Já
não posso duvidar de que alguma coisa me aconteceu. Veio como uma doença, não
como uma certeza comum, não como uma evidência. Instalou-se pouco a pouco,
sorrateiramente: senti-me um pouco estranho, um pouco incomodo, e isso foi
tudo. Uma vez no lugar, não mais se mexeu, aquietou-se, e pude me persuadir de
que não tinha nada, que era um alarme falso. Eis que agora a coisa se expande.
[...]
Em
minhas mãos, por exemplo, há algo de novo, uma determinada maneira de segurar
meu cachimbo ou meu garfo. Ou então é o garfo que tem agora uma determinada
maneira de ser segurado, não sei. Ainda há pouco, quando ia entrando em meu
quarto, parei de repente, porque sentia em minha mão um objeto frio que retinha
minha atenção através de uma espécie de personalidade. Abri a mão, olhei:
estava segurando apenas o trinco da porta.
Esta
manhã, na biblioteca, quando o Autodidata veio me cumprimentar, levei dez
segundos para reconhecê-lo. Via um rosto desconhecido, apenas um rosto. E
depois havia sua mão, como se fosse um grande verme branco, em minha mão.
Soltei-a logo, e o braço descaiu frouxamente.
Também
nas ruas há uma quantidade de ruídos estranhos que persistem.
Portanto,
ocorreu uma mudança durante essas últimas semanas. Mas onde? É uma mudança
abstrata que não se fixa em nada. Fui eu que mudei? Se não fui eu, então foi
este quarto, esta cidade, esta natureza; é preciso decidir.
Jean-Paul
Sartre in. “A náusea”. Ed. Circulo do Livro, 1989, pp.15-16