terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Mal secreto*


Por Waly Salomão




Não choro
meu segredo é que sou rapaz esforçado
fico parado calado quieto
não corro não choro não converso
massacro meu medo
mascaro minha dor
já sei sofrer
não preciso de gente que me oriente

Se você me pergunta
como vai
respondo sempre igual
tudo legal

Mas quando você vai embora
movo meu rosto do espelho
minha alma chora
vejo o Rio de Janeiro
vejo o Rio de Janeiro
comovo, não salvo, não mudo
meu sujo olho vermelho
não fico parado
não fico calado
não fico quieto
corro choro converso
e tudo mais jogo num verso
intitulado MAL SECRETO
e tudo mais jogo num verso
intitulado MAL SECRETO


in: Gigolô de bibelôs. São Paulo: Brasiliense, 1983.


O desafio de ler 11 mil páginas por hora*



Por Carlos Castilho



O conhecimento não está mais no cérebro das pessoas, mas na rede que interliga os individuos pensantes. Está é a polêmica tese defendida pelo norte-americano David Weinberger, da Universidade Harvard, no livro Too Big to Know (Grande Demais para ser Entendido), que acaba de ser lançado no mercado.

Noutras palavras, o que Weinberger sugere é que não é mais possível separar os indivíduos das estruturas de interatividade. A cultura tradicional baseia-se no fato de que o conhecimento, assim como a sabedoria, são atributos exclusivamente humanos, embora se expressem por meio de escritos, imagens ou sons.
Na era digital e da avalancha informativa, o volume de conhecimento ganhou proporções ciclópicas e já não pode mais ser administrado apenas por mentes privilegiadas. O binômio homem/rede seria a alternativa para processar os 1,27 zetabytes de informação que são atualmente publicados na Web a cada 12 meses [dados publicados no documento The Age of Exabytes]. É o equivalente a 600 quatrilhões de páginas datilografadas, ou uma quantidade de documentos 84 milhões de vezes maior do que todo o acervo da Biblioteca do Congresso dos EUA (a maior do mundo).

Cada ser humano teria que ler, por ano, 100 milhões de páginas datilografadas de 30 linhas para dar conta de tudo o que é produzido no planeta em matéria de informação. Uma tarefa impraticável porque significaria ler 11.415 páginas por hora, dia e noite sem parar, ou 190 por minuto.

Esses números indicam que a mente humana já não é mais materialmente capaz de dar conta da absorção de tal quantidade de dados usando apenas os cinco sentidos. Este conhecimento, por motivos óbvios, não está mais apenas no cérebro humano. Ele está também nas redes virtuais que interconectam os cérebros humanos e disponibilizam os dados, informações e conhecimentos procurados.

David Weinberger, um dos pioneiros na exploração das consequências sociais e econômicas da internet [foi co-autor do polêmico ClueTrain Manifest e dos livros Small Pieces Loosely Joined e Everything is Miscellaneous], afirma no seu livro mais recente que “na medida em que o conhecimento passa a se estruturar em redes, a pessoa mais inteligente num recinto não é a que está dando uma palestra ou aula e nem o grupo de ouvintes ou participantes. É a sala onde acontece a palestra ou aula. A pessoa mais inteligente é a sala”.

Weinberger esclarece que a metáfora não se refere a um supercérebro, ou supercomputador, mas sim ao conjunto de links que transformam a mente humana e as redes um sistema inseparável. Um sábio já não chega a esta condição apenas absorvendo informação, mas participando de redes. Sem elas, não passaria de um ser comum.

A tese do pesquisador norte-americano vai um pouco além das teorias sobre inteligência artificial que foram muito badaladas no final dos anos 1990 e início do século 21, mas depois perderam seu atrativo quando as redes começaram a ganhar espaço. E se Weinberger estiver certo, a tecnologia torna-se ainda mais relevante para o conhecimento humano, porque sem ela até as redes acabarão sendo soterradas pela avalancha informativa que não para de crescer [cf. documento Tackling Information Overload, produzido pela Xerox]. Só o material produzido por empresas, governos, escolas e universidades, tanto em papel como em formato digital, cresce ao vertiginoso ritmo de 65% ao ano. Usando o mesmo cálculo feito pelo estudo The Age of Exabytes, em 2013 teríamos que ler quase 19 mil paginas por hora, ou 316 por minuto.

Se formos pensar em termos de notícias, fica claro, sem precisar fazer exercícios matemáticos, que é impossível a um ser humano se dizer bem informado hoje em dia se não estiver conectado a uma ou mais redes. Não dá para ler quatro edições completas de um grande jornal em um minuto. 



segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Silvio Meira no Conexão Roberto D´Avila*



Dica do Blog:







Quem se interessa por TI, planejamento estratégico, educação e outros assuntos relacionados aos impactos das tecnologias de informação na sociedade, não pode deixar de assistir esta grande entrevista com um dos caras que, no Brasil, mais entende sobre o assunto: o nordestino (professor da UFPE),  Silvio Meira.

Show de bola!

Parte 1: Clique aqui


Parte 2: Clique aqui

Sexo sem pelo não é sexo*



Por Xico Sá



O mundo limpinho decreta o fim dos pelos púbicos. Sou da turma do contra. Por uma razão simples: sexo sem pelo não é sexo.

Tudo bem, o estilo consagrado na "Playboy" amazônica da Claudia Ohana pode ter datado, mas a falta total de pelo infantiliza muito o enlace amoroso.

Só há maldade e erotismo nos pelos. A depilação 100% sempre funcionou muito bem como um fetiche provisório, um presentinho ocasional ao amado. Não deve ser permanente.

Onde estão o Greenpeace, o S.O.S. Mata Atlântica e todas as ONGs que não berram contra um crime desses? Humor ecológico à parte, temos que lutar contra o desmatamento radical das mulheres.

Por mais que o pensamento metrossexual avance, não podemos permitir uma mudança tão significativa na paisagem sexual e amorosa. O macho-jurubeba, como este cronista de costumes denomina o homem inimigo do mestrossexualismo, resiste. Mesmo sabendo que será centrifugado pela história.

Lembro do protesto dos leitores da "Playboy" diante das fotos da atriz Vera Fischer, em 2008. E o índice de pelos não chegava a 10% da escala Claudia Ohana. O nojinho dos novos marmanjos foi muito representativo como mudança de hábitos do homem brasileiro.

A adesão masculina à depilação definitiva é mais assombrosa ainda. Uma marcha sem volta. Nesse cenário devastador, só o velho Clint Eastwood, 80, salva. Recentemente o ator e diretor de cinema tomou a decisão histórica de não permitir o uso do photoshop nas suas fotos para a revista "M", do jornal francês "Le Monde".

Foi um duro golpe no metrossexualismo, com direito a tufos de pelos nas orelhas e às mais explícitas rugas, mas em um mundo moralmente raspado e asséptico, a guerra está no final e quase perdida.



*Nota do Blog: Há quem discorde, leia: Depilação íntima total e irrestrita é novo padrão de sensualidade




O machismo da mídia*



Por Fernando Brito



Quando eu era um estagiário da editoria de Esportes de O Globo, no final dos anos 70, contava-se a história de que  ao descer à redação, coisa que não fazia muito, um dos irmãos de Roberto Marinho – se ainda me recordo, Rogério – perguntou a um velho funcionário do jornal, espantado com a quantidade de mulheres na redação:

- Mas elas se comportam direitinho?

Três décadas e meia depois, o comportamento da imprensa em relação às mulheres que chegam aos cargos de poder político parece lembrar este comportamento.
O Estadão, a partir de uma boa reportagem de Sérgio Torres, onde a futura presidente da Petrobras, Maria das Graças da Silva Foster, é apresentada como uma lutadora, boa mãe e amiga, militante política e até capaz de fazer-se pequenas tatuagens, é chamada de “dama de ferro”;. Expressão, aliás, que o repórter jamais utiliza.

Em outra “reportagem” a coisa é com Dilma. É chamada de autoritária e até – novamente a editoria – tem sua antessala definida como “sala de torturas”, porque todos teriam medo do que irá acontecer ao encontrarem a presidenta. O seu defeito? Ela “se irrita com promessas não cumpridas, projetos que não param em pé, pressão de aliados políticos por cargos no governo e “vazamentos” de notícias. Erros de português e números trocados também a tiram do sério”.

Ora, francamente, era para gostar? Cidadãos adultos, Ministros de Estado, dirigentes de empresas públicas, só porque vão tratar com uma chefe mulher devem esperar, ao deixarem de ser consistentes e competentes, a serem tratados na base do “bilú-bilú”? Isso é uma idiotice total e, quem espera algo assim, não deve levar uma, mas duas broncas: além da ineficácia, outra pela visão deformada que têm da condição feminina.
Mas como Dilma e Graça são mulheres, o fato de serem chefes exigentes é – e nem tão veladamente assim – criticado. “Gerentona”, “dama de ferro”, “duríssima”, “exigente” são alguns dos rótulos que lhes pregam.
Ora, as duas têm um trabalho duro, difícil, onde cada erro, além da exposição política, causa prejuízo ao povo brasileiro. Não estão ali por carreira ou brincadeira, nem pelo salário, apenas. Têm uma imensa responsabilidade.
Fossem homens, ninguém iria lhes cobrar gentilezas e rapapés. E é exatamente por esse comportamento machista, que acha que mulheres devem ser “polianas” que, às vezes, até têm de subir uma ou duas oitavas o tom do comando, porque sempre vai haver um bobalhão achando que ordem de mulher não é como ordem de homem e que é possível enrolá-las com “jeitinho”.
Ter chefe exigente e “cobrador” nunca foi problema para ninguém.
Pessoalmente, trabalhei por mais de 20 anos com uma pessoa tida como difícil e autoritária, Leonel Brizola. Nem era, mas também não era “um docinho”, nem deveria ser.  Isso nunca me fez mal algum e muito menos me tornou um cordeirinho amedrontado, por duas razões.
A primeira, retidão e lealdade. A segunda, um própósito em comum, como se deve ter quando se está em um projeto de mudança de um país. Levei algumas broncas e “peitei” algumas coisas e ninguém saiu machucado disso. E ele próprio, o mais velho, tomava a iniciativa de minimizar o estrago: “lenha boa é que sai faísca”, dizem bem os gaúchos.
Será que deve ser diferente só porque é uma mulher?
Mas a imprensa, infelizmente, reproduz essa visão machista que deveria ter ficado no passado de um país onde, felizmente, as mulheres começam – e apenas começam – a ter papéis decisórios secularmente “pertencentes” aos homens.
Nossos meios de comunicação, tão “moderninhos” e “politicamente corretos” deviam ter vergonha de pensarem como há 35 anos pensava o irmão Marinho, parte de um tempo no qual o mais importante que se podia dizer de uma mulher era  ser “senhora do Fulano de Tal”.
Que vergonha!


Fonte: Tijolaço

domingo, 29 de janeiro de 2012

Caipira na Revolução*


(Amácio Mazzaropi)



Na Revolução de 1932, um caipira paulista que morava na divisa com o Paraná viu um bando de soldados chegar. Quando lhe perguntaram se ele era de São Paulo ou do Paraná, ele, imaginando que eram de fora, respondeu:- Sou do Paraná, uai!

- Ah, é do Paraná? Nós somos paulistas. Desce o porrete nele!

Quinze dias depois, outro bando de soldados diferentes chegou e fizeram a mesma pergunta.

- Eu sou de Sum Paulo - responde o caipira. 

- Ah, é paulista! Pois nós somos gaúchos! Desce o porrete nele!

Quinze dias depois, ainda moído de pancadas, o caipira viu chegar outro bando de soldados.

- Ei capiau, você é de São Paulo ou do Rio Grande do Sul?

E o caipira, ressabiado:

- Ah, eu sou de ocêis, uai!...

(Causos Caipira)


Fonte: texto de domínio público


O último poema*



Por Mario Quintana


Enquanto me davam a extrema-unção,
Eu estava distraído...
Ah, essa mania incorrigível de estar sempre pensando noutra coisa!
Aliás, tudo é sempre outra coisa
- segredo da poesia - 
E, enquanto a voz do padre zumbia como um besouro,
Eu pensava era nos meus primeiros sapatos
Que continuavam andando, que continuam andando,
Até hoje
Pelos caminhos deste mundo.


In: Preparativos de viagem, 1987.

A prova do Real*



Por Braulio Tavares

(Bertrand Russell)

Distinguir entre o que é e o que não é real é, para os filósofos, um problema insolúvel e um passatempo inesgotável. É também um dos motivos que levam o cidadão comum, que lê jornal e anda de ônibus, a torcer o nariz para a atividade filosófica, que ele considera uma mistura de enxugar gelo e chover no molhado. O cidadão acha que não há motivo para ficar discutindo se o mundo existe, uma vez que se o mundo não existisse os próprios discutidores do assunto não estariam ali para discuti-lo. No passado, o Bispo Berkeley foi um dos grandes defensores do idealismo, da teoria de que o mundo existe apenas como uma idéia, uma espécie de alucinação consensual, dentro de nossas cabeças. Tudo é ilusão, dizia Berkeley. Seus detratores replicavam: “E no entanto o Bispo tem o saudável costume de entrar em sua residência pela porta, e não através da parede”.

Martin Gardner relata um debate divertido entre os filósofos Bertrand Russell e Rudolf Carnap, na Universidade de Chicago, sobre o “phaneron”, o mundo das percepções e dos fenômenos. O “phaneron” é tudo que vemos, tocamos, e sentimos; um conjunto de percepções. Nunca conseguiremos provar (ou desmentir) de maneira irrefutável se o que julgamos perceber existe de fato. Só sabemos do universo o que nossos sentidos nos revelam, mas eles podem estar enganados. (Só sabemos disso quando somos vítimas de uma alucinação, um delírio, etc.; desse dia em diante aprendemos a desconfiar do que vemos.) 

No meio do debate, Bertrand Russell fez a Carnap a pergunta: “Nossas esposas estão presentes aqui no auditório. Será que elas existem, de fato, ou devem ser consideradas meras ficções lógicas baseadas em regularidades existentes no phaneron de nós dois, seus maridos?” Comentando essa pergunta depois com Gardner, Carnap queixou-se: “Mas não é disso que se trata”. De fato, os filósofos não afirmam que o mundo não existe. Eles acreditam na existência do mundo, de suas esposas (!) e tudo o mais. Eles apenas gostariam de ter uma prova filosófica, ou seja, uma prova argumental, de que isto em que acreditam é uma verdade; e tal prova não existe.

Essa questão, antiga como o mundo, é talvez a questão mais importante do mundo. (Talvez não seja apenas a mais urgente – aí estão as guerras, as desigualdades sociais, etc., com muito mais urgência.) É a mais importante por ser a questão mais total, mais abrangente: ou tudo existe, ou tudo é ilusão. Todos nós já tivemos sonhos intensamente vívidos, que nos deram, enquanto duravam, uma intensa impressão de realidade. Como qualquer um de nós pode ter certeza de que não está sonhando, no momento em que escreve (ou que lê) estas linhas?



sábado, 28 de janeiro de 2012

Lord Jim*



Por Roberto Pompeu de Toledo



Eta mundo cruel. Sucede às vezes que uma decisão tomada em um segundo, não mais que um miserável segundo, ou menos ainda — um átimo de segundo —, determina o rumo de toda uma existência. Foi o que ocorreu com Jim, simplesmente Jim como ele se apresentava, com vergonha de ser reconhecido caso declinasse o nome por inteiro. Jim é o marinheiro protagonista de Lord Jim, famoso romance de Joseph Conrad, publicado pela primeira vez em capítulos entre 1899 e 1900. A história ocorre nos dias de glória do Império Britânico, quando o sol nunca se punha sobre os domínios da rainha Vitória e avançar pelos mares, em busca de aventura, liberdade, prazeres e heroísmo, era o desiderato de muitos jovens. Assim era para Jim. Seduzia-o em especial, entre os citados, o item “heroísmo”.

E lá foi ele, escolhendo como local preferencial de suas errâncias marítimas os confins do Sudeste Asiático. Um dia, emprega-se num dos portos da região como imediato do Patna, vapor já castigado pelo uso, fretado para levar uma turba de muçulmanos ao hajj, a peregrinação anual a Meca. No meio da viagem, o navio começa a fazer água. Oitocentas pessoas amontoam-se a bordo. Só a tripulação se dá conta do que ocorre. O capitão, um holandês, e três outros tripulantes põem-se sorrateiramente à tarefa de soltar os parafusos e as correntes de um dos poucos botes salva-vidas disponíveis. Jim os observa de longe. Já adivinha o que os move e encara-os com escárnio. Está difícil desamarrar o bote, e os colegas pedem sua ajuda. Ele se nega a atendê-los. Enfim o bote se solta e os quatro apressam-se em acomodar-se nele. “Pula, pula”, gritam, lá de baixo. Jim não quer pular. E os outros? E os oitocentos passageiros? A solidariedade, a compaixão, a coragem, o dever e a honra, valores que prezava acima de tudo, impedem-no de fazê-lo. “Pula, pula, que o navio afundará em pouco tempo.” Dá-se então aquele segundo fatídico, ou átimo de segundo, em que é agora ou nunca. Ele pula.

Jim foi condenado por abandono do navio e perde a licença para navegar. Daí em diante viverá de pequenos expedientes nos portos da região. Para acrescentar ao opróbrio o ridículo, fica sabendo que os passageiros do Patna não morreram; um navio francês chegou a tempo de resgatá-los. Ao relatar sua desventura, Jim dirá que logo após o pulo se deu conta da enormidade do que tinha feito. “O navio parecia alto como um muro; pendia sobre o bote como um penhasco. Eu desejava a morte. Impossível voltar para trás. Era como se eu tivesse saltado num poço, num buraco sem fundo.”A imagem era perfeita. Um buraco sem fundo abrira-se em sua existência. Sempre que, num porto, era reconhecido, mudava para outro. Passou o resto da vida a purgar sua vergonha.
A navegação, atividade antiga, presta-se a desencavar palavras antigas, meio em desuso na linguagem corrente de hoje, como vergonha e honra. Joseph Conrad (1857-1924), ele próprio um marinheiro antes de dedicar-se à literatura, tinha-as em alta conta. Em seus livros, o entrecho aventuresco e as paragens exóticas são temperados por imperativos morais que pairam como o fio da espada sobre os personagens. Outro livro em que isso ocorre é Coração das Trevas, que serviu de base para o filme Apocalypse Now. Em Lord Jim a desgraça do personagem decorre do desrespeito à norma de que o capitão (e o que vale para o capitão vale também para o imediato, o segundo na linha de comando) não pode abandonar o navio. A norma resume antiga sabedoria, a de que o exercício da máxima autoridade tem como contrapartida a máxima responsabilidade.
O capitão italiano do Costa Concordia, Francesco Schettino, foi defrontado com seu segundo fatídico — e saltou no bote. Na sua hora da verdade, precipitou-se no mesmo poço de Jim, um buraco sem fim. Em outras atividades, a vergonha de um passo em falso pode ser escondida do mundo exterior e, bem trabalhada, ser esquecida até pelo próprio envergonhado. Na política, com exceção do Japão, onde os envergonhados praticam o haraquiri, a regra é a vergonha substituir-se desde o primeiro momento, e com sucesso, pela esperteza e falácia. Já o ato desonroso do capitão que abandona o navio expõe-se com evidência incontornável. Ao contrário de Jim, não resta a Schettino nem o recurso de refugiar-se no anonimato em portos da Malásia ou da Indonésia, apresentando-se apenas como Francesco. Se não fosse descoberto pela imprensa, não faltariam câmera do celular, Google ou Facebook a rastreá-lo. Seu desafio será viver, simplesmente viver, daqui para a frente. Talvez, nessas circunstâncias, a prisão, coitado, lhe seja um conforto.


Fonte: Revista Veja,  25 de janeiro de 2012, p. 134.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Os livros no espelho*


Por Fernando Paixão


Mais proveitoso que discutir o malfadado anúncio do fim do livro é entender o passado da história editorial brasileira à luz do seu contexto. Felizmente o assunto vem crescendo em interesse. Na última década foram editadas inúmeras obras com enfoque na trajetória de casas publicadoras, perfil de editores e tópicos afins. Bibliografia relevante, num país de curta memória.
No entanto, há de se admitir, parte considerável dos trabalhos costuma ficar circunscrita ao levantamento alcançado, sem se lançar em maiores voos. Enxerga-se o particular, deixando em segundo plano o escopo geral. Na qualidade de produto cultural, porém, o livro faz parte de um mecanismo simbólico amplo e que serve de espelho à sociedade.
Pode-se mesmo afirmar que uma das maneiras de se conhecer uma nação é pela história de suas publicações. Quanto mais atrasado for o grupo social, tanto mais o comércio da edição se desenvolve aos trancos e barrancos.
No caso brasileiro não foi diferente. Afinal, acumulamos um passado de domínio colonial asfixiante e contamos com menos de dois séculos de história para construir uma cultura letrada.
Então, podemos perguntar: de que maneira a cultura do livro participou no processo de formação da identidade nacional? Como se deu o florescimento do nosso mercado editorial? Duas obras lançadas recentemente podem ser lidas de modo complementar e permitem uma breve reflexão sobre o tema. Para tanto, é preciso voltar aos primórdios do século 19, tal como propõe O Império dos Livros [Edusp, 448 págs., R$ 90], de Marisa Midori Deaecto, ganhadora do Prêmio Sérgio Buarque de Holanda (ABL).

A autora parte de extensa pesquisa para fornecer um retrato da presença do livro na cidade de São Paulo, ao longo do período imperial. A novidade de seu estudo está em registrar em minúcias a vida nascente da leitura num burgo distante da capital do Império, mas que servia de posto avançado para os ideais da pós-Independência.
O ponto de partida se dá com a criação da primeira Biblioteca Publica de São Paulo, em 1825. Foi concebida a partir da transformação em bem público dos acervos do Convento de São Francisco e de um bispo diocesano. Mas, logo surgiram denúncias de que vários dos exemplares haviam sido “privatizados” por pessoas influentes, como o capitão-mor da cidade.
Outro fator de estímulo para a circulação livreira se deu com a criação da Academia de Direito, em 1827. O impacto da instituição foi de tal ordem que promoveu uma verdadeira mudança psicossocial na cidade.
A partir daí, as condições objetivas favoreceram o aparecimento das primeiras gráficas e edições locais. Símbolo máximo dessa época foi a Casa Garraux, inaugurada em 1859 e especializada em artigos franceses. Nela, também eram vendidas as publicações da Garnier, principal editora brasileira e que, a partir do Rio de Janeiro, monopolizava o sistema literário.
Radiografia
O estudo de Marisa Midori é farto em informações, deixando transparecer uma radiografia em que a circulação editorial cumpre um papel ideológico específico. A autora não avança nessa tese, mas talvez seja plausível enunciá-la.
A rigor, a cultura livreira cumpre função ambígua durante o século 19 brasileiro. Por um lado, torna-se um dispositivo para difundir informação e entretenimento, contribuindo para a emancipação da camada pensante da sociedade.
De outro lado, como houve pouco interesse das classes dirigentes em promover a educação do “povo”, o livro transformou-se em instrumento de identidade social de uma elite. Mais ainda, conformou-se a esse papel.
Isso não quer dizer que a indústria editorial não apresentasse crescimento e melhoria ao longo das décadas; mas essa dinamização respondeu, em boa parte, às novidades tecnológicas e ao aumento de demanda provocado pelo crescimento demográfico e lenta ampliação de escolaridade. Como resultado, vivia-se no meio paulistano uma sociedade em que “todos os que sabem ler se conhecem”.
Com a passagem para a República, o status quo não se alterou muito em âmbito nacional. Foi preciso passar pouco mais de um século de independência para que a situação tivesse real mudança de rumo, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder.
Novos tempos favoreceram os ventos de uma profunda alteração no mercado editorial, tendo José Olympio como personagem central. Sua atividade é ricamente analisada em Brasilianas [Edusp, 488 págs., R$ 75], de Gustavo Sorá. Lançado em 2010, o livro até agora foi ignorado pela crítica na imprensa.

José Olympio começou a trabalhar aos 15 anos, como empregado guardador de livros na Casa Garraux, em 1918. Treze anos depois se mudou para o Rio de Janeiro, onde abriu sua própria livraria e editora. Teve sucesso imediato e soube equilibrar os títulos de vendas altas com as obras de valor literário. Conseguiu como ninguém cultivar relações com escritores de esquerda e também publicava autores conservadores e oficiais.
Sorá, que é professor universitário argentino, aplica seu olhar de antropólogo sobre a trajetória que se segue aos anos 1930 e delineia, a partir da editora de J. O., um quadro bem interessante sobre os fatores que levaram a uma reconfiguração do setor no Brasil.
A partir do conceito de campo literário, criado por Pierre Bourdieu, o autor procura compreender as circunstâncias que tornaram a cultura escrita daquele momento protagonista de uma emancipação social mais profunda.
Concorrentes
Em resposta à nova ordem, houve a intensificação do consumo de livros, fazendo com que o ofício editorial se tornasse cada vez mais organizado e capaz de cobrir o território nacional. Em paralelo, ocorria uma renovação no plano da criação literária e ensaística, que ganhou alento para refletir sobre as questões nacionais.
Não por acaso, reuniu-se em torno da José Olympio um grupo de intelectuais como Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Gilberto Freyre e dezenas de outros nomes.
Inspirados pelos resultados de J.O., editores concorrentes seguiram-lhe os passos e estabeleceram as bases de uma nova relação entre a esfera editorial e a sociedade, no contexto do pós-guerra.
Casas publicadoras como Globo, Nacional, Martins, Brasiliense e outras deram continuidade a um processo em que a cultura letrada acabou por assumir a vanguarda de certos debates.
Com o advento da ditadura militar, em 1964, continuaram a atuar nessa linha editoras como Civilização Brasileira, Paz e Terra e Zahar, cujos lançamentos promoviam a discussão de ideias e o pensamento crítico.
Após a abertura política, na década de 1980, a indústria editorial alcança a efetiva maturidade. Editoras passam a publicar mais, ampliam os segmentos e entram na era do marketing. Assiste-se a uma visível profissionalização do setor, capitaneada por Companhia das Letras, Grupo Record e editoras escolares, entre outras.
No entanto, trazida a questão geral para os dias de hoje, saltam aos olhos certos sinais de anemia social, de que mundo do livro representa um sintoma. Deparamos com uma realidade no mínimo contraditória. De positivo, temos a abertura de megalivrarias, a farta presença de público nas bienais, o aumento de títulos publicados e a melhoria gráfica.
Ao mesmo tempo, convivemos com índices baixos de leitura, livros de preço médio alto, dependência dos programas de governo, concentração das vendas e consumo restrito a um grupo seleto de pessoas. Para complicar o “game” da nova era, o nosso “mercado” atrai cada vez mais as editoras estrangeiras.
Quanto à cultura escrita dos autores nacionais, perdeu o protagonismo e corre o risco de tornar-se apêndice da sociedade do espetáculo. Então, vale a pena lançar novamente a pergunta: que país aparece refletido no espelho de nossos livros atuais? Boa questão para, quem sabe, estimular um dos autores acima a iniciar outra pesquisa.




História, Mídia e Literatura*


[Divulgação]




Simpósio Temático: História, Mídia e Literatura

Coordenação:
Prof. Dr. Denílson Botelho (UFPI) e Prof.a Dr.a Maria de Fátima Fontes Piazza (UFSC)

RESUMO:

O jornalista polonês Ryszard Kapucinski certa vez afirmou que “estamos vivendo duas histórias distintas: a de verdade e a criada pelos meios de comunicação. O paradoxo, o drama e o perigo estão no fato de que conhecemos cada vez mais a história criada pelos meios de comunicação e não a de verdade”. Este Simpósio Temático tem como objetivo congregar pesquisadores que reflitam e investiguem o papel dos meios de comunicação em nossa sociedade ao longo dos séculos XIX, XX e o recém-iniciado XXI. Pesquisas voltadas para as tensões e conflitos que envolvem a paradoxal produção de uma história urdida a partir dos meios de comunicação encontrarão espaço para serem debatidas e analisadas neste fórum. Cientes de que a verdade é inatingível, os pesquisadores engajados no campo da história cultural têm, cada vez mais, investigado a história inventada e construída através da mídia. Torna-se assim fundamental analisar os embates entre diferentes versões que se constroem sobre o passado e o presente nos meios de comunicação. Neste Simpósio Temático pretende-se ainda destacar o papel desempenhado pela literatura e pelos literatos na imprensa, notadamente nos jornais e revistas publicados pelo país afora. É preciso avaliar a dimensão da contribuição da literatura para a legitimação e difusão da imprensa e vice-versa. Qual tem sido o lugar dos intelectuais nesse cenário? Em que medida usam e são usados pelos meios de comunicação? Que experiências de envolvimento entre imprensa e literatura podem se mostrar reveladoras de um determinado tempo histórico? Sabe-se que a relação entre os literatos e a imprensa atravessou diferentes etapas ao longo da história do Brasil. Na Primeira República, por exemplo, jornais e revistas representavam freqüentemente um espaço de profissionalização do ofício de escritor. Pesquisas que contemplem esse universo de relações encontrarão nesse Simpósio uma acolhida receptiva. Da mesma forma, os estudos que analisam a influência da literatura e dos literatos sobre as mais variadas formas pelas quais os meios de comunicação narram a história também serão objeto de discussão. O jornalismo literário, por exemplo, sintetiza um ramo dessa influência que nos chama a atenção pela sua entusiástica retomada nos últimos tempos. Enfim, pretende-se contemplar também, de modo geral, a trajetória e a obra dos mais variados intelectuais, escritores e jornalistas cujos textos foram difundidos e veiculados originalmente através da imprensa, que pode ser objeto de análise ou fonte para a pesquisa, merecendo em função disso algum tipo de reflexão no campo da História Cultural.


Fonte: Na bruzundanga 


Graciliano com medo*



Por José Castello


Leio, um tanto perplexo, quase tonto, na correspondência de Graciliano Ramos: "Sou, talvez, no mundo o indivíduo que menos confiança tem em si mesmo. Lembras-te da folha seca da canção? 'Vou para onde o vento me leva...' Apenas nunca me julguei folha de rosa, ou de louro. Serei, quando muito, uma desgraçada folha de mandioca, como é razoável". Releio para confirmar o que li. A sinceridade de Graciliano me atordoa, mas me fortalece.

A confissão é feita no ano de 1921, em carta ao amigo Mota Lima Filho. Graciliano está com 29 anos de idade. Já não é uma criança: seis anos depois será eleito prefeito de Palmeira dos Índios, Alagoas. Só 12 anos depois, já quarentão, publicará seu primeiro livro, "Caetés", de 1933. No ano seguinte, publica "São Bernardo" e mais dois anos depois, "Angústia". Sua obra-prima, "Vida secas", de 1938, prova definitiva de sua autoconfiança - o que não exclui o medo, mas o emoldura - , foi publicada aos 46 anos. 

Pois na mesma carta a Mota Lima Filho, escrita aos 29 anos de idade, ainda antes do primeiro livro, Graciliano diz ainda: "Muito me diverti com a extravagante idéia que tiveste de pedir-me alguma coisa para ser publicada aí. Escrever, hoje, com a minha idade? Que pensas de mim?" A certeza com que, antes dos trinta anos, ele afirma sua falta de vocação é um exemplo gritante do descompasso absoluto entre tempo e escrita. E, no entanto, logo depois - desmentindo a si mesmo, traindo a si mesmo - ele começaria a escrever sua grande obra. Tempo retorcido, tempo mais potente.
O sábio Graciliano desprezava não só o cerco do tempo, mas também os espartilhos asfixiantes da gramática. Em carta dos anos 1930 a sua segunda mulher, Heloísa, tenta convencê-la a escrever, ela também, um romance. Aconselha: "Escreva às escondidas, não é preciso ninguém saber que você se dedica a ocupações prejudiciais". E mais à frente: "Faça uma tentativa à noite, quando o pessoal estiver dormindo". Quanto ao suposto despreparo da mulher para a escrita literária, evoca a figura de George Sand, que "começou a escrever sem gramática". Acrescenta: "Nossos escritores atuais, Zé Lins (do Rego) e Jorge (Amado) à frente, ignoram isso completamente". 

Um conselho, entre eles, creio, se destaca. É direto, simples, brutal: "Não imite ninguém, faça coisa sua". Um escritor não deve nada a ninguém; se deve, ou pensa que deve, não escreve. Graciliano sabe que, com suas idéias, causa espanto à mulher, mas acredita sinceramente que a vocação literária vem de regiões distintas do bem escrever, da retórica afiada, do "bom preparo". Vem de zonas escuras e até desprezíveis. Desmentindo o que pensou de si mesmo aos 29 anos, agora inclui a insegurança e o despreparo entre as condições fundamentais da escrita. 

Sabia Graciliano que, sem uma boa dose de dúvída e de insegurança nada se chega a escrever. A segurança é uma trava. A certeza, uma coleira. Sem um desprezo pela "boa escrita" também não se consegue escrever. Fala, todo o tempo, do medo, que entrava não só sua mulher, mas a ele mesmo. Não se trata de "não ter medo", mas de incluir o medo no que se faz. Sem medo, ninguém atravessa uma avenida - pois não olhará para os lados, e correrá o risco de ser atropelado. Sem medo, já me disse uma voz muito sábia, ninguém escreve. O medo não é uma obstáculo à escrita, mas uma de suas mais importantes condições.






quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A arte de rir*



Por Braulio Tavares


Um homem e uma mulher, que não se conhecem, viajam por acaso no mesmo vagão de trem noturno. À noite, cada um se deita no seu beliche e pega sua manta. No meio da noite, a mulher se levanta e vai até o beliche do homem: “Por favor, estou com muito frio... Você podia me emprestar sua manta?”. Ele diz: “Tenho uma idéia melhor. Poderíamos fingir que somos casados, só por esta noite!” Ela dá um sorriso malicioso e diz: “Claro... Por que não?” Ele responde: “Então larga minha manta, vai dormir, e não enche!”. 

Toda piada se baseia na descrição de uma situação, numa inferência errônea que fazemos sem perceber, e na revelação brusca, na derradeira linha, do que estava de fato acontecendo. No presente caso, a inferência errônea é a mesma que a mulher fez, ou seja, de que com esse papo de “fingir que eram casados” o homem estava propondo que fizessem sexo para se aquecer. Com a frase final dele, ficamos sabendo o que de fato ele estava pensando. Achamos graça porque é uma versão plausível dentro da nossa cultura, em que o casamento é muitas vezes abordado como uma fonte permanente de pequenas disputas, discussões, pequenos egoísmos, pequenas indelicadezas. As duas possibilidades são igualmente plausíveis (o homem quer sexo; o homem quer ser deixado em paz), e a habilidade da piada (e de quem vai recontá-la) é dar a entender uma coisa e surpreender com a outra.

Matthew Hurley, co-autor de Inside Jokes: Using Humor to Reverse-Engineer the Mind (MIT Press, 2011) afirma que nossa mente trabalha sem parar, fazendo hipóteses e presumindo coisas a respeito de tudo que nos cerca, tentando não ser apanhada de surpresa. Acontece que um número enorme dessas hipóteses se revelam erradas e são descartadas, mas lidar com elas faz parte de nossa atividade mental. Será que esse motoqueiro vai mesmo cortar na frente do meu carro? Será que o guarda me viu passar o sinal vermelho? Será que aquele é Fulano no carro ao lado? Muitas dessas possibilidades podem gerar situações tensas ou constrangedoras que nunca se verificam, mas nossa memória não as abandona totalmente. O humor serve muitas vezes como uma reconstrução dessas coisas que não aconteceram, muitas delas por serem absurdas ou altamente improváveis; e a descarga nervosa representada pelo riso é nossa reação diante de algo absurdo que ameaça acontecer e não acontece, ou então algo comum que acaba acontecendo de maneira absurda. 

Diz Hurley (
http://b.globe.com/sXfzh7): “O humor é agnóstico com respeito ao conteúdo, porque consiste apenas na descoberta de uma falsa suposição, e este processo não requer nenhum conteúdo em especial. (...) O que é universal no humor é o processo, não o conteúdo”.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Queixas noturnas*

  

Por Augusto dos Anjos


Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

...

[fragmento]


in: Toda a poesia de Augusto dos Anjos, 1976, pp. 132-133.


sábado, 21 de janeiro de 2012

O escritor está nu*



Por Pilar Fazito



Você, leitor, é um imoral. Sei que não deve ser fácil saber disso, ainda mais numa segunda-feira pela manhã, período em que ocorre a maioria dos casos de infarto, mas alguém tinha que alertá-lo. Então, prepare sua sensibilidade porque vou dizer de novo: você, leitor, é um imoral, como todo voyeur. Antes de ser apedrejada, deixe-me dizer que isso não é, propriamente, uma acusação. Afinal, que validade teria uma acusação dessas, vinda de uma desavergonhada?

Numa dessas faxinas radicais operadas, vez por outra, pelo orixá que habita em mim, acabei defenestrando um ótimo texto acadêmico que mudou toda a minha concepção sobre a escrita. Infelizmente, não tive o cuidado de memorizar o título do artigo, o nome dos autores ou qualquer coisa que me fizesse encontrá-lo novamente em meio às tramas da internet. Bem, na falta da referência, recorro à minha memória mambembe, com a esperança de que alguém possa refrescá-la com os dados perdidos.

O artigo, disponibilizado em inglês e em francês, foi escrito por dois psicanalistas que analisavam as implicações da escrita literária. Para eles, escrever é uma atividade que exige um desnudamento de quem a pratica comparável apenas ao dos amantes durante o ato sexual. Resumida desse modo grosseiro, a comparação parece exagerada; mas não é. Segundo os autores, é a falta de pudor na escrita que faz com que um universo de possibilidades ficcionais tome forma e funcione em sua verossimilhança. Se o escritor deixar de escrever o que sente com receio daquilo que os outros pensam dele, a literatura simplesmente não acontece. Do mesmo modo, não pode haver entrega sexual quando ela se preocupa em esconder a celulite e ele, os três fiapos de pêlo que jazem sozinhos na vastidão de um peitoral pouco malhado.

A entrega na escrita literária é evidente quando falamos da forma lírica. Os verdadeiros poetas sabem que a poesia é um reflexo imediato de sua sensibilidade. Foi com a 
Ana Ê que aprendi uma verdade sutil: poesia pode ser retocada, mas jamais reescrita ou reestruturada. Estrofes e versos são tão delicados que não resistem a uma sova narrativa, como é o caso da prosa literária e, sobretudo, a escrita de roteiros ― um caso à parte. Quando entendi isso, passei a respeitar ainda mais os poetas, que se desnudam por inteiro e nem mesmo recorrem a um photoshopzinho básico antes de ir a público.

Um exemplo da proximidade entre sexo e escrita: pergunte a qualquer escritor quais de seus leitores são os mais temidos por ele. Que leitor crítico, que nada! O mais certo é que a resposta seja: a mãe e/ou o pai. Medo de decepcionar o genitor? Não creio. Talvez a razão da resposta tenha mais a ver com aquele sentimento de aversão que todo ser humano tem quando descobre que os pais não são seres assexuados. Imaginar o que os pais fizeram numa determinada primavera de 1975 é tão constrangedor quanto imaginar o que eles imaginam quando você passa a noite fora de casa. Inhãrk!

O fato é que até mesmo a prosa ficcional requer um despojamento das máscaras que usamos no dia-a-dia e que costumam nos caracterizar conforme o grupo que freqüentamos. Se no cotidiano o autor é conhecido como "o palhaço" por tios e primos, "o reprimido" pelo grupo A de amigos, "o desbocado e tresloucado" no grupo B, "o responsa" no C etc., na narrativa de ficção cada uma dessas facetas dará corpo a um personagem. Por isso, em vez de se esconder atrás de suas criações, na verdade, o que o escritor faz é revelar tudo o que ele é de uma única vez. E isso pode assustar muita gente, ainda mais aqueles conhecidos que não imaginam a natureza doentia dos pensamentos que podem estar escondidos atrás dos olhos do autor.

Coragem, loucura ou sem-vergonhice, o verdadeiro escritor não pode ter pudor; ele tem que dar a cara a tapas, críticas e comentários; e, principalmente, sobreviver a eles. Mas não se iluda. Definitivamente, o autor não é um ser desprotegido. Na verdade, ele é um nudista que não se contenta com a própria nudez e faz questão de despir a realidade à sua volta. E é aí que reside sua capacidade de vingança: o escritor pode e usará nos textos que produzir todos os segredos que você lhe confiar, as expressões e gestos que você deixar escapar e todos os seus medos. É claro que ele pode trocar o nome dos santos, misturar situações, combinar defeitos físicos e manias que coleciona ao longo de suas observações mundanas, enfim, dar uma maquiada nas informações a fim de preservar um pouco a imagem dos conhecidos. Ele pode, mas isso não significa que ele  fazer. E mais uma vez voltamos ao sexo: não há nada mais sórdido do que sair por aí divulgando manias, defeitos do ex-amante e segredos que deveriam permanecer entre quatro paredes. Entretanto, a gente sabe que nem todo mundo prima pela discrição.

Sei de um autor potiguar que passou mais de 20 anos sofrendo retaliação de parte da população de sua cidade natal, depois de ter escrito um dos melhores romances contemporâneos do Nordeste. Nesse livro, há tipos tão peculiares, descritos com tanta precisão, que não foram poucas as pessoas que identificaram as fontes de sua criação e reconheceram os próprios defeitos expostos em público.

Sei também de um escritor que guarda histórias para escrever depois que a mãe morrer, só para garantir que não ele será o responsável pela morte dela. Também há o caso da escritora covarde que acabou queimando páginas de um quase-livro porque "depunha muito" contra seu ex-túpido, "por mais que ele merecesse o inferno..."

Como se vê, em meio a esse campo de nudismo literário, não é o autor quem está nas mãos de críticos e leitores, mas a realidade e a sociedade é que estão, literalmente, nas mãos desse sem-vergonha audaz.

Por outro lado, se o escritor é um exibicionista, o leitor é um voyeur. Afinal não é esse o termo que designa aquele que sente prazer em observar a nudez de outrem pela fresta?

Em termos de fetiche literário, graças a Zeus somos todos imorais e ninguém pode falar de ninguém. A entrega não combina com "nove horas"; e tanto na escrita quanto na leitura, mais do que em salas de embarque de aeroportos, vale a máxima da ex-ministra do turismo, Marta Suplicy: "relaxa e goza", cara. 



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