Photo: Édouard Boubat, 1923-1999
Durkheim disse uma frase muito
justa: "A lei segue os costumes". Isso quer dizer que a lei só
aparece depois. Primeiro, há algo que é vivido, depois surge uma maneira de pôr
ordem nesse vivido. Mas, o problema que enfrentamos cada vez mais é que os
diversos discursos, nas diversas instâncias do saber, são totalmente
abstratizados, são tornados abstratos da experiência vital. Tomemos a palavra
abstratizado ou abstratização no seu sentido simples: retirar-se do vivido.
O pensamento
contemporâneo não está mais organicamente ligado ao vivido: pelo contrário,
está totalmente desligado. Assim, há que voltar à experiência vital, voltar a
uma atitude que é uma atitude radical. Aliás, lembro que os grandes pensadores
foram os que tiveram um pensamento radical, de raiz. É o caso de Marx. Seu
pensamento reivindicava, para o século XIX, ir à raiz das coisas. Jung e Freud
também tiveram o mesmo pensamento radical.
Se há uma palavra que pode resumir o que vivemos e
o que é nossa cultura, é a palavra "separação". O conceito hegeliano
de separação nasceu de uma expressão filosófica, mas já a Bíblia – e é
importante referir-se a ela como um dos livros fundadores dessa tradição
cultural – diz: "Deus separou a luz das trevas". E é a partir dessa
separação original que vai haver um processo de dicotomização do mundo.
A natureza e a cultura, o corpo e o espírito, o
corporal e o espiritual. E tudo em conformidade com isso. Uma multiplicidade de
dicotomizações que se baseia – e é o que chamo abstratização – no fato de que
se vai separar as coisas, de que se vai analisá-las. Foi essa abstratização,
foi esse procedimento analítico que fez o modelo ocidental do desenvolvimento
científico e tecnológico. Mas talvez, agora, tenhamos chegado ao fim desse
processo e algo diferente deverá surgir.
Michel Maffesoli, sociólogo
francês
Fonte: Fronteiras
do Pensamento | conferência "O espaço da memória”