrência pública, não resisti e acabei devorando a sua ceia de Natal. Depois de percorrer parte do nosso imenso país, entre as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, fartei-me com a feijoada. Em seguida, no  Sudeste, ao cobrir  uma das colônias italianas, devorei a lasanha e o peru. No Sul, perto de Gramado, lembrei-me do delicioso sabor dos produtos feitos de cacau e lambuzei-me com as sobremesas. Cheguei até a ficar meio enjoado, porém, tomei um sonrisal e melhorei.

Todavia, não pense que esqueci de você e dos seus pais. Abra o pacote. Nele você encontrará três sanduíches de mortadela, que eu trouxera pra enganar o meu estomago. Desculpe pela falta das velas. Com elas dei uma requentada na bóia. Bom apetite! Feliz Natal!

Agora, cumprida a minha espinhosa missão, vou voando pra casa, no aero-trenó a jato cedido por uma caridosa ONG, mantenedora de orfanatos, a fim de retomar o merecido recesso. Preciso tirar uma boa soneca pra completar a digestão!

Hiper beijo do seu

Secretário Especial de Assuntos Natalinos.





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