domingo, 27 de janeiro de 2013

A mamãe desprezada*


Máscara do século XVI, Nigéria, Edo, Corte de Benin. 
Metropolitan Museum of Art.


As obras de arte da África negra, frutos da criação coletiva, obras de ninguém, obras de todos, raramente são exibidas em pé de igualdade com as obras dos artistas que se consideram dignos desse nome. Esses butins do saque colonial podem ser encontrados, por exceção, em alguns museus de arte da Europa e dos Estados Unidos e também em algumas coleções privadas, mas seu espaço “natural” é nos museus de antropologia. Reduzida à categoria de artesanato ou expressão folclórica, a arte africana só consegue ser digna de atenção alinhada entre outros costumes de povos exóticos.

O mundo chamado “ocidental”, acostumado a atuar como credor do resto do mundo, não tem maior interesse em reconhecer suas próprias dividas. No entanto, qualquer um que tenha olhos para olhar e admirar, poderia muito bem perguntar: Que seria da arte do século XX sem a contribuição da arte negra? Sem a mamãe africana, que lhes deu de mamar, teriam existido as pinturas e esculturas mais famosas de nosso tempo?

Numa obra publicada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, Willian Rubin e outros estudiosos fizeram um revelador cotejo das imagens. Página a página, documentaram a dívida da arte que chamamos arte com a arte dos chamados povos “primitivos”, que é fonte de inspiração e plágio.

Os principais protagonistas da pintura e da escultura contemporâneas foram alimentados pela arte africana e alguns a copiaram sem ao menos dizer obrigado. O gênio mais alto da arte do nosso século, Pablo Picasso, sempre trabalhou rodeado de máscaras e tapetes africanos, e essa influência aparece em muitas maravilhas que deixou. A obra que deu origem ao cubismo, “Les demoiselles d´Avinyó” (as senhoritas da rua das putas, em Barcelona), contem um dos numerosos exemplos. O rosto mais célebre do quadro, o que mais agride a simetria tradicional, é a reprodução exata de uma máscara do Congo exposta no Museu Real da África Central, na Bélgica, que representa um rosto deformado pela sífilis.

Algumas cabeças de Amedeo Modigliani são irmãs gêmeas de máscaras do Mali e da Nigéria. As guarnições dos signos dos tapetes tradicionais do Mali serviram de modelo para os grafismos de Paul Klee. Algumas das talhas estilizadas do Congo e do Quênia, feitas muito antes do nascimento de Alberto Giacometti, poderiam passar por obras suas em qualquer museu do mundo e ninguém se daria conta. Poder-se-ia fazer um joguinho de diferenças – e seria muito difícil identificá-las – entre o óleo de Marx Ernest, “Cabeça de Homem”, e a escultura em madeira da Costa do Marfim “Cabeça de um cavaleiro”, que pertence a uma coleção particular de Nova York. A “Luz da lua numa rajada de vento”, de Alexandre Calder, traz um rosto que é “clone” de uma máscara “luba” do Congo, pertencente ao museu de Seattle.

*Eduardo Galeano in. “De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso”. Ed. l&pm, 2011, pp.75-76.


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A vida em vermelho*



Ernesto Guevara de la Serna, “El Che” (1928-1967).


A permanência de Guevara enquanto figura digna de interesse, investigação e leitura não deriva diretamente da geração à qual pertence. Não brota da obra nem sequer do ideário guevarista; vem da identificação quase perfeita de um lapso da história com um indivíduo. Outra vida jamais teria captado o espírito da época; outro momento histórico nunca se reconheceria em uma vida como a dele. [...]. As ideias, a vida, a obra, até o exemplo de Che pertencem a uma etapa da história moderna, motivo por que será difícil recuperarem no futuro sua atualidade. As principais teses teóricas e políticas vinculadas ao Che – a luta armada e o foco guerrilheiro, a criação do homem novo e o primado dos incentivos morais, o internacionalismo combatente e solidário – virtualmente deixaram de existir. A Revolução Cubana – seu maior êxito, seu verdadeiro triunfo – agoniza ou sobrevive graças ao abandono de boa parte da herança ideológica de Guevara. [...]. A importância de Che Guevara para o mundo e para a vida de hoje se verifica por osmose ou por controle remoto. Reside na atualidade dos valores da sua era, jaz na relevância das esperanças e sonhos dos anos 60 para um fim de século órfão de utopias, carente de projeto coletivo e dilacerado pelos ódios e tensões próprias de uma homogeneidade ideológica sem jaça. Seu instante de fama sobrevive ao Che, e ele, por seu turno, confere luz e sentido a esse momento cuja memória empalidece mas ainda perdura. Em sua infância e juventude, em sua maturidade e morte, jazem as chaves para decifrar o encontro do homem com seu mundo. [...].

*Jorge G. Castañeda in. “Che Guevara, a vida em vermelho”. Ed. Companhia das Letras, 2006, pp. 15-17.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Da realidade das coisas*



“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou:  — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei:  — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.” (João Guimarães Rosa. “A terceira margem do rio”. in. Ficção Completa. Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 409.)


Não sei se é instintivo isso – ou se vamos aprendendo por experiência própria – mas chega uma hora que nos damos conta de que “nada é tão asfixiante quanto a realidade”, fato.

Ela é cansativa, absurdamente densa e dolorosa.

Com isso não quero dizer que os loucos e/ou esquizofrênicos (ditos apartados da realidade) sejam mais felizes, nada disso! Mas que quando reclamamos das situações da vida, na certa, deveríamos mesmo era reclamar das “situações da realidade.”

Porque o problema não é a vida em si, mas ter de conviver com algumas coisas da realidade que nem mesmo a paciência/esperança/fé podem dar jeito.

O que dizer, por exemplo, para uma mãe que acabou de perder um filho?

Como revelar para alguém que sua doença é terminal e que só terá mais um ano de vida?

Como olhar no olho de uma criança e explicar que o mundo é assim mesmo, violento, caótico e fadado ao fracasso da espécie?

Chego a pensar que, às vezes, o certo mesmo é construir uma canoa e se largar no meio de um rio desses até tudo se resolver.

Porque no fim, como sempre, Tudo Se Resolve! (mesmo que tragicamente).


*Josenias S. Silva in. Fronteiras Literárias 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Elogio do Cio*



Está decidido:
doravante excluo
da minha poesia
a palavra amor.

amor atrai dor
amor traz dor
amor trai: dor
amor traidor.

(dor)avante troco
a palavra amor
pelo termo cio

que soa a céu
e a sol e a sal
e a rio: não a mar.

*Alcenor Candeira Filho in. “Seleta em verso e prosa”. Ed. Sieart, 2010, p. 173.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Ridendo Castigat Mores*


Thalia, Jean Marc-Nattier (1685-1766).

“Ridendo Castigat Mores”

Voltaire.

_____
trad.: rindo castigam-se os costumes.


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O tempo cura*

Foto: “After Prayer”, Don Hong-Oai (1929-2004).


O tempo cura, também, porque vai deixando o passado cada vez mais "atrás", mais "distante", mais "pesado", e com esse distanciamento diminui a intensidade do pretérito e fica limitada sua parte angulosa e pungente. O tempo cura, definitivamente, porque vai atuando como sepultador e é cúmplice do esquecimento: aplana tudo o que é vivo e agudo, a alegria, a tristeza, a paixão, a dor... Como o tempo, gênio astuto, deve rir dissimuladamente quando ouve as pessoas jurarem amor, amizade ou fidelidade eterna ou "para sempre"!

O tempo cura porque nos endurece: "Essa mineralização ou dissecação da dor é a forma mais natural de consolo". Erosão e desgaste progressivo que fazem com que a dor vá se esfumando. O tempo consola desse modo, adormecendo sem persuadir. Cura sem fazer quase nada, simplesmente deixando-se passar a si mesmo. Não cura com solícitos cuidados, mas sim passiva e impessoalmente. O tempo cura com o tempo, com a senilidade, o envelhecimento, a amnésia, a sedação... E culmina essa cura com a morte. Vence debilitando o adversário (e talvez, no fundo, com o consentimento deste).

Josep M. Esquirol in. "O Respirar dos Dias". Ed. Autêntica, 2010, p. 47.


domingo, 13 de janeiro de 2013

As festas da agonia*


(Photo: Leandro Pena)

Para as Festas da Agonia / Vi-te chegar; como havia / Sonhado que já chegasses: / Vinha teu vulto tão belo / Em teu cavalo amarelo, / Anjo meu, que, se me amasses, / Em teu cavalo eu partiria...” (Mario Faustino in. “O homem e sua hora”. Ed. Companhia das Letras, 2009, p.69.).


Tem momentos em que a ideia de morte me assalta. Não que isso se constitua um problema para mim, como tenho certeza que o é para a maioria das pessoas. Para ser sincero, até gosto de pensar na morte. De imaginá-la chegando, como no poema de Mário Faustino, montada em seu cavalo amarelo. Mas a razão de pensar na morte é justamente porque estamos vivos. E a vida nos assusta a tal ponto que precisamos do seu contrário para minimamente explicá-la. E assim, pensando na morte, vivemos mais um pouco. Quero dizer, ela deixa de ser uma dama misteriosa que nos espreita, que nos rouba o viço da juventude, para tornar-se nossa companheira de cavalgada. Chego à conclusão de que a morte é uma amiga que ceia conosco, que seguramente ri do nosso medo, das nossas fraquezas, mas que, tranqüila e infalível, nos carregará no seu saco para algum lugar distante.

*Josenias S. Silva in. Fronteiras Literárias.

Em companhia de pensadores*


Dizziness, Iman Maleki (1976 - )

No meio do oceano do devir, despertamos numa ilhota não maior que uma barca, nós aventureiros e aves migrantes, e lá olhamos um instante em torno de nós: com tanta pressa e curiosidade quanto possível, pois um vento pode a qualquer momento nos levar ou uma onda nos varrer da ilhota, de tal modo que nada mais restaria de nós! Mas aqui, nesse pequeno espaço, encontramos outras aves migrantes e ouvimos falar de aves mais antigas ainda – e assim temos um minuto delicioso de conhecimento e de descoberta, chilreando juntos e batendo alegremente as asas, enquanto nosso espírito vagueia sobre o oceano, não menos altivo que o próprio oceano!


*Friedrich Nietzsche in. “Aurora”. Ed. Escala, 2007. p.190.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Máscara*



Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de quantos anos...
Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.

Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.

E volto à normalidade como a um términus de linha.

Álvaro de Campos

*Fernando Pessoa in. “Poesia de Álvaro de Campos”. Ed. Martin Claret, 2006, p.445.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Mis Libros*


Jorge Luis Borges (1899-1986)


Mis libros (que no saben que yo existo)
Son tan parte de mí como este rostro
De sienes grises y de grises ojos
Que vanamente busco en los cristales
Y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
Pienso que las palabras esenciales
Que me expresan están en esas hojas
Que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
Me dirán para siempre.

*Jorge Luis Borges in. “Obras Completas” (Tomo II). Ed. Emecé Editores, 1989. p.110.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A Solteirona*


Leve, como após a morte,
as luvas e o lenço toma.
Da cômoda, um cheiro forte
suplanta o dileto aroma

tão próprio de antigamente
já vaidosa não indaga
(a algum remoto parente)
– Que tal? – e em sonhos divaga

na alcova, que assim bonita
conserva e trata e aprimora:
porque certamente a habita
a mesma moça de outrora.

Rainer Maria Rilke in. “Poemas”. Ed. Ediouro, s/d. p.47.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O beijo de Lamourette*

The Death of Marat, Jacques-Louis David (1748-1825)

Todos têm fantasias. As minhas são devaneios históricos, uma maneira de brincar de Rip van Winkle ao contrário. Eu me afundo em minha poltrona, nas mãos um livro pesado que vai ficando cada vez mais pesado, e me entrego a um cochilo. Então acordo em Paris, no auge da Revolução, despertado por um beijo. Às vezes é o beijo da morte, às vezes o beijo do amor, um pequeno amor, amor perdido entre as paixões do passado: le baiser de Lamourette.

O primeiro tipo de beijo sai de um pesadelo. Foullon de Doué, funcionário do Ministério da Guerra, foi capturado pela multidão. A Bastilha acabou de cair, e pelas ruas correm rumores de conspirações para matar o povo comum de fome e sufocar sua insurreição. Diz-se que Foullon está envolvido num dos complôs. Os sublevados o derrubam, arrastam-no até um poste perto do Hôtel de Ville, e enforcam-no no cadafalso improvisado. Ele balança por um momento no ar, até que a corda se rompe. Ele é erguido de novo. De novo ela se rompe. Na terceira tentativa, finalmente, a vida lhe é arrancada. Uma pesada mão agarra o corpo, corta a cabeça, abre os maxilares à força e enche a boca de palha. ―"Que comam feno", teria dito Foullon, ecoando o famoso ―"Comam boloatribuído à rainha. Terá ele realmente dito isso? Não importa. Sua cabeça agora anuncia a mensagem, desfilada pelas ruas na ponta de uma lança.

Logo depois, uma outra multidão, tão enfurecida quanto a primeira, captura o genro de Foullon, Bertier de Sauvigny, o intendente de Paris, enquanto ele percorre os arredores da cidade numa carruagem aberta. Levam-no para a Place de Grève, o grande espaço aberto em frente ao Hôtel de Ville, gravado na imaginação de todos como um local de luta e morte, pois é lá que os trabalhadores se reúnem para ser contratados e fazer greve (―faire la grève), e é lá que Sanson, o carrasco público, admirado e temido como um maitre des hautes oeuvres, exerce sua arte, arrancando os membros das articulações, esmagando ossos, quebrando pescoços no patíbulo oficial do Antigo Regime, um teatro de violência que será abolido quando a Revolução ordenar a morte pela guilhotina. Mas a máquina inventada pelo dr. Guillotin, que agora se senta na Assembléia Nacional avaliando constituições e outros projetos que tais, só começará a funcionar em 21 de agosto de 1792. Em 23 de julho de 1789, a justiça está nas mãos da multidão.

Os amotinados arrastam Bertier em sua carruagem para a execução e o esquartejamento na praça da morte. Ao seguirem gritando pelas ruas, eles encontram o primeiro grupo de sublevados, que desfilam com a cabeça de Foullon. As duas multidões se fundem numa única onda de violência, levando Bertier em sua crista. Ele olha horrorizado através das lanças e vê a cabeça de seu sogro, aproximando-se cada vez mais, até que a empurram para o seu rosto: ―"Beije papai! Beije papai!", canta a multidão.


Robert Darnton in. “O beijo de Lamourette”. Ed. Companhia das Letras, 2010. pp. 9-10.

O natural*

Buquê Matinal, Alfred Guillou (1844-1926)

"... O natural é uma pose difícil de ser mantida"

(Oscar Wilde)

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A escola do mundo ao avesso (1)*


O mundo ao avesso gratifica o avesso: despreza a honestidade, castiga o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Seus mestres caluniam a natureza: a injustiça, dizem, é lei natural. 

[...]

[No mundo ao avesso] A aptidão mais útil para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassino, é uma virtude humana quando serve para que as grandes empresas façam a digestão das pequenas empresas e para que os países fortes devorem os países fracos, mas é prova de bestialidade quando um pobre-diabo sem trabalho sai a buscar comida com uma faca na mão.

[...]

[No mundo ao avesso] Quando um delinquente mata por uma dívida não paga, a execução se chama ajuste de contas; e se chama plano de ajuste a execução de um país endividado, quando a tecnocracia internacional resolve liquidá-lo. A corja financeira sequestra os países e os arrasta se não pagam o resgate. Comparado com ela, qualquer bandidão é mais inofensivo do que Drácula à luz do sol. A economia mundial é a mais eficiente expressão do crime organizado. Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito praticam o terrorismo contra os países pobres e contra os pobres de todos os países, com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham o melhor dos lança-bombas.

[...]

No mundo como ele é, mundo ao avesso, os países responsáveis pela paz universal são os que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos demais países. Os bancos mais conceituados são os que mais narcodólares lavam e mais dinheiro roubado guardam. As indústrias mais exitosas são as que mais envenenam o planeta, e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impunidade e felicitações aqueles que matam mais pessoas em menos tempo, aqueles que ganham mais dinheiro com menos trabalho e aqueles que exterminam mais a natureza com menos custo.

Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas grandes cidades do mundo ao avesso. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem por causa da ânsia de ter o que não têm, outros não dormem por causa do pânico de perder o que têm. O mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, nos reduz à solidão e nos consola com drogas químicas e amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de fome, a morrer de medo ou a morrer de tédio, isso se uma bala perdida não vier abreviar nossa existência.

[...]

O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contraescola.


Eduardo Galeano "Os modelos do êxito" in. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Ed. l&pm, 2011, pp. 5-8.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Ocupar cidades, refazer as arquiteturas*


Estamos construindo cidades gigantescas e inóspitas. Maiores que os labirintos tenebrosos que fantasiamos nos medos e nas frustrações. Desconhecemos suas ruas, ficamos isolados em quarteirões, pedimos comida pelo telefone, mergulhamos em atividades solitárias. As sociabilidades têm gosto de trabalho, competição, consumo. Não cuidamos das perdas, talvez pensando que as tecnologias nos salvarão. Os sustos acontecem no mundo globalizado. Não retratam, apenas, situações de miséria, mas também de carência afetivas radicais. A violência não é fato raro. Seguem-se lamentações, projetos filantrópicos, campanhas nas TVs, para enganar a dor e a decepção. Muita pressa não deixa que se aprofunde a reflexão e ficamos entregues a sentimentos de culpa.

As cidades possuem arquiteturas que dificultam a convivência. Há espaços que parecem celas de prisões, de uma aridez chocante. O negócio é o negócio, como se as pessoas fossem compostas de grana e de ambições, premiadas pela loteria da Caixa Econômica. A velha ordem insiste em comunicar que tempo é dinheiro. Atuamos num imenso território com códigos de créditos espalhados. Decifrá-los é uma urgência. Portanto, o individualismo não objetiva consolidar a autonomia, porém valorizar a esperteza e o olhar desconfiado. A cidade não é moradia de encontros. Os conflitos se ampliam sem soluções.

Não é fácil imaginar uma vida sossegada no complexo jogo de interesses que se internacionaliza com rapidez. Existem sonhos de paraísos, contudo os escorregões nos desviam dos acessos mais tranquilos. Como conciliar tanta diversidade e torná-la lugar da democracia? É uma visão equivocada estimular o homogêneo, fazer da cultura reprodução enfadonha. As cidades não podem ser conjuntos de vilas, com cores amenas e comportamentos ordenados por políticos especiais. As proximidades com o totalitarismo nada servem para desmanchar o caos que se instalou. As experiências históricas ensinam e o passado está cheio de pesadelos.

Passamos parte expressiva da aventura humana como seres nômades. Se aceitarmos que nascemos há 250 mil anos, temos 12 mil anos de sedentarização para 240 mil de nomadismo (Mia Couto). Uma observação simples e sábia que Mia fez num texto sobre costumes africanos. Referia-se ao desejo de caminhar, viajar, estabelecer contactos, afirmar pactos. A objetividade dos planejamentos não leva em conta afetos, nem tampouco se abre para duvidar de seus cálculos. A exatidão não existe, apenas cria expectativas de controles que sufocam e esmagam a riqueza da multiplicidade. O sedentarismo torna-se uma obrigação e as viagens, visitas para comprar objetos e mostrar privilégios.

O certo seria reocupar as cidades, vesti-las de verde, de lugares de convergências, de referências aconchegantes. Lembrar Italo Calvino,  As Cidades Invisíveis, é um dever para quem cuida das aventuras urbanas e consagram arquiteturas de concreto armado. Falta sensibilidade, sobra a geometria do lucro imediato, os compromissos eleitorais dos governantes pragmáticos. A história tem dimensões trágicas, mas não é necessário aguçá-las e sim buscar outras estradas. A capacidade de invenção não morre nas medidas dos mapas de trânsito e no discurso da mobilidade urbana. Contemplar o templo, parar simbolicamente os relógios, estimular troca de palavras, retirar os fones do ouvido e os celulares do altar doméstico não é perda. É risco?

Antonio Paulo Rezende in. Astúcias de Ulisses

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Da Solidão*



“É preciso ter, se possível, mulher, filhos, fortuna e principalmente saúde, mas não se prender a isso a ponto de prejudicar nossa felicidade. É preciso ter como reserva um recanto pessoal, independente, em que sejamos livres em toda a acepção da palavra, que seja nosso principal retiro e onde estejamos absolutamente sozinhos. Aí nos entreteremos de nós com nós mesmos, e a essa conversa, que não versará nenhum outro assunto, ninguém será admitido. Aí nos abandonaremos a nossos pensamentos sérios ou divertidos, como se não tivéssemos mulher nem filhos, nem bens, nem casa, nem criadagem, de maneira que se algum dia eles nos faltarem não nos custe demasiado a carência.

É preciso romper com quaisquer obrigações imperativas. Talvez ainda gostemos disto ou daquilo, mas só a nós mesmos poderemos desposar. Em outras palavras, o que está fora de nós pode não nos ser indiferente, mas não a ponto de se colar a nós de modo que não se arranque sem nos esfolar e sem levar alguma parcela de nós. A coisa mais importante do mundo é saber pertencer-nos.”


Michel de Montaigne in. “Ensaios”. Ed. Abril Cultural, 1980. p.116.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Ariano Suassuna, 84 anos*



“Por enquanto, só existem dois tipos de Governo: o dos opressores do Povo e o dos exploradores do Povo. O primeiro, é o dos Tiranos, o segundo é o dos Comerciantes. No primeiro tipo, o Povo é submetido e esmagado em nome da grandeza; no segundo é explorado em nome da Liberdade” (“A Pedra do Reino”, 1958-70). “A carne implica essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.” (“Auto da Compadecida”, 1956). “É possível? Então não fomos feitos / somente para o amor e seus cuidados?” (“A Zélia”). 

“As regras da Arte são constituídas pelos achados do gênio pessoal dos grandes artistas, achados que, depois de formulados intuitivamente, tornam-se exemplares, isto é, transformam-se em normas.” (“Iniciação à Estética”, 1972). “[Eu escrevia assim] porque aquilo firmava uma tradição e um estilo, valorizava o que já existia na consciência coletiva, aproveitava, com maior solidez, uma arquitetura preexistente e que já recebera, na sanção coletiva, o selo de uma perenidade que só um orgulho muito tolo deixaria de lado em nome da criação exclusivamente individual.” (“O Casamento Suspeitoso”, 1957).

“Os brasileiros de compreensão e caráter menos elevados estão satisfeitos e sem remorsos, absolutamente de acordo com a situação e subornados por seus carros, suas piscinas, seus apartamentos, seus salários, suas rendas, seus empregados ou seus títulos universitários.” (“Aula Magna”, 1992). “Eu tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente e um profeta.” (entrevista, 2000).

“É melhor estudar um só livro, qualquer que seja ele, com raça, alegria e entusiasmo, do que estudar todos os livros do mundo friamente.” (“Iniciação à Estética”, 1972). “Pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser dono da luz.” (“O Santo e a Porca”, 1957). “Eu canto as Formas vivas, trabalhadas / pelo esforço que limpa e que Nos cansa.” (“Concepção, Quadro e Ode”, 1947). “Homem, se é proibido eu não sei. O que eu sei é que você achava que era e depois, de repente, passou a achar que não era.” (“Auto da Compadecida”, 1956). “Nós não precisaremos nunca de inventar uma imagem falsa da Vida para poder amá-la. Porque, na dureza e sob o Sol, nós aprendemos à força a amá-la, com o que ela tem de ardente e glorioso, mas também com o que possui de degradado, sangrento e sujo.” (“A Pedra do Reino”, 1958-70). 

“Somos seres terríveis, majestosos, / mas ainda incompletos, / soltos no seio áspero da terra / em que abrimos primeiro os parcos olhos.” (“A Laurênio”, 1955) “O inquérito continua aberto e em suspenso, de modo que, pelo menos por enquanto, sua Obra ficará assim, em suspenso e aberta, dependendo sempre de novos depoimentos que o senhor nos prestar.” (“A Pedra do Reino”, 1958-70).

*Texto publicado em 16/06/2011

Braulio Tavares in Mundo Fantasmo

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