“O perfil do bom historiador não
pode se parecer nem com o carvalho nem com o cedro, por mais majestosos que
sejam, e sim com um pássaro migratório, igualmente à vontade no ártico e no
trópico – e que sobrevoa ao menos a metade do mundo.” Ao escrever isso em 2002,
Eric J. Hobsbawm talvez estivesse descrevendo a própria trajetória, que se
encerrou na manhã de ontem, em Londres, onde o historiador morreu aos 95 anos,
vítima de uma pneumonia.
Nascido em Alexandria em 1917, de
família judaica – pai do East End londrino e mãe da Áustria dos Habsburgos –,
passou a infância em Viena, ficou órfão aos 14 anos e foi morar em Berlim com
uma tia, entrando para o Partido Comunista alemão (KPD) ainda no fim do curso
ginasial. Após a ascensão de Hitler, foi para Londres onde concluiu os estudos
secundários. Em 1936, na febre da Front Populaire em Paris, perambulou na
carroceria de um caminhão do cinejornal do Partido Socialista; depois cruzou a
fronteira para a Catalunha, logo no início da Guerra Civil espanhola.
Nos anos da Segunda Guerra Mundial
integrou a divisão do Exército britânico que cavava trincheiras, atuando ainda
como tradutor no setor de inteligência militar. Quando concluiu seus estudos,
pagou o aluguel escrevendo uma coluna semanal sobre jazz no New Statesman – com
o pseudônimo de Francis Newton (textos depois reunidos no livro História Social
do Jazz). Em 1962, em sua segunda visita a Cuba, serviu até de tradutor para
Che Guevara.
“Não se podia ensinar nada a ele,
seria impossível. Eric já sabia de tudo.” Assim resumiu Christopher Morris,
orientador de estudos em Cambridge, quando indagado a respeito do jovem
Hobsbawm: daí começou a carreira ininterrupta de um historiador instintivamente
poliglota e cosmopolita em todas as suas referências e um dos raros
representantes de uma geração que teve o privilégio de ser, ao mesmo tempo,
testemunha e intérprete dos últimos 90 anos da história mundial.
Nas décadas de 1930/40, quando se
formou, a Inglaterra era o único país onde surgiu uma escola de historiadores
marxistas. Talvez porque no rol curricular das universidades inglesas a
literatura havia tomado o espaço deixado pela filosofia. É que a geração de
Hobsbawm – representada por nomes como Christopher Hill, Edward Thompson e Raymond
Williams – adentrou a oficina da história através da paixão pela literatura. O
extremo rigor da pesquisa também marcou a obra historiográfica desta geração
new left, que se formou no auge do clima ideológico de suspeita da Guerra Fria.
Certamente, veio da paixão pela literatura o domínio que estes historiadores
tinham da escrita e o motivo pelo qual Hobsbawm tenha se tornado um mestre da
prosa inglesa: sem teorizações intrincadas e nenhum traço de narcisismo
autocomplacente, ele é dono de um estilo claro, conciso, equilibrando – em
doses exatas – distanciamento e engajamento crítico.
“Fui um antiespecialista em um
mundo de especialistas, um intelectual cujas convicções políticas e obra
acadêmica foram dedicadas aos não intelectuais”, escreveu em Tempos Interessantes
– livro que virou um paradigma de como deveriam ser escritas todas as
autobiografias. Apesar do seu precoce – e nunca explicitamente abandonado –
engajamento comunista, sempre assumiu um olhar historiográfico desenraizado e
pouco afetivo. Definia-se como “um historiador pertencente a minorias atípicas,
imigrante na Grã-Bretanha, inglês entre centro-europeus e judeu em toda parte –
sentindo-se anômalo até entre os comunistas”, reconhecendo-se apenas na frase
definidora que E. M. Forster utilizava para definir um poeta: “Ele ficava num
ângulo ligeiramente oblíquo em relação ao universo”.
O que também o tornou um
pesquisador suscetível a uma versatilidade incomum. Das rebeldias primitivas ao
banditismo social, das rebeliões de trabalhadores pobres ao significado do
feriado do 1.º de maio, da máfia aos luddistas e às tradições inventadas –,
Hobsbawm escreveu sobre os mais diversos temas, revelando domínio dos fatos e
surpreendentes interpretações. Sua panorâmica história do “triunfo e
transformação do capitalismo”, que começa com a dupla revolução – a Primeira
Revolução Industrial inglesa e a Revolução Francesa – e termina com a queda dos
regimes comunistas na década de 1990 –, tornou-o mundialmente famoso. Traduzido
em centenas de países, estes quatro livros – abrangendo da era das revoluções
até o breve século 20 – se tornaram parte da bagagem obrigatória não apenas dos
estudantes de humanidades, mas de um público bem mais amplo.
Hobsbawm sempre tinha algo
importante a dizer e seus posicionamentos foram sempre críticos. Quando caiu o
Muro de Berlim, muitos apressadinhos anunciaram e apegaram-se à desacreditada
ideia do “fim da história”. Francis Fukuyama retocou a maquiagem de um antigo
livro de Alexandre Kojève sobre Hegel e colocou em circulação esse diagnóstico
vistoso, mas pouquíssimo convincente – que foi solenemente abandonado depois
dos eventos tristemente célebres de setembro de 2001. Hobsbawm chegou a dizer
que até acreditava no “fim da história” – mas, num sentido bem diferente: é o
fim da história tal como a conhecemos nos últimos 10 mil anos. Isto porque, nos
primeiros anos do terceiro milênio, as mudanças estão se acelerando num ritmo
estonteante, quase impossível de se acompanhar com os olhos, os conceitos – e
até com as próprias palavras – que dispúnhamos para compreender o século 20.
Era sempre difícil para um
historiador de formação marxista reconhecer, mas o autor de A Era dos Extremos
não acreditava em saltos ou mudanças radicais no capitalismo. Nem por isto
deixava de assumir uma posição impiedosamente crítica em relação à história
mundial. A globalização trouxe consigo uma dramática acentuação das
desigualdades econômicas e sociais, tanto no interior das nações quanto entre
elas próprias. Embora a escala real da globalização permaneça modesta, seu
impacto político e cultural é desproporcionalmente grande e muito mais sensível
para os que menos se beneficiam dela. Por outro lado, nos seus últimos escritos
e entrevistas, Hobsbawm deixava bastante claro como estávamos enfrentando os
problemas do século 21 com um pífio conjunto de mecanismos políticos,
flagrantemente inadequados para resolvê-los. Sua defesa dos valores iluministas
era intransigente: acreditava que eles constituíam os únicos alicerces que
temos para construir sociedades justas, seja qual for o lugar da Terra e para
todos os seres humanos. “Quando as pessoas não têm mais eixos de futuros
sociais acabam fazendo coisas indescritíveis”, escreveu no ensaio Barbárie:
Manual do Usuário.
Ele próprio, apesar de “pássaro
migratório”, como historiador nunca perdeu seu eixo, que sempre foi o marxismo.
Suas convicções políticas incluíam a hostilidade a toda forma de imperialismo,
tanto das grandes potências que afirmam “estar fazendo um favor às suas vítimas
ao conquistá-las, quanto a do homem branco que pressupõe uma superioridade
automática sobre as pessoas cuja pele tem outra cor”. Mas seu tom só se elevava
quando confrontado com as lúgubres perversidades da era stalinista. O episódio
da violenta intervenção soviética na Revolução Húngara em 1956 é um exemplo
marcante. Certa vez, quando Arthur Koestler – irritado e em alto estado etílico
numa tarde emotiva num bar austríaco – lhe cobrou a ausência de posicionamento,
Hobsbawm mostrou-lhe uma carta coletiva na qual havia denunciado as atrocidades.
Mais recentemente, o historiador
Tony Judt disse que Hobsbawm era admirável em sua fidelidade ao comunismo, mas
alfinetou: “Para fazer algum bem no novo século, devemos começar dizendo a
verdade sobre o antigo e um historiador do seu quilate não poderia mais se
recusar a encarar o demônio e chamá-lo pelo nome: o stalinismo e todos os seus
crimes hediondos”. Hobsbawm respondeu que as críticas de Judt eram
improcedentes, pois em A Era dos Extremos encarava o problema, criticando-o.
Retrucou ainda que condenava “aqueles intelectuais anticomunistas que hoje têm
apenas uma bandeira única, a de serem exclusivamente anticomunistas,
esquecendo-se completamente das ideias pelas quais lutavam”. “Judt deseja
apenas que eu diga que estava errado – e não vou satisfazê-lo”, finalizou
Hobsbawm. A polêmica não rendeu, parando nestas tantas cutiladas curtas, até
porque logo depois Judt cairia doente e morreria. É pena. Pois o debate poderia
se alongar, ao refletir sobre o imenso abismo ético que se abriu entre os intelectuais
europeus do “leste” e os “ocidentais” em função da própria história e da
experiência de cada um com o comunismo. Abismo que se mantém até hoje.
Perscrutador incansável do seu
século, Hobsbawm deixou uma obra que é aula magistral de história contemporânea.
Ele sabia ainda, quando necessário, provocar o leitor com tiradas irônicas. Seu
relato dos estertores da democracia alemã, no fim da República de Weimar, é
resumido numa única frase: “Estávamos no Titanic, e todos sabiam que ele estava
batendo no iceberg”. Ao discorrer sobre os movimentos estudantis dos anos 1960,
ele chegava a argumentar que “a marca distintiva realmente importante na
história da segunda metade do século 20 não é a ideologia nem as ocupações
estudantis, e sim o avanço do jeans”. E, finalmente, ao refletir sobre o poder
em geral, sintetiza-o simplesmente pela megalomania, que ele define como “a
doença ocupacional dos países e dos governantes que creem que seu poder e seu
êxito não têm limites”.
Um humorista inglês brincou, certa
vez, definindo a escola de historiadores marxistas de Hobsbawm como os
“cavaleiros da távola redonda em busca do perdido Graal”. Com a morte de
Hobsbawm desaparece um dos mais brilhantes historiadores de nossa época e
talvez o último daquela primeira geração de marxistas, para os quais a
Revolução de Outubro – uma espécie de Graal – era referência central no
horizonte político. Marca também o desaparecimento de um dos últimos
historiadores que colaram de tal forma sua trajetória de vida com a história
pública, que elas parecem indistinguíveis. “O sonho da Revolução de Outubro
ainda está em algum lugar dentro de mim, assim como um texto apagado no
computador lá permanece, à espera dos técnicos que o recuperem dos discos
rígidos”, confessou Hobsbawm. E em lacônica resposta à tirada humorística,
concluiu: “Porque se desistirmos do Graal, desistiremos de nós mesmos”.
***
[Elias Thomé Saliba é
livre-docente em História pela Universidade de São Paulo, professor titular de
Teoria da História na mesma universidade]
Fonte: Reproduzido do Estado de S.Paulo, 2/10/2012