segunda-feira, 27 de maio de 2013

Igualdade na diversidade*



Menina no interior do Paraná, Brasil, 1996.
Photo: Sebastião Salgado


Tratamento igual não significa tratamento uniformizante, que desrespeita, padroniza e apaga as diferenças. O que se quer é uma igualdade que se constitua em diálogo entre os diferentes, capaz de explorar a riqueza que vem da pluralidade de tradições e de culturas. Enquanto a diversidade cultural for um obstáculo para o êxito escolar, não haverá respeito às diferenças, mas produção e reprodução das desigualdades.

Vera Maria Candau in. Sociedade, Educação e Cultura(s): questões e propostas. Ed. Vozes, 2002, p.71.

domingo, 19 de maio de 2013

A Papisa Joana*


Papesse Jeanne, c. 1695.


(...) uma personagem que nunca existiu, mas mesmo assim deixou traços na história. (...) [Papisa Joana], a mulher que teria ocupado o trono de são Pedro por volta de 855 e cuja existência é aventada por diversas hagiografias. Na realidade, ela só existiu num imaginário que tem inspirado os mais diferentes círculos até a época contemporânea. Sem existência concreta, essa papisa constitui porém um verdadeiro acontecimento, pois suscita uma convicção coletiva, fonte de comportamentos imitados. O relato conta o destino de uma mulher originaria da Inglaterra, mas nascida em Mogúncia, que se teria travestido para seguir o amante no mundo masculino dos estudos superiores. Ela obtém êxito no empreendimento e alcança em Roma um sucesso invejável, que lhe permite entrar para a hierarquia da Cúria e ser eleita papa. Seu suposto pontificado teria durado apenas dois anos, terminando por um escândalo, pois Joana não conseguia renunciar aos prazeres da carne. Para perplexidade de Roma, ei-la grávida. A moral da história triunfa quando Joana morre durante uma procissão, após ter dado à luz publicamente seu filho. Conta-se ainda que, depois desse episódio tenebroso, verifica-se sistematicamente o sexo dos papas a cada eleição. O fato serve, pois, para regulamentar o rito de entronização dos novos pontífices. Situada no século IX, essa história seria tida por verdade incontestável durante muito tempo, a partir do século XIII: “De 1250 a 1450 ou 1550, ao longo de dois ou três séculos, a Igreja crê e obriga a crer na existência de Joana, embora o episódio lhe seja um desdouro”.

(...) A Igreja Apostólica Romana é unânime em apresentar a história como autêntica, ainda que de algum modo ela comprometa a imagem de infalibilidade papal. Por volta de 1260, a narrativa das aventuras de Joana ganha amplitude com o “exemplum” do dominicano Estevão de Bourbon. No século XIII, isso tem muito que ver com a insistência na prédica, que exigia a multiplicação dos exemplos disponíveis. A história não aparece, nesse “exemplum”, como um assunto interno do pontificado, mas como “um delito cujo cacife aumenta-lhe a gravidade e estende-lhe o alcance”. (...) Nesse caso, a famosa ruptura entre verdade factual e lenda não parece tão simples de delimitar, pois a verdade de Joana é ao mesmo tempo aceita, estabelecida e posta fora de qualquer refutação. O paradoxo chega ao extremo quando o relato de Joana contribui para reforçar a noção de infalibilidade do pontífice. Todavia, no século XVI, os protestantes se apossam de Joana para lançar descrédito sobre Roma. Como o papa encarna o Anticristo, Joana se torna a prova viva da inversão satânica que reina na Cidade Eterna. Joana não se recuperará dessa guerra de religiões. Demonizada pelos luteranos, é abandonada pela Igreja oficial, que passa a ver nela pura lucubração. Contudo, se Joana deixa o palco da instituição religiosa, invade maciçamente o campo literário, onde faz uma segunda carreira, tornando-se fonte de inspiração até para os romancistas contemporâneos.

*François Dosse in. “O Desafio Biográfico: escrever uma vida”. Ed. Edusp, 2009, pp.146-147.

sábado, 18 de maio de 2013

Subjetividades*


Forças poderosas e estratégias insuspeitadas redesenham, a cada dia que passa, nosso rosto incerto no espelho do mundo. Face à vertigem das mutações em curso, sobretudo nessa matéria prima tão impalpável quanto incontornável a que chamamos de subjetividade, e a exemplo do que ocorreu desde a queda do muro de Berlim, não paramos de nos perguntar: o que se passou, o que terá acontecido que de repente tudo mudou, que já não nos reconhecemos no que ainda ontem constituía o mais trivial cotidiano? Aumenta nosso estranhamento com as maneiras emergentes de sentir, de pensar, de fantasiar, de amar, de sonhar, e cada vez mais vemo-nos às voltas com imensos aparelhos de codificação e captura, que sugam o estofo do que constituía, até há pouco, nossa mais intima espessura.

*Peter Pál Pelbart in. “A vertigem por um fio: políticas de subjetividade”. Ed. Iluminuras, 2000, p. 11.

__________ 
Le Desespere, c.1844-45.
Gustave Courbet, 1819-1877.
Óleo sobre tela, 45 cm x 55cm.


segunda-feira, 6 de maio de 2013

O cavaleiro invisível*



Dom Quixote e Sancho Pança, por Gustave Doré (1832 - 1883)


Um homem solitário, caseiro, beirando os cinqüentanos, cansado da vida pequena e vazia na qual nada acontece, resolve ir ao mundo em busca de aventura, justiça e amor.

A vida que vive não é a venturosa vida dos livros, é outra, enfadonha e triste. O melancólico senhor, habitante da região de La Mancha, na Espanha, mergulhou nas histórias de cavalaria, a elas dedicou seu tempo e sua alma, de tal modo que esqueceu o mundo real. 

Vendeu até mesmo parte de suas terras, que não eram tantas, para comprar volumes e mais volumes de livros de cavaleiros andantes.

O valoroso fidalgo, de modestas posses, alto e seco de carnes, revolta-se: é preciso espelhar o sonho na realidade, plantar uma flor no solo ressequido da realidade.

Alonso Quijano vai ao mundo à procura daquilo que mudará o imóvel destino, quer reviver em si as lendas da cavalaria, e tecer outras, delas extraindo glória, reconhecimeno e o amor de sua amada, a não menos inventada Dulcineia del Toboso.

O que nos diz o Quixote é que a vida cotidiana é insuficiente. Falta vida à vidinha.

A figura imortal criada por Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1615) é o resumo da alma humana em suas maravilhas, esperanças, desesperos, contradições e tragédias. 

O Cavaleiro da Triste Figura saiu pelas estradas poeirentas e bosques da Espanha para resgatar os oprimidos, dar ânimo aos infelizes, levantar os desvalidos, socorrer os caídos, lutar contra todas as injustiças, e para salvar a si mesmo. 

Montado no magro Rocinante ele vai, armado cavaleiro andante, com escudo, espada e lança, tendo por companheiro Sancho Pança, meio louco e meio sensato como o amo, montado em seu jumento.

A vida tal como é não basta. É necessário inventar outra, erguer a aurora da escuridão. É preciso viver intensamente os dias que passam velozes e irrecuperáveis. 

Viver com a urgência de quem se despede. Viver como quem morre.  

"Eu, Sancho, nasci para viver morrendo."

Ninguém no mundo terá jamais autoridade para censurar Dom Alonso pelo desvario e fracasso da louca odisséia. Só os secos de espírito o fariam.

Não será essa busca o anelo secreto que habita o coração de tantos homens e mulheres na difícil jornada através do mundo hostil e trevoso, sonhando e lutando por uma outra existência, que faça valer a pena ter nascido? 

Há talvez um Dom Quixote adormecido e invisível em cada um de nós, à espreita da hora da rebeldia.

"Cada qual é artífice de sua ventura", ensinou-nos o Quixote.

*Jorge Adelar Finatto in. O Fazedor de Auroras

domingo, 5 de maio de 2013

Giudizio Universale*


"Giudizio Universale", 1541
Michelangelo Buonarroti, 1475-1564.
Detalhe: Cappella Sistina, Vaticano


sábado, 4 de maio de 2013

Antífona*


Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... 

[...]

Cruz e Sousa

*R. Magalhães Júnior in. “Poesia e vida de Cruz e Sousa”. Ed. Civilização Brasileira, 1975, p. 212.

_____
Les Deux Baigneuses, c. 1884.
W. A. Bouguereau, 1825-1905.
Óleo sobre tela, 129 cm x 201 cm.


Contos populares*


_________ os contos populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais. Longe de expressarem as imutáveis operações do ser interno do homem, sugere que as próprias mentalidades mudaram. Podemos avaliar a distância entre nosso universo mental e o dos nossos ancestrais se nos imaginarmos pondo para dormir um filho nosso contando-lhe uma primitiva versão camponesa do “Chapeuzinho Vermelho”. (...) “Chapeuzinho Vermelho” tem uma aterrorizante irracionalidade, que parece deslocada da Idade da Razão. Na verdade, a versão camponesa ultrapassa a dos psicanalistas, em violência e sexo. (Seguindo os Grimm e Perrault, Fromm e Bettelheim não mencionam o ato de canibalismo com a avó e o strip-tease antes da menina ser devorada). Evidentemente, os camponeses não precisavam de um código secreto para falar sobre tabus. (...) E por aí vai, do estupro e da sodomia ao incesto e ao canibalismo. Longe de ocultar sua mensagem com símbolos, os contadores de história do século XVIII, na França, retratavam um mundo de brutalidade nua e crua.

*Robert Darnton in. “O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa”. Ed. Graal, 2011, pp. 26-29.

_______
Chapeuzinho Vermelho e o Lobo, 1862.
Gustave Doré, 1832-1883.



A questão dos livros*



Colportor, s/d.

________ É importante poder sentir um livro – a textura do papel, a qualidade da impressão, a natureza da encadernação. Seus aspectos físicos fornecem pistas a respeito de sua existência como elemento num sistema social e econômico; e, se contiver anotações nas margens das páginas, pode revelar muito sobre seu lugar na vida intelectual dos leitores.

*Robert Darnton in. “A questão dos livros”. Ed. Companhia das Letras, 2010, p. 57.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O trabalho liberta?*


O desemprego multiplica a delinqüência e os salários humilhantes a estimulam. Jamais teve tanta atualidade o velho provérbio que ensina: “O vivo vive do bobo e o bobo de seu trabalho”. De resto, já ninguém diz, porque ninguém acreditaria, “trabalha e prosperarás”.

O direito ao trabalho já se reduz ao direito de trabalhar pelo que querem te pagar e nas condições que querem te impor. O trabalho é o vício mais inútil. Não há no mundo mercadoria mais barata do que a mão de obra. Enquanto caem os salários e aumentam os horários, o mercado de trabalho vomita gente. Pegue-o ou deixe-o, porque a fila é comprida.

*Eduardo Galeano in. “A escola do mundo ao avesso”. Ed. L&pm, 2011, p. 169.

________
Powerhouse Mechanic and Steam Pump, c. 1920.
Lewis Hine, 1874-1940.



A mulher de trinta anos*




O passo mais importante e decisivo na vida das mulheres é precisamente aquele que consideram sempre o mais insignificante. [...] Só aos trinta anos pode uma mulher conhecer os recursos desta situação. Aproveita-a para rir, gracejar e enternecer-se sem se comprometer. Possui então o tato necessário para atacar no homem todas as cordas sensíveis e estudar os sons que daí tira. O seu silêncio é tão perigoso como as suas palavras. Nunca se pode adivinhar, se nessa idade, é franca ou falsa, se zomba ou se é de boa fé nas suas confissões. Depois de ter-nos dado o direito de lutar com ela, de repente, com uma palavra, um olhar, um desses gestos cujo poder lhe é conhecido, termina o combate, nos abandona, e fica senhora do nosso segredo, ou para nos imolar com um gracejo, ou para se ocupar de nós, protegida igualmente pela sua fraqueza e pela nossa força.

*Honoré de Balzac in. “A mulher de trinta anos”. Ed. Nova Cultural, 1995, pp. 86-87.

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