Eric J. Hobsbawm (1917-2012)
Se Eric Hobsbawm tivesse morrido há
25 anos atrás, os obituários o descreveriam como o historiador marxista
britânico mais notável e acabariam mais ou menos aí. Mas ao morrer agora, aos
95 anos, ele atingiu uma posição única na vida intelectual de seu país. Nos
últimos anos, tornou-se o historiador britânico mais respeitado de qualquer
tipo, reconhecido (se não aprovado) tanto pela esquerda quanto pela direita, e
um dos poucos historiadores de qualquer era a desfrutar reconhecimento nacional
e internacional genuíno.
Diferente
de outros, Hobsbawm atingiu tal status sem voltar-se contra o marxismo ou Marx.
Em seu 94º ano, ele publicou How
to change the world [leia resenha em Outras
Palavras], uma forte defesa da relevância contínua de Marx na
sequência do colapso dos bancos de 2008-2010. Além disso, atingiu o auge de sua
reputação em um momento em que as ideias e projetos socialistas, que tanto
estimularam sua escrita por mais de meio século, estavam em desarranjo
histórico – algo de que ele esteve muito consciente.
Em uma profissão conhecida por
preocupações microscópicas, poucos historiadores envolveram-se num campo tão
vasto, com tantos detalhes ou com tanta autoridade. Até o fim, Hobsbawm
considerava-se essencialmente um historiador do século 19, mas seu entendimento
desse e de outros séculos era amplo e cosmopolita.
O
alcance de seu interesse pelo passado, e seu excepcional domínio dos temas
pelos quais se embrenhava sempre espantaram a muitos, principalmente na série
de quatro volumes A era das… na
qual se destila a história do mundo capitalista de 1789 a 1991. “A capacidade
de Hobsbawm de armazenar e recuperar detalhes atingiu agora a escala
normalmente alcançada apenas por grandes arquivos com grandes equipes”,
escreveu Neal Ascherson. Tanto por seu conhecimento de detalhes históricos
quanto por seu extraordinário poder de síntese, tão bem colocados no projeto
dos quatro volumes, ele foi incomparável.
Hobsbawm nasceu em Alexandria, um
bom lugar para um historiador do império, em 1917, um bom ano para um
comunista. Ele faz parte da segunda geração britânica de sua família, neto de
um judeu polonês e marceneiro que foi para Londres nos anos 1870. Oito filhos,
incluindo Leopold, pai de Eric, nasceram na Inglaterra e todos ganharam
cidadania britânica quando nasceram (o tio de Hobsbawm, Harry, tornou-se o
primeiro prefeito eleito pelo Partido Trabalhista em Paddington).
Mas
Eric era um britânico com um background pouco comum. Outro tio, Sidney, foi
para o Egito antes da Primeira Guerra Mundial e encontrou um emprego para
Leopold numa agência de despachos marítimos. Lá, em 1914, Leopold Hobsbawm
conheceu Nelly Gruen, uma jovem vienense de uma família de classe média, que
tinha ganho uma viagem ao Egito como prêmio por ter terminado seus estudos. Os
dois ficaram noivos, mas a eclosão da I Guerra Mundial os separou. O casal
acabaria se casando na Suíça em 1916, voltando ao Egito para o nascimento de
seu primeiro filho, Eric.
“Todo historiador tem sua história
de vida, um ponto de vista privado para examinar o mundo”, ele disse em 1993,
em uma palestra em Creighton, numa das várias ocasiões nos seus últimos anos em
que tentou relacionar sua história de vida com sua escrita. “Meu ponto de vista
foi construído a partir de uma infância em Viena nos anos de 1920, os anos em
que Hitler ganhou força em Berlim, que determinaram minha visão política e meu
interesse pela história; e na Inglaterra, especialmente em Cambridge nos anos
1930, quando confirmei as duas escolhas”.
Em 1919, a jovem família assentou-se
em Viena, onde Eric frequentou a escola primária, período que ele mais tarde
relembrou em 1995, em um documentário na televisão que mostrava fotos de um
jovem Hobsbawm magro, usando shorts e meias até os joelhos. A política teve seu
impacto mais ou menos nessa época. A primeira memória política de Eric é de
Viena, em 1927, quando trabalhadores queimaram o Palácio da Justiça. A primeira
conversa política de que ele se lembrava aconteceu em um sanatório, por volta
desse ano. Duas mulheres judias estavam discutindo Leon Trotsky. “Diga o que
você quiser”, uma disse a outra, “mas ele é um jovem judeu chamado Bronstein”.
Em 1929, seu pai morreu de um ataque
cardíaco. Dois anos depois, sua mãe morreu de tuberculose. Eric tinha 14 anos,
e seu tio Sidney assumiu a responsabilidade, e levou Eric e sua irmã Nancy para
Berlim. Como um adolescente em Berlim na República Weimar, Eric inevitavelmente
se politizou. Ele leu Marx pela primeira vez, e se tornou um comunista.
Ele
sempre se lembrou do dia, em janeiro de 1933, quando, ao sair da estação
Halensee S-Bahn voltando da escola para casa, viu uma manchete em um jornal
anunciando que Hitler havia sido eleito chanceler. Por volta dessa época,
juntou-se ao Socialist Schoolboys, que descreveu como “de fato parte do
movimento comunista” e vendeu a publicação Schulkampf (“Luta Estudantil”). Ele manteve o
mimeógrafo da organização sob sua cama e, dada sua facilidade posterior em
escrever, provavelmente também redigiu também a maioria dos artigos. A família
permaneceu em Berlim até 1933, quando Sidney Hobsbawm foi enviado para a
Inglaterra por seus empregadores.
O
garoto adolescente que foi morar com sua irmã em Edgware, em 1934, descreveu a
si mesmo posteriormente como “completamente europeu e germanófono”. A escola,
porém, “não era um problema” pois o sistema educacional inglês estava “muito
atrás” do alemão. Um primo em Balham apresentou-o ao jazz pela primeira vez – o
“som irrespondível”, ele chamava. O grande momento da conversa, ele escreveria
uns 60 anos depois, foi quando ouviu pela primeira vez a banda Duque Ellington
“em sua forma mais imperialista”. Atuou durante uma parte dos anos 1950 como
crítico de jazz do New Statesman, e publicou uma edição especial, The
Jazz Scene, sobre o assunto, em 1959, sob o pseudônimo de Francis
Newton (muitos anos mais tarde, a obra foi relançada com Hobsbawm identificado
como o autor).
Ao aprender a falar inglês
corretamente, Eric tornou-se aluno na escola de gramática Marybone e ganhou, em
1936, uma bolsa de estudos para a King’s College, em Cambridge. Foi nessa época
que uma frase ficou comum, entre seus amigos comunistas de Cambridge: “tem
alguma coisa que o Hobsbawm não sabe?”. Ele tornou-se membro da legendária
Cambridge Apostles. “Todos nós pensamos que a crise de 1930 era a crise final
do capitalismo”, ele escreveu 40 anos depois. Mas, acrescentou, “não era”.
Quando a II Guerra Mundial teve
início, Hobsbawm voluntariou-se, como muitos comunistas, para trabalho de
inteligência. Mas suas ideias políticas, que nunca foram segredo, levaram à
rejeição. Então ele tornou-se um escavador improvável na 560ª Companhia de
Campo, que posteriormente descreveu como “uma unidade muito operária, tentando
construir defesas notoriamente inadequadas contra invasões no litoral de East
Anglia”. Essa também foi uma experiência formativa para o jovem prodígio
intelectual, muitas vezes ausente. “Havia algo sublime sobre eles e a
Inglaterra naquele tempo”, escreveu. “Aquela experiência na guerra converteu-me
em um operário inglês. Eles não eram muito inteligentes, exceto os escoceses e
galeses, mas eles eram pessoas muito, muito boas”.
Hobsbawm casou-se com sua primeira
esposa, Muriel Seaman, em 1943. Depois da guerra, de volta a Cambridge, tomou
outra decisão: abandonou um doutorado planejado sobre a reforma agrária no
norte da África para fazer uma pesquisa sobre os socialistas fabianos. Foi uma
escolha que abriu a porta tanto para uma vida de estudos sobre o século 19
quanto para uma preocupação igualmente duradora sobre os problemas da esquerda.
Em 1947, ele conseguiu seu primeiro trabalho permanente, como professor
conferencista de história no Birkbeck College, em Londres, onde permaneceu
grande parte da sua vida como professor.
Com o início da Guerra Fria, um
macartismo acadêmico muito britânico fez com que a cátedra de Cambridge, que
Hobsbawm sempre cobiçou, nunca se materializasse. Ele viajava de Cambridge para
Londres, como um dos principais organizadores e animadores do Grupo de
Historiadores do Partido Comunista, uma academia brilhante e radical que reuniu
alguns dos mais proeminentes historiadores do pós-guerra. Entre seus membros,
estavam Christopher Hill, Rodney Hilton, AL Morton, EP Thompson, John Saville
e, mais tarde, Raphael Samuel. O que quer que o grupo tenha alcançado (e
Hobsbawm escreveu uma dissertação sobre ele em 1978), a experiência certamente
estabeleceu um núcleo para seus primeiros passos como grande escritor de
História.
O
primeiro livro de Hobsbawm, “Labour’s Turning Point” (1948) – uma coleção editada de
documentos da era do socialismo Fabiano – pertence claramente à época de
militância no Partido Comunista, assim como o seu engajamento no debate famoso
sobre as consequências econômicas do início da Revolução Industrial, um tema
sobre o qual ele e RM Hartwell teceram argumentos em sucessivos números da Economic
History Review. A
fundação do jornal Past and Present também pertence ao mesmo período. É
até hoje o mais duradouro periódico do grupo de historiadores do PC britânico.
Hobsbawm nunca deixou o Partido
Comunista e sempre pensou em si mesmo como parte de um movimento internacional
comunista. Para muitos, este continua a ser o obstáculo insuperável para
abraçar sua obra. Contudo, ele sempre manteve-se muito mais como um
livre-pensador autorizado a permanecer dentro das fileiras do partido. Sobre a
invasão da Hungria pela União Soviética, em 1956, um evento que dividiu o PC e
provocou a saída de muitos intelectuais do partido, ele foi uma voz de protesto
que, no entanto, permaneceu.
Todavia,
a exemplo de seu contemporâneo Christopher Hill, que deixou o PC naquele
momento, a combinação, de alguma forma, do trauma político de 1956 e o início
de um longo e feliz segundo casamento, provocou um período sustentado e
frutífero de produção no campo da História, o que veio a estabelecer sua fama e
reputação. Em 1959, ele publicou sua primeira grande obra, “Primitive Rebels”, um relato notavelmente original,
especialmente para aqueles tempos, das sociedades secretas e das culturas
milenares do Sul da Europa (ele ainda estava escrevendo sobre o assunto
recentemente, em 2011). Voltou a esses temas uma década depois, em Captain
Swing, um estudo detalhado do protesto rural do início do século 19
na Inglaterra, em co-autoria com George Rudé, eBandidos, um esforço mais abrangente de síntese. Essas
obras servem de lembretes de como Hobsbawm foi tanto uma ponte entre a
historiografia europeia e a britânica e, também, um precursor do aumento
notável do estudo da história social no pós-1968 britânico.
À
essa altura, porém, Hobsbawm já havia publicado o primeiro dos trabalhos sobre
os quais suas reputações popular e acadêmica iriam se assentar. Uma coleção de
alguns dos seus ensaios mais importantes, Labouring Men, apareceu em 1964 (uma segunda coleção,Worlds of Labour, iria surgir 20 anos mais tarde). Mas
foi Industry and Empire (1968),
uma compilação convincente de muito do seu trabalho sobre a revolução
industrial da Grã-Bretanha, que alcançou o mais alto reconhecimento – e, não à
toa, raramente a obra encontra-se fora de catálogo.
Foi
ainda mais influente, no longo prazo, a série a Era
de…, que começou em 1962 com a A
Era das Revoluções: 1789-1848. Ela foi sucedida por A
Era do Capital: 1848-1875 (1975) e,
depois, por A Era do Império: 1875-1914 (1987).
Um quarto volume, A Era dos Extremos: 1914-1991, mais peculiar e
especulativo, ainda que, sob alguns aspectos, mais notável e admirável do que
as obras anteriores, ampliou a sequência em 1994.
Os
quatro volumes incorporam todas as melhores qualidades de Hobsbawm – a
varredura do tema e a compreensão estatística combinadas pelo ar de anedota, a
atenção pelas nuances e o significado das palavras além de, sobretudo, um
incomparável poder de síntese (não há lugar onde o capitalismo dos meados do
século 19 esteja mais bem disposto do que o clássico sumário presente na
primeira página do segundo volume). Os livros não foram concebidos como
tetralogia, mas adquiriram, assim que surgiram, status individual e, ao mesmo
tempo, cumulativo, de claśsico. Eles foram um exemplo, como diria o próprio
Hobsbawm, “daquilo que os franceses chamam de ‘haute vulgarisation‘ [alta vulgarização]” (e ele não
disse isso no sentido autodepreciativo). Os livros ornaram-se, nas palavras de
um revisor, “parte da mobília dos ingleses bem-formados”.
O
primeiro casamento de Hobsbawm tinha terminado em 1951. Durante os anos 1950,
ele teve outro relacionamento, que resultou no nascimento de seu primeiro
filho, Joss Bennathan; mas a mãe do garonto não quis casar-se. Em 1962, ele
casou-se de novo, agora com Marlene Schwartz, de ascendência austríaca.
Mudaram-se para Hampstead e compraram uma segunda casa pequena em Gales.
Tiveram dois filhos, Andrew e Julia.
Nos
anos 1970, a fama crescente de Hobsbawm como historiador viu-se acompanhada
pelo crescimento da sua fama como narrador de seu próprio tempo. Embora ele
respeitasse, como historiador, a disciplina centralista do Partido Comunista,
sua eminência intelectual deu-lhe uma independência que lhe permitiu conquistar
o respeito de pensadores críticos ao comunismo, a exemplo de Isaiah Berlin.
Isso também garantiu-lhe o considerável elogio de não ter nenhum de seus livros
publicados na União Soviética. Armado e protegido, ele navegou sem medo por
todo o campo da esquerda, das páginas mensais do Partido Comunista ao Marxism Today, uma publicação consideravelmente
heterodoxa na qual tornou-se sumidade da casa.
Suas
conversas com o comunista – e, agora, presidente – italiano Giorgio Napolitano
datam daqueles anos e foram publicadas em A Estrada Italiana para o Socialismo. Mas sua mais
influente contribuição política foi a crescente certeza de que o movimento
proletário europeu perdera a capacidade de realizar a função transformadora que
os marxistas primordiais lhe creditavam. Esses artigos revisionistas
descompromissados foram organizados sob o título “The Forward March of Labour Halted” [A Marcha do Trabalho Interrompida].
Em 1983, quando Neil
Kinnock tornou-se líder do Partido Trabalhista britânico, por conta de sua
sorte eleitoral, a influência de Hobsbawm começou a se estender para além do
Partido Comunista e para dentro do Trabalhista. Kinnock reconheceu publicamente
sua dívida para com Hobsbawm e permitiu-se ser entrevistado pelo homem que descreveu
como “meu marxista favorito”. Embora Hobsbawm tenha desaprovado firmemente
muito daquilo que seria conhecido depois como “Novo Trabalhismo” – algo que
via, entre coisas, como covardia histórica – ele foi, sem dúvida, o precursor
intelectual mais influente do revisionismo iconoclasta do trabalhismo dos anos
1990.
Seu
status foi sublinhado em 1998, quando o então primeiro-ministro Tony Blair
concedeu-lhe a distinção de Companion of Honour, poucos meses depois de ter
completado 80 anos. Na sua justificativa, o premiê disse que Hobsbawm
continuava a publicar trabalhos que “localizam na História e na política
problemas que reemergem, para perturbar a complacência da Europa”.
Nos últimos anos, Hobsbawm viu sua reputação
crescer. Suas comemorações de aniversário de 80 e 90 anos foram premiadas com a
presença da intelectualidade liberal e de esquerda da Grã-Bretanha. Ao longo
dos últimos anos, ele continuou a publicar volumes de ensaios, incluindo On
the History (1997) e Uncommon
People (1998),
trabalhos nos quais Dizzy Gillespie e Salvatore Giuliano colocaram-se lado a
lado no índice de testemunhas das crescente curiosidade de Hobsbwm. Também são
dessa época uma autobiografia muito bem-sucedida, Tempos
Interessantes, publicada em 2002, eGlobalização, Democracia e Terrorismo, de 2007.
Mais famoso no fim de sua vida do que
provavelmente em qualquer outro período, ele manteve com regularidade suas
palestras, comunicações e o papel como performer no
Festival de Literatura de Hay, do qual tornou-se presidente aos 93 anos, após a
morte de Lord Bingham de Cornhill. Um tombo, em 2010 reduziu severamente sua
mobilidade, mas seu intelecto permaneceu intocado, assim como sua vida social e
cultura, graças aos esforços, ao amor e à culinária de Marlene.
Que seus escritos tenham continuado
a sensibilizar tantos públicos, no momento em que sua política foi, de certa
forma, eclipsada, era o tipo de disjunção que exasperava os direitistas. Mas
foi também o paradoxo em que seu intelecto sutiu e jamais complacente
refestelou-se. Em seus últimos anos, ele gostava de citar EM Forster, segundo o
qual o próprio Hobsbawm sabia “permanecer sempre num ângulo suave do universo”.
Se o comentário diz mais sobre Hobsbawm ou sobre o universo era algo que ele
gostava de debater, confiante na noção de que se tratava, em muitos sentidos de
um aprendizado para ambos. Ele deixa Marlene e seus três filhos, sete netos e
um bisneto.
Por Martin Kettle e Dorothy Wedderburn, no The Guardian | Tradução: Daniela Frabasile e Hugo
Albuquerque in. Outras Palavras