segunda-feira, 17 de outubro de 2011

As cidades e os mortos*

Por ITALO CALVINO


Não existe cidade mais disposta a aproveitar a vida e a evitar aflições do que Eusápia. E, a fim de que o salto da vida para a morte seja menos brusco, os habitantes construíram no subsolo uma cópia idêntica da cidade. Os cadáveres, dessecados de modo que os esqueletos restem revestidos de pele amarela, são levados para baixo e continuam a cumprir antigas atividades. Destas, as preferidas são as que reproduzem momentos de despreocupação: a maioria é posicionada em torno de mesas servidas, ou colocada em posições de dança ou no gesto de tocar trombeta. Mas todos os comércios e profissões da Eusápia dos vivos são recriados no subsolo, ao menos os que os vivos realizaram com mais satisfação do que aborrecimento: o relojoeiro, no meio de todos os relógios parados de sua oficina, encosta a orelha seca num relógio de pêndulo sem corda; um barbeiro ensaboa com um pincel seco o osso dos zigomas de um ator enquanto este repassa o seu papel examinando o roteiro com as órbitas vazias; uma moça de crânio risonho ordenha uma carcaça de bezerra.
Claro que muitos dos vivos pedem para depois da morte um destino diferente do que lhes coube em vida: a necrópole é apinhada de caçadores de leões, meios-sopranos, banqueiros, violinistas, duquesas, concubinas, generais, em número maior do que jamais contou a cidade vivente.
A incumbência de acompanhar os mortos para baixo e instalá-los no lugar desejado é conferida a uma confraria de encapuzados. Ninguém mais tem acesso à Eusápia dos mortos e tudo o que se sabe de lá de baixo sabe-se por intermédio deles.
Dizem que a mesma confraria existe entre os mortos e que não deixa de lhes dar uma ajuda; após a morte, os encapuzados continuarão com o mesmo ofício também na outra Eusápia; fazem crer que alguns deles já morreram e continuam a ir de cima para baixo. Claro, a autoridade dessa congregação sobre a Eusápia dos vivos é muito ampla.
Dizem que cada vez que descem encontram alguma mudança na Eusápia de baixo; os mortos apresentam inovações em sua cidade; não muitas, mas certamente fruto de uma reflexão ponderada, não de caprichos passageiros. De um ano para o outro, dizem, não se reconhece a Eusápia dos mortos. E os vivos, para não ficarem para trás, querem fazer tudo o que os encapuzados contam a respeito das novidades dos mortos. Assim, a Eusápia dos vivos começou a copiar a sua cópia subterrânea.
Dizem que não é só agora que isso ocorre: na realidade, foram os mortos que construíram a Eusápia de cima semelhante à sua cidade. Dizem que nas duas cidades gêmeas não existe meio de saber quem são os vivos e quem são os mortos.

Italo Calvino, As cidades invisíveis, 1990.

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*Italo Calvino (1923-1985) é um daqueles escritores que você não pode, aproveitando a deixa do texto, morrer sem conhecê-lo. Deste autor encanta-me especialmente As cidades invisíveis, uma obra com uma qualidade narrativa fora de série... Fica a dica.

Por Josenias Silva
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