domingo, 7 de abril de 2013

A hagiografia ou “a vida dos santos”*


A biografia se apresenta, desde a Antiguidade, como um gênero à parte, distinto da história. Dá-se o mesmo com a escrita das vidas de santos, a hagiografia. Esse gênero literário privilegia as encarnações humanas do sagrado e ambiciona torná-las exemplares para o resto da humanidade. Como gênero literário, seu regime de verdade permanece distinto daquilo que se espera do historiador. Distante do pacto de verdade que a escrita histórica pressupõe, a vida de santo ensina ao leitor algo bem diverso do fato atestado. [...] Como bem diz Michel de Certeau, as hagiografias procuram muito mais investigar a concepção de mundo veiculada pelo hagiógrafo do que produzir a vida real do santo biografado. [...] O relato de vida tem valor de testemunha de uma travessia experiencial, a da relação entre Deus e aquele que foi canonizado como santo. A hagiografia reflete uma estrutura particular, na qual “a individualidade conta menos que a personagem”. À diferença da biografia, que acompanha uma evolução no tempo das potencialidades do indivíduo, a hagiografia postula que tudo está na origem. A hagiografia enfatiza as descrições espaciais de lugares sagrados para enraizar a figura santa que é seu espírito protetor. Só como meio utiliza a narração. Já a biografia ressalta a narração, o percurso da existência no tempo, e atribui a descrição de estados de alma, retratos e balanços das ações ou obras um papel secundário, para animar a lógica narrativa temporal. O desdobramento da história, para o hagiógrafo, não passa de uma epifania progressiva do estado inicial de vocação ou eleição do santo, segundo uma concepção intrinsecamente teleológica. A vida do santo situa-se numa temporalidade fixa, a da constância do próprio ser, de tal modo que “o fim repete o começo. Do santo adulto, remonta-se à infância na qual já se reconhece a efígie póstuma. O santo nada perde daquilo que recebeu”. É, pois, diferente do herói, esse palco de conflito trágico que o domina até abalá-lo e por vezes induzi-lo a transgredir as leis divinas e humanas. O santo é inteiriço, imutável, pronto a enfrentar todas as provas sem nenhuma alteração.

*François Dosse in. “O Desafio Biográfico”. Ed.Edusp, 2009, pp. 137-138.

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Saint George and the Dragon, c 1889-1890.
Óleo sobre tela, 141 x 96.5 cm
Gustav Moreau, 1826-1898.


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