quarta-feira, 24 de abril de 2013

Resolvi gostar*



O bisturi me descascou como uma cebola, desdobrou origamis das minhas vísceras, foi deixando listras de fogo-napalm por onde passava, e enquanto isso as algemas laceravam meus pulsos e eu cravava os dentes no trapo cheirando a querosene que me mandaram morder num acesso de piedade. A dor quando surge colapsa todo o resto do Real. Somente ela existe no Universo, somente os seus dois polos: o corpo que a sente e ela que ferve nesse corpo, como o bilhão de explosões nucleares que o Sol ruge por minuto. Resolvi gostar. Resolvi me entregar por completo àquela dor. Desisti de lutar contra ela, de pedir que parasse, resolvi aceitar que ela fazia parte de mim ou eu que fazia parte dela, e assim deixar que a dor crescesse a ponto de dissolver o conflito.

Fui manipulado como cabra-cega, seduzido por hipóteses e promessas, enleado por sorrisos, tapinhas nas costas e adiantamentos bancários, e todo dia pisava numa armadilha, caía numa arapuca, despencava num alçapão. Assinei folhas em branco confiando na descrição do que em breve seria impresso ali. Aceitei sem checar. Acreditei sem conferir. Fiz de conta que não vi o que se escancarou na minha frente, fiz de conta que não entendi o fato consumado que rolava de boca em boca. Fui bobo da corte, peão no roque alheio, inocente útil... Resolvi gostar. Virou um teste de até-onde-isso-vai. Virou uma experiência de laboratório onde o rato resolveu assumir o controle porque entendeu, enfim, que era uma experiência. Resolvi entender. Me interessei por tudo, como quem pela primeira vez entende um jogo de críquete, e transformei meu opróbrio em espetáculo.

Me depuseram, me manietaram, me sacanearam, me expuseram ao ridículo, me traíram, me bateram a carteira, me rasgaram os documentos, me enxovalharam a reputação em todos os órgãos de imprensa em quarenta idiomas, arrastaram minha estátua puxada por burros e alvejada por ovos podres. Meus partidários, meus cupinchas e meus apaniguados foram os primeiros a esfregar a sola suja do pé na minha cara. As mulheres me enxotaram rua afora com vassouras. As crianças surgiram excitadas à janela e gritaram à minha passagem seu primeiro palavrão. Aguentei as gargalhadas impiedosas dos bem-falantes, a mangação dos mendigos, a maledicência dos despeitados, o chute-no-traseiro com o sapato feroz dos ressentidos. Resolvi gostar. Resolvi permitir que aquele enxovalhamento fosse uma lavagem, uma purgação, um massacre de mim mesmo, uma sessão de bate-tapete que improvavelmente me restituísse a mim mais cru, mais mineral, mais resíduo de essência indestrutível. Àquela altura valia tudo. E eu só gosto quando chega nesse ponto.

*Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

terça-feira, 23 de abril de 2013

Alteridade*



Cada um é indutor da sociabilidade para o outro, e a simbologia corporal é uma memória que deve ser cultivada amiúde e alimentada no espelho do comportamento e das palavras do outro.

*David Le Breton in. “As paixões ordinárias”. Ed. Vozes, 2009, p.35.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Livros Clandestinos*



Meu nome é Sonntag, e sou bombeiro. Meu pai o foi também, e queimou muitos livros. Quando começou a salvá-los às escondidas, foi descoberto e morto pelas forças de segurança. Cresci ouvindo este exemplo ameaçador. Tornei-me bombeiro para conhecer essas obras proibidas, mesmo correndo o risco de ser executado. Enganava-me. Hoje em dia o Sistema balança, racha-se em fendas; a corrupção impera. Encontram-se livros à venda nos mercados negros de armas, de próteses, de venenos. Minhas leituras fervorosas e às escondidas são alimentadas por essa rede escusa de delinquentes, que fervilha nas favelas, nas ruínas ocupadas, nos casebres de beira-rio. Não se consegue saber de onde extraem esses tesouros.

Há boatos sobre bibliotecas soterradas, mas a verdade é que livros já não são impressos há mais de dois séculos. O papel é descartável, perecível. Cada exemplar merece ser preservado, porque tudo que está impresso é precioso. O que foi confiado ao papel constitui o esqueleto, a estrutura da existência humana; os pixels coloridos da TV são mera distração ou adorno. Daí que cada folha impressa valha uma pequena fortuna: trechos de romances dos quais não sabemos título nem autoria, mas que por isso mesmo tornam-se mais cheios de mistério e de valor. Não direi que entendo tudo que leio, mas nesses momentos sinto-me compartilhando de um ritual místico de transcendência, ainda que numa língua que me é desconhecida.

Muito ouvi falar em Shakespeare; para mim, são onze páginas arrancadas não sei de onde e costuradas umas às outras, pelas quais paguei uma pequena fortuna, no meu tempo de estudante. Tornei-me bombeiro e aumentei meu capital. Em menos de dois meses na corporação reuni exemplares completos de obras como “Meu nome é uma bala”, “Férias de amor”, “Apólogos Edificantes”, “As libertinas”, “Anais da Câmara de Vereadores”. Tornei-me capitão, e entrei para um grupo de jovens oficiais progressistas que lutam discretamente pelo fim do banimento.

Visados pelo Governo, temos que dobrar nossas precauções para que não encontrem nossos tesouros. Compro tudo que me aparece pela frente. Somente nesta semana um traficante vendeu-me vinte páginas de um livro do célebre Nabokov, a história marítima da caça a uma baleia; outro, um conto de Baudelaire intitulado “O poço e o pêndulo”; de um terceiro adquiri sonetos de Homero. Nomes que evocam memórias de um tempo mítico em que a cultura era acessível a todos. Tesouros que guardo num cofre por trás de uma parede secreta, feliz em saber que por mais que as ditaduras massacrem a cultura e o saber não há como destruir as grandes obras do pensamento humano.

*Braulio Tavares in. Mundo Fantasmo

terça-feira, 16 de abril de 2013

Filosofia em tempo de terror*



Na era do terror não há equilíbrio possível: desde que forças incalculáveis, mais do que estados soberanos, representam a verdadeira ameaça, o próprio conceito de responsabilidade torna-se potencialmente incalculável. Quem é responsável pelo quê, em que estágio de planejamento, diante de que corpo jurídico?

Como a Guerra Fria, o espectro do terrorismo global persegue o nosso sentido de futuro, porque assassina a promessa da qual depende uma relação positiva com o nosso presente. Em todo o seu horror, 11 de setembro deixou-nos esperando pelo pior. A violência dos ataques as Torres Gêmeas e o Pentágono revelou um abismo de terror que irá perseguir nossa existência e nosso pensamento pelos anos e talvez pelas décadas vindouras.

*Giovanna Borradori in. “Filosofia em Tempo de Terror”. Ed. Jorge Zahar, 2004, p. 32.

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domingo, 14 de abril de 2013

Brevíssima arqueologia do texto e da leitura*


(...) como a maioria das inscrições romanas, o poema não tinha pontuação nem parágrafos ou espaços entre as palavras. As unidades de som e de sentido estavam provavelmente mais próximas dos ritmos da fala que das unidades tipográficas (...) da página impressa. A própria página como unidade do livro data apenas do século III ou IV d.C. Antes disso, para ler um livro, era preciso desenrolá-lo. Depois que as páginas reunidas (o codex) substituíram o rolo (volumem), os leitores podiam ir e voltar com mais facilidade ao longo dos livros, e os textos passaram a ser divididos em segmentos que podiam ser destacados e postos em índices. Mas, mesmo depois de os livros terem adquirido sua forma moderna, por muito tempo a leitura continuou a ser uma experiência oral, desempenhada em público. Em algum momento indeterminado, talvez em alguns mosteiros no século VII e seguramente nas universidades do século XIII, as pessoas começaram a ler sozinhas em silêncio. É possível que a passagem para a leitura silenciosa tenha implicado uma maior adaptação mental do que a passagem para o texto impresso, pois ela fazia da leitura uma experiência individual e interior.

A impressão fez alguma diferença, é claro, mas provavelmente menos revolucionária do que geralmente se imagina. Alguns livros tinham frontispícios, índices de conteúdo, índices remissivos, paginação e editores que faziam muitas cópias nos “scriptoria” para um grande público leitor, antes da invenção do tipo móvel. Nos primeiros cinquenta anos de sua existência, o livro impresso continua a ser uma imitação do livro manuscrito. Não há duvida de que era lido pelo mesmo público e da mesma maneira. Mas, a partir de 1500, o livro, o panfleto, o folheto, o mapa e o cartaz impressos começaram a atingir novos tipos de leitores e a estimular novos tipos de leitura. Com um formato cada vez mais padronizado, um preço cada vez mais barato e uma distribuição mais ampla, o novo livro transformou o mundo. Não se limitava a fornecer mais informações. Proporcionava um tipo de compreensão, uma metáfora fundamental para entender a vida.

Foi assim que, no século XVI, as pessoas tomaram posse do Verbo, no século XVII começaram a decodificar o “livro da natureza”, e no século XVIII aprenderam a ler a si mesmas.

*Robert Darnton in. “O beijo de Lamourette”. Ed. Companhia das Letras, 2010, pp. 199-200.

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La Liseuse, c. 1845-1850 
Huile sur toile, 42,5 x 32,5 cm 
Jean-Baptiste Camille Corot (1796-1875) 
Zurich, Fondation Collection E.G. Bührle 


sábado, 13 de abril de 2013

A dança e a alma*



Portrait of Annette Kellerman by Orval Hixon, , c.1920.

             Naquele instante nada mais lhe importava. E ela dançou como se fosse a última noite do universo.


domingo, 7 de abril de 2013

A hagiografia ou “a vida dos santos”*


A biografia se apresenta, desde a Antiguidade, como um gênero à parte, distinto da história. Dá-se o mesmo com a escrita das vidas de santos, a hagiografia. Esse gênero literário privilegia as encarnações humanas do sagrado e ambiciona torná-las exemplares para o resto da humanidade. Como gênero literário, seu regime de verdade permanece distinto daquilo que se espera do historiador. Distante do pacto de verdade que a escrita histórica pressupõe, a vida de santo ensina ao leitor algo bem diverso do fato atestado. [...] Como bem diz Michel de Certeau, as hagiografias procuram muito mais investigar a concepção de mundo veiculada pelo hagiógrafo do que produzir a vida real do santo biografado. [...] O relato de vida tem valor de testemunha de uma travessia experiencial, a da relação entre Deus e aquele que foi canonizado como santo. A hagiografia reflete uma estrutura particular, na qual “a individualidade conta menos que a personagem”. À diferença da biografia, que acompanha uma evolução no tempo das potencialidades do indivíduo, a hagiografia postula que tudo está na origem. A hagiografia enfatiza as descrições espaciais de lugares sagrados para enraizar a figura santa que é seu espírito protetor. Só como meio utiliza a narração. Já a biografia ressalta a narração, o percurso da existência no tempo, e atribui a descrição de estados de alma, retratos e balanços das ações ou obras um papel secundário, para animar a lógica narrativa temporal. O desdobramento da história, para o hagiógrafo, não passa de uma epifania progressiva do estado inicial de vocação ou eleição do santo, segundo uma concepção intrinsecamente teleológica. A vida do santo situa-se numa temporalidade fixa, a da constância do próprio ser, de tal modo que “o fim repete o começo. Do santo adulto, remonta-se à infância na qual já se reconhece a efígie póstuma. O santo nada perde daquilo que recebeu”. É, pois, diferente do herói, esse palco de conflito trágico que o domina até abalá-lo e por vezes induzi-lo a transgredir as leis divinas e humanas. O santo é inteiriço, imutável, pronto a enfrentar todas as provas sem nenhuma alteração.

*François Dosse in. “O Desafio Biográfico”. Ed.Edusp, 2009, pp. 137-138.

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Saint George and the Dragon, c 1889-1890.
Óleo sobre tela, 141 x 96.5 cm
Gustav Moreau, 1826-1898.


sábado, 6 de abril de 2013

O desafio biográfico*


O trabalho do biógrafo é muitas vezes identificado ao labor do beneditino, a tal ponto o biógrafo precisa consagrar sua própria existência a esclarecer a vida de um estranho, ao preço de sacrifícios pessoais que transformam sua escolha em sacerdócio. O biógrafo sabe que jamais concluirá sua obra, não importa o número de fontes que consiga exumar. Diante dele abrem-se pistas novas, onde corre o risco de se enredar a cada passo. Temos por hábito distinguir as biografias ao estilo anglo-saxônico (que corresponde melhor ao afã quase obsessivo de acompanhar o sujeito biografado em seus mínimos atos) das biografias à maneira francesa, menos ambiciosas em termos de informações, porém mais próximas da ficção por seu tratamento literário; mais arrebatadas, elas tomam partido, elas têm uma visão parcial e tendenciosa da figura biografada. Todavia, nos dois casos, podemos falar como Roger Dadoun numa autêntica “possessão” do biógrafo: “Mas, como tudo que vai e volta, a possessão se exerce igualmente em sentido contrário, numa relação de reciprocidade. O biógrafo acaba possuído pelo biografado.” Essa apropriação mergulha o biógrafo num universo de exterioridade. Em conseqüência da projeção necessária e exigida pela empatia com o tema, o biógrafo acaba modificado, transformado pela figura cuja biografia escreve, como passa a viver, durante o período de pesquisas e redação, no mesmo universo, a ponto de não poder conseguir distinguir o exterior do interior.

*François Dosse in. “O Desafio Biográfico”. Ed. Edusp, 2009, pp. 13-14.

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Antoine Josse [french surrealist sculptor and painter]



Os inumanos*


Em outros tempos, eu achava que ser humano era o objetivo mais alto que um homem podia ter, mas vejo agora que isso se destinava a destruir-me. Hoje, orgulho-me em dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que não tenho nada a ver com crenças e princípios. Nada tenho a ver com a maquinária rangente da humanidade, eu pertenço à Terra! Digo isso deitado em meu travesseiro e sinto os chifres nascendo na minha testa. [...] Um homem que pertence a essa raça [os inumanos] precisa ficar em pé no lugar alto, com palavras desconexas na boca, e arrancar as próprias entranhas. [...] Quero rios que criem oceanos [...], rios que não sequem no vazio do passado. Oceanos, sim! Tenhamos mais oceanos, novos oceanos que apaguem o passado, oceanos que criem novas formações geológicas, novas vistas topográficas e continentes estranhos e assustadores, oceanos que destruam e preservem ao mesmo tempo, oceanos nos quais possamos navegar, partir para novas descobertas, novos horizontes. [...] precisamos procurar fragmentos, lascas, unhas dos dedos dos pés, qualquer coisa que contenha mistério, que seja capaz de ressuscitar corpo e alma. [...] Fora biografias, histórias, bibliotecas e museus! Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós, os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança!

*Henry Miller in. “Tropico de Câncer”. Ed. José Olympio, 2006, pp. 324-327.

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Henry Miller, 1891-1980.


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