sábado, 23 de fevereiro de 2013

Escrever em cio*


Com efeito, a vida criadora está tão próxima da vida sexual, dos seus sofrimentos e das suas delícias, que é preciso ver nelas duas formas de uma única necessidade, de um único prazer.

*R. M. Rilke in. “Cartas a um jovem poeta”. Ed. Ediouro, s/d, pp. 103-105.

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Rainer Maria Rilke, 1875-1926.
Photo: R.M. Rilke, 1906.


Lido nos muros das cidades*


Gosto tanto da noite que poria um toldo no dia.
Sim, a cigarra não trabalha. Mas a formiga não canta.
Minha avó disse não à droga. E morreu.
A vida é uma doença que se cura sozinha.
Esta fábrica fuma pássaros.
Meu pai mente como um político.
Basta de fatos! Queremos promessas!
A esperança é a última que se perdeu.
Não fomos consultados para vir ao mundo, mas exigimos que nos consultem para viver nele.
Existe um país diferente, em algum lugar.

*Eduardo Galeano in. “De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso”. Ed. l&pm, 2011, p.325.

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France, mai-68.

O Romance*


Todas as metamorfoses do real, todas as formas de conhecimento cabem no perímetro do romance, assim transformado numa espécie de síntese ou de superfície refletora da totalidade do mundo. Dessa conjuntura promana a sua função gnoseológica: mais conhecimento que entretenimento, o romance permite ao escritor construir um projeto ambiciosamente globalizante das multiformes experiências humanas, e ao leitor, desfrutá-lo de modo privilegiado, sem risco para sua própria existência; o prosador conhece o mundo por meio do romance, e dá-o a conhecer ao leitor; não existe, nos quadrantes da criação literária, meio mais completo para se chegar a uma imagem totalizante do Universo.

*Massaud Moisés. in. “Dicionário de Termos Literários”. Ed.Cultrix, 1974, p.452.

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Pierre-Auguste Renoir, 1841-1919.


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Eva*


Eva, c. 1919-20.
Mármore, 82 x 117,5 x 59 cm.
Victor Brecheret, 1894-1955.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Teus cabelos*



Me falta tempo para celebrar teus cabelos.
Um por um devo contá-los e louvá-los:
outros amantes querem viver com certos olhos,
eu só quero ser penteador de teus cabelos.

Na Itália te batizariam de Medusa
pela encrespada e alta luz de tua cabeleira.
Eu te chamo brejeira minha e emaranhada:
meu coração conhece as portas de teu pêlo.

Quando tu te extraviares em teus próprios cabelos,
não me esqueças, lembra-te que te amo,
não me deixes perdido ir sem tua cabeleira

pelo mundo sombrio de todos os caminhos
que só tem sombra, transitórias dores,
até que o sol suba à torre de teu pêlo.


*Pablo Neruda in. “Cem sonetos de amor”. Ed. l&pm, 1979, p.24.

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América*



Tantas cidades no mapa... Nenhuma, porém, tem mil anos.
E as mais novas, que pena: nem sempre são as mais lindas.
Como fazer uma cidade? Com que elementos tecê-la? Quantos fogos terá?
Nunca se sabe, as cidades crescem,
mergulham no campo, tornam a aparecer.
O ouro as forma e dissolve; restam navetas de ouro.
Ver tudo isso do alto: a ponte onde passam soldados
(que vão esmagar a última revolução);
o pouso onde trocar de animal; a cruz marcando o encontro dos valentes
a pequena fábrica de chapéus; a professora que tinha sardas...
Esses pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão.
A criança espantada
não sabe juntá-los.

[Fragmento]

*Carlos Drummond de Andrade in. “Poesia Completa”. Ed. Nova Fronteira, 2007, p.198.

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Detalhe: Ouro Preto, MG.


O mundo*


Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.

O mundo é isso — revelou. — Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.

Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.


*Eduardo Galeano in. “O livro dos abraços”. Ed. l&pm, 2010, p.13.

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Noite Estrelada sobre o Ródano, 1888.
Óleo em tela, 72,5 cm x 92 cm.
Vincent van Gogh, 1853-1890.


sábado, 16 de fevereiro de 2013

XI*


Tenho fome de tua boca, de tua voz, de teu pêlo,
e pelas ruas vou sem nutrir-me, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desequilibra,
busco o som líquido de teus pés no dia.

Estou faminto de teu riso resvalado,
de tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra de tuas unhas,
quero comer tua pele como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado em tua beleza,
o nariz soberano do arrogante rosto,
quero comer a sombra fugaz de tuas pestanas

e faminto venho e vou olfateando o crepúsculo
buscando-te, buscando teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratúe.

Pablo Neruda in. “Cem Sonetos de Amor”. Ed.l&pm, 1979, p. 21.

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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Só a ficção nos salva*


Quando se pergunta o porquê da Literatura, só resta responder: porque somos seres humanos. A Literatura é uma necessidade humana, vem da própria existência. Somos animais que consomem voluntariamente grande quantidade de relatos e poesias. Todas as populações do globo, de todas as épocas, contam suas histórias e cantam seus poemas. Somos obrigados, por exemplo, a nos recontar histórias para saber sempre o que fizemos, por isso constituímos essa quantidade enorme de impressões. Vivemos o dia a dia, escutamos tudo o que nos acontece, observamos tudo o que está a nossa volta, e o que resta disso é sempre uma história. Eu encontrei um amigo, tomamos café, falávamos disso ou daquilo etc. Essa é a função da narrativa, mas ela se encontra condensada, sublimada e magnificada na Literatura. A ficção conta melhor nossas próprias experiências. As palavras me permitem expressar meus sentimentos, mas também enxergam a pluralidade humana. A Literatura é a forma pela qual percebemos que os seres humanos não vivem cada um no seu mundo, mas numa pluralidade infinita.

*Tzvetan Todorov in. “Revista de História da Biblioteca Nacional”. n. 88, jan. 2013, p. 49.

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Tzvetan Todorov, 1939 - 

Heródoto, nascimento do “histor”*


A história, como modo de discurso específico, nasceu de uma lenta emergência e sucessivas rupturas com o gênero literário, em torno da busca da verdade. Aquele que, durante muito tempo, foi apresentado como o verdadeiro mentor, Heródoto, encarna bem essa tensão de uma escritura muito marcada por seu lugar de origem, o da Grécia do século 5º a.C., mas que designa, todavia, um projeto em ruptura: o do nascimento de um gênero novo, a história. Ao reino do aedo, do poeta contador de lendas e dispensador de “kleos” (a glória imortal do herói), Heródoto substitui o trabalho de investigação (historiê) desenvolvido por um personagem até então desconhecido, o “histor”, que tem por tarefa retratar o desaparecimento dos traços da atividade dos homens. Nos dois casos, trata-se de aprisionar a morte, socializando-a (...) Aquele que foi apresentado por Cícero como “o pai da História” é um grego originário de Halicarnasso, na Jônia, que viveu entre dois grandes conflitos: o das Guerras Médicas e o da Guerra do Peloponeso, entre 484 a.C. e 420 a.C. Autor de “Histórias”, divididas em nove livros, dois terços de sua obra são consagradas aos antecedentes das Guerras Médicas. Com Heródoto, nasce o historiador, pelo duplo uso do nome próprio e da terceira pessoa desde o prólogo de sua obra que estabelece uma distância, uma objetividade em relação à matéria narrada. Diferente da epopéia, não são mais os deuses e as musas que se expressam para contar o passado. (...) Heródoto inova efetuando vários deslocamentos decisivos, que permitem a emergência do gênero histórico. Na verdade, celebra-se não mais a lembrança das grandes façanhas, mas procura-se a conservação na memória daquilo que os homens realizaram, glorificando não mais os grandes heróis mas os valores do coletivo dos homens, no quadro das cidades.

*François Dosse in. “A história”. Ed. Edusc, 2003, pp. 13-14.

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Heródoto de Halicarnasso, 484 a.C – 425 a.C.


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Pintor de Mulheres*



Este pintor
sabe o corpo feminino e seus possíveis
de linha e de volumes reinventados.
Sabe a melodia do corpo em variações entrecruzadas.
Lê o código do corpo, de A ao infinito
dos signos e das curvas que dão vontade de morrer
de santo orgasmo e de beleza.

*Carlos Drummond de Andrade in. “Poesia Completa”. Ed. Nova Fronteira, 2007, p. 1235.

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The Lost Pleiad, 1884.
Oil on canvas,  195.5x95 cm.
William A. Bouguereau, 1825-1905.

Realidade*



Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer “realidade”.

*Clarice Lispector in. “A hora da estrela”. Ed. Francisco Alves, 1995, p. 31.

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Clarice Lispector, 1920-1977.


Felicidade*


“Creio que uma forma de felicidade é a leitura.”

*Jorge Luis Borges, 1899-1986.

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Sisters and book, 1997.
Oil on canvas, 80x60 cm.
Iman Maleky, Teerã 1976 -


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O mundo que o Facebook criou?*


O Mundo que os Escravos Criaram e O Mundo que os Senhores de Escravos Criaram foram dois livros seminais na historiografia dos Estados Unidos; neles me inspiro para este título. O Facebook criou um novo mundo? Comecemos por uma das principais discussões dos últimos cem anos: rupturas tecnológicas causam mudanças sociais? Pensemos na invenção da imprensa, da pólvora, na descoberta das vacinas e da penicilina, na invenção da pílula anticoncepcional, da internet e do Facebook. Em todos os casos houve consequências sociais relevantes. Imprensa e internet mudaram o tamanho das relações humanas. A pólvora revolucionou a guerra. A vacina e a penicilina salvaram numerosas vidas. A pílula ajudou a libertação sexual. Mas essas invenções causaram as mudanças, ou “apenas” amplificaram seu impacto? Uma invenção basta para mudar o mundo, ou só emplaca quando a sociedade está pronta? Há exemplos para o sim e para o não.

Não: a pólvora. Os chineses a usaram por milhares de anos, mas em fogos de artifício – para beleza e diversão, não para a morte e a guerra. Somente se torna arma na Europa quase moderna. Sim: vários progressos da medicina, como a penicilina. E uma posição intermediária, sim, mas não sozinha: a saúde pública. A queda fantástica da mortalidade infantil no século 20 e a forte redução na letalidade das doenças devem muito ao saneamento básico, que por sua vez foi mais determinado por movimentos sociais e pela ascensão das classes pobres, do que por invenções de laboratório. Aparentemente, não há uma resposta única para a pergunta. Mas há uma tendência do pensamento conservador a depreciar as causas sociais e a enfatizar as invenções técnicas. Estou convicto de que é preciso analisar caso a caso, o que leva a uma resposta matizada, mas com maior acento nos determinantes sociais. Estes não são “causas”, mas oportunidades e caixas de ressonância.
Invenção técnica ou demanda social?

Como fica o Facebook nesse quadro? O mundo das redes sociais é muito diferente de tudo o que houve antes. Realiza os 15 minutos de fama que Andy Warhol predizia para todos nós. Pessoalmente, desde que eclodiu a internet, sonhei que ela criasse uma nova ágora, a maior da história. A ágora era a praça em que se juntavam os cidadãos, na Atenas antiga, para decidir sobre assuntos públicos. Sir Moses Finley diz que essa assembleia de todos se reunia 40 vezes por ano, o que deve ser um recorde inigualado de interesse popular pelos assuntos políticos. Mas há algo parecido no Facebook? Em dois anos de frequentação constante, só notei a degradação do debate. Li há poucas semanas que o FB teria aperfeiçoado (sic) o algoritmo que escolhe o que você vê no seu “feed de notícias”: a rede destacaria, na sua página, posts de quem tem gostos ou valores parecidos. Deve ser por isso que nunca vejo posts de homófobos ou de fascistas; mas, pela mesma razão, recebo poucos posts de quem discorda de mim na política ou na sociedade. Isso é lamentável: o contato com a diferença se reduz a pouco.

Pode ser então que a tecnologia até refreie o debate. Ela abriu um grande espaço de discussão com o Facebook, mas o fechou ao só juntar os parecidos. Mas isso resulta de uma invenção técnica, ou de uma demanda social? Porque nosso tempo é marcado por um forte narcisismo (“Faces, estou na praia!”), a vontade de encontrar almas gêmeas ou mesmo clones, em suma, a indisposição à diferença, ao diálogo, ao debate. Em particular no Brasil, onde a convicção democrática do respeito a quem pensa diferente de nós quase não existe.
Deficiência democrática

Porque, e este é o segundo ponto, mesmo ali onde a tecnologia não bloqueia o diálogo, este não acontece. Parte significativa dos comentários que leio são redundantes em relação ao que está dito no post. O pensamento complexo encontra tão pouco espaço no FB quanto em qualquer outro lugar – e menos que na imprensa, que no Brasil já não é exemplar pela disposição a mostrar o outro lado, a promover o diálogo. No caso dos jornais, não falo do “outro lado” no sentido banal, como telefonar a alguém para saber sua versão de um fato. Penso, sim, na possibilidade de introduzir, dentro do próprio pensamento, o seu contrário. O que temos no Brasil é, na imprensa, um discurso dominante de oposição ao governo e à esquerda, e nos blogs de esquerda o contrário exato disso. Há um enfrentamento externo de opiniões, mas não a compreensão de que o pensamento deve ser, em seu próprio interior, marcado pela dúvida e o autoquestionamento. Este é um traço da cultura política brasileira, ou da ausência de tal cultura; nosso déficit democrático, para o qual não vejo chance de mudança a curto prazo.
O virtual será então uma lupa sobre o real, uma ampliação do que acontece na realidade, no mundo da presença? Não é só isso; ele retira gente da solidão; para os perseguidos ou os isolados, é um bálsamo, porque multiplica seus amigos e associados. Mas ele evidencia também nossa deficiência democrática, que é difícil de sanar, justamente porque a solução não depende da tecnologia, mas da sociedade.

*Renato Janine Ribeiro (USP), Reproduzido do suplemento “Eu & Fim de Semana” do Valor Econômico, 8/2/2013.

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Facebook
Striking, miraculous social team-up!



Encarnação*



Carnais, sejam carnais tantos desejos, 
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios, 
das harpas da emoção tantos arpejos... 

Sonhos, que vão, por trêmulos adejos, 
à noite, ao luar, intumescer os seios 
láteos, de finos e azulados veios 
de virgindade, de pudor, de pejos... 

Sejam carnais todos os sonhos brumos 
de estranhos, vagos, estrelados rumos 
onde as Visões do amor dormem geladas... 

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias 
formem, com claridades e fragrâncias, 
a encarnação das lívidas Amadas!

*Cruz e Sousa in. “Broqueis”. Ed. l&pm, 2002.

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Baigneuse Assise, 41 x 64 cm.
William A. Bouguereau, 1825-1905.

Adeus, Carnaval*


Já me disfarcei de palhaço, com rodelas carmesim nas bochechas, peruca de ráfia, óculos-nariz-bigode à la Groucho Marx, suspensórios compridos, calça balão. Saí de rua afora, com um tênis direito preto e um sapato esquerdo marrom, rodando reco-reco, virando bunda-canastra na rua coberta de confetes úmidos e serpentinas partidas. Belisquei a poupança das vizinhas, roubei pirulito de menino chato, parei o trânsito, ajudei os moleques a esguichar água nos carros com um cabo de vassoura enfiado num tubo de PVC. Bebi caipirinha até cair nocauteado; ninguém me reconheceu.

Já saí de papangu, juntei-me a uma meia-dúzia e saímos a pé pela cidade afora, emburacando na casa dos conhecidos, imitando a voz de Chacrinha, metendo a mão nos salgadinhos expostos sobre a mesa, localizando o uísque do dono da casa e usufruindo, tirando uma casquinha nos atributos da esposa e das filhas, que erguiam os braços eufóricas, “é Carnaval!”. Ninguém desconfiou.

Já me vesti de odalisca, dois peitos de quenga-de-coco amarrados com elástico, saiote florido pedido emprestado à cozinheira, as pernas brancas e cabeludas com coraçõezinhos pintados de batom. Rebolei pela avenida, seguido por um magote de pirralhos batendo lata, subi em jipe, agarrei os bêbos pedindo “me dê um cheiro, sordado!”, atirei beijinhos para as famílias na janela. Ninguém se preocupou.

Já vesti camisa do Campinense, hábito de franciscano, roupão de seda de madame russa, macacão de aqualouco, travesseiro de nove meses, cartucheiras de cangaço, touca e fraldão de bebezinho, caveira de assombração, macacão de proletário, estopas de alaúça, turbante de beduíno. Já saí de Dorothy; de Espantalho; de Homem de Lata; de Leão Medroso. Já saí de John, de Paul, de George, de Ringo. Já me fantasiei de jovem guarda (franja, anel brucutu, pulseira de correntinha), de materialista dialético (barba, camisa de brim, calça jeans, Georges Politzer sob a axila), de tropicalista (cabelão, camisa tingida com espelhinho costurado no peito, chinelões de pneu), de beatnik (boné, oclinhos sem aro, casaco de veludo), de grunge (calçona frouxa, camisa social por fora da calça, barba ao Deus-dará, brinquinho na orelha). 

Já me fantasiei de defensor dos pobres e de flagelador da burguesia, de Explicador do Inefável e de Dissecador do Falsamente Óbvio, de humanista boa-praça disposto a perdoar as falcatruas alheias, de operário padrão que sua sangue e vomita bile para entregar o troço no prazo e esperar um ano o pagamento, de pai de família exemplar disposto a engolir um sapo por minuto e a ter sempre um hálito primaveril, de mané capaz de cruzar incólume a saraivada de indiretas e subentendidos às minhas custas na mesa de bar, de bom samaritano sempre disposto carregar a cruz alheia enquanto a minha criava raízes sem que eu pudesse rebocá-la para a oficina. Tive o direito de ser tudo que não sou, e só por isso vale a pena esperar mais um ano inteiro. É hoje só, amanhã não tem mais.

*Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

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Pierrô, Arlequim e Colombina, 1922.
Óleo sobre tela, 78 x 65 cm.
Di Cavalcanti, 1897-1976.


segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Mundos do Trabalho*


Em que sentidos e direções desejamos transformar o mundo, ou: nossas pesquisas implicam transformação? Corremos o perigo de esquecer que o sujeito e o objeto de nossas pesquisas são seres humanos? Não deveríamos correr este risco, pois são pessoas – não o “trabalho”, mas homens e mulheres trabalhadores reais (...) – o que nosso estudo focaliza. Para muitos de nós o objeto final de nosso trabalho é criar um mundo no qual os trabalhadores possam fazer sua própria vida e sua própria história, ao invés de recebê-las prontas de terceiros, mesmo dos acadêmicos.

*Eric J. Hobsbawm in. “Mundos do Trabalho”. Ed. Paz & Terra, 2000, p.30.

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 Photo: Sebastião Salgado.


domingo, 10 de fevereiro de 2013

O sono*


O sono que desce sobre mim,                            
 O sono mental que desce fisicamente sobre mim, 
 O sono universal que desce individualmente sobre mim — 
 Esse sono 
 Parecerá aos outros o sono de dormir, 
 O sono da vontade de dormir, 
 O sono de ser sono. 

 Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:  
 E o sono da soma de todas as desilusões,  
 É o sono da síntese de todas as desesperanças,  
 É o sono de haver mundo comigo lá dentro  
 Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso. 

[Fragmento]

*Fernando Pessoa in. “Poesia de Álvaro de Campos”. Ed. Martin Claret, 2006, pp. 474-475.

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[Catrin Welz-Stein]

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A consciência da morte*


Toda vida está posta entre dois parênteses: nascimento e morte. E só o homem tem consciência disso. O nascimento é fato de que não se tem lembrança. Quem se reconhece existindo tem a impressão de que sempre existiu, de que desperta de um sono sem memória. Ouvir falar do próprio nascimento não estimula qualquer recordação. Pessoa alguma guarda experiência do início de seu existir. Estamos todos destinados à morte. Ignorando o momento em que ela virá, procedemos como se nunca devesse chegar. Em verdade, vivendo, não acreditamos realmente na morte, embora ela constitua a maior de todas as certezas. A consciência puramente vital desconhece a morte. É preciso que nos demos conta da morte, para que ela se torne uma realidade para nós. A partir daí, transforma-se a morte em uma situação-limite: aqueles que me são mais caros e eu próprio cessaremos de existir. A resposta a essa situação-limite há de ser encontrada na consciência existencial de mim mesmo.

*Karl Jaspers in. “Introdução ao pensamento filosófico”. Ed. Cultrix, 1993, p. 127.

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“El beso de la muerte”, Artemi Barba.
Cemitério de Poblenou, Barcelona.


sábado, 2 de fevereiro de 2013

Memória da ofensa*


26 de janeiro. Jazíamos num mundo de mortos e de fantasmas. O último vestígio de civilização desaparecera ao redor e dentro de nós. A obra de embrutecimento empreendida pelos alemães triunfantes tinha sido levada ao seu termino pelos alemães derrotados.

É um homem quem mata, é um homem quem comente injustiças; não é um homem que, perdida já toda reserva, compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu vizinho acabasse de morrer para tirar-lhe um pedaço de pão, está mais longe (embora sem culpa) do modelo do homem pensante do que o pigmeu mais primitivo ou o sádico mais atroz.

Uma parte de nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem.

*Primo Levi in. “É isto um Homem?”. Ed. Rocco, 1988, p.173.

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Margaret Bourke-White—Time & Life Pictures/Getty Images

Survivors gaze at photographer Margaret Bourke-White and rescuers from the United States Third Army during the liberation of Buchenwald, April 1945



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Paupéria Revisitada*


Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
— na companhia das traças —
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

*Ricardo Aleixo in. “Máquina Zero”. Scriptum Ed., 2004.

Ricardo Aleixo (Belo Horizonte - 1960).





Os zumbis e os canibais*


Theodore de Bry, “Cannibalism in Brazil in 1557 as described by Hans Staden”, 1562.


Desde o manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, na época da Semana de Arte Moderna de 1922, essa história de antropofagia passou a ser o argumento preferido de quem lida com a invasão da cultura estrangeira no Brasil.  O que dizia Oswald, em síntese? Que a melhor maneira de combater o inimigo não é apenas matando-o, mas matando-o e comendo-o.  Não basta destruir; é preciso assimilar, pois NÃO podemos permitir que o inimigo desapareça sem nos deixar uma herança, um ganho substancial.  Essa metáfora veio recebendo diferentes leituras ao longo do século 20, e duas que me tocaram de perto foram a do Tropicalismo nos anos 1960 e a do Movimento Antropofágico da FC (formulado por Ivan Carlos Regina) nos anos 1980.

O problema é que quando dizemos que é preciso devorar e digerir a invasão estrangeira há quem imagine que a gente deva se transformar em consumidores compulsivos dela, engolindo tudo que o mercado nos oferece nas livrarias, nos cinemas, na TV. Nada disso, amigos! Um canibal (leiam Hans Staden!) é o sujeito mais gastrônomo que existe. É mais exigente do que enólogo principiante, e mais detalhista do que gaúcho servindo churrasco para estrangeiros. Quem devora indiscriminadamente o que lhe chega ao alcance das mãos não é o canibal. É o zumbi.

O canibal escolhe o que vai devorar; não é qualquer prisioneiro que cumpre os requisitos. Os índios não devoravam os covardes, os que fugiam da batalha, os que se acovardavam e perdiam o amor próprio. Faziam prisioneiros e os cultivavam durante semanas ou meses, não apenas para um ritual de engorda, mas também como uma preparação espiritual para o pseudo-combate (pois a execução implicava muitas vezes num desafio verbal entre o carrasco e o condenado). Devorar o inimigo era absorver suas qualidades, sua bravura, seu caráter. Só se comia alguém a quem se admirava. Dizem que uma das coisas que salvaram a vida de Hans Staden foi o fato de que ele de vez em quando chorava e pedia para não ser morto.

O canibal escolhe, vai em busca, captura, guarda, devora ritualmente, faz uma festa. Sabe exatamente quem está devorando, e por quê. Rejeita uma vítima, se ela não lhe for apetecível.  Ou seja: ao “antropofagizarmos” o rock estrangeiro, a ópera, a arte de vanguarda, a ficção científica ou o que quer que seja, temos que ser igualmente exigentes, críticos, “gourmets”, porque o canibal é assim. Já o zumbi é o contrário disso, ele mastiga e engole o que lhe aparecer pela frente. É o fã eufórico e ciumento, consumidor compulsivo, o imitador feliz, o re-comprador eterno, o acumulador de bugigangas, o mastigador de best-sellers. Canibal é outra coisa.

*Braulio Tavares in. “Mundo Fantasmo

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