segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O corpo dos condenados*



Por MICHEL FOUCAULT



[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que ai será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e as partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.

Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d'Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos a tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembraras coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas...

Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: "Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me". Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de sua idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente.

[O comissário de polícia Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, dai passando as duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras.

Depois desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços.

O senhor Le Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma como costumamos ver representados os condenados: "Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor". Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inexprimíveis.

O senhor Le Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe se não queria dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe falaram demoradamente; beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: "Perdão, Senhor".

Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito a cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram repetidos varias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante dos atrelados as coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum.

Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse as autoridades se desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor Le Breton, de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos empacaram e um dos atrelados as coxas caiu na laje. Tendo voltado os confessores, falaram-lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar): "Beijem-me, reverendos".

O senhor cura de Saint-Paul não teve coragem, mas o de Marsilly  passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-o na testa. Os carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que não blasfemassem, que cumprissem seu ofício, pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de Saint-Paul que rezasse por ele na primeira missa.

Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro.

Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar; mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo a palha ajuntada a essa lenha.

...Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir as dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os oficiais, entre os quais me encontrava eu e meu filho, com alguns arqueiros formados em destacamento, permanecemos no local até mais ou menos onze horas.


Michel Foucault, Vigiar e Punir: nascimento da prisão, 2004.

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*O que é justiça? Como reparar um crime? Certo é que ao longo do tempo buscamos nos “aperfeiçoar” nesse quesito. Saímos dos suplícios, como esse de Damiens, e chegamos a essa forma recente (em termos históricos) que é a prisão. Embora particularmente continue achando que o único sentido da condenação de um criminoso seja o exemplo para quem, de fora, ainda não  o é. Essa economia do poder de punição, essa racionalização que forjou o nascimento dos presídios em substituição aos castigos e execuções públicas será a maneira mais “humanizada” de punir? Tenho lá minhas dúvidas.

Sobre isso indico um filme-documentário muito bom: “O prisioneiro da grade de Ferro”(2003). (sigam o link).
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