Uma
olhada rápida para o rio em Paris revela o que está acontecendo na França. Se
não transborda por cima do cais de pedra no Ano-Novo, é porque os fazendeiros
sofreram com a seca. Quando corre bem rápido, está alto e cor de chocolate em
abril, é porque a temporada de esqui foi excelente. Os zeladores tiveram de
abrir as comportas da eclusa no Marne para escoar a neve derretida. Quando a
França está mais alegre, celebrando o bicentenário da revolução ou simplesmente
o Dia da Bastilha, barcaças e brigues tumultuam o Sena a caminho dos fogos de
artifício.
Pode-se
avaliar a leva de turistas contando as cabeças por cima da amurada dos bateaux-mouches. Quando as barcaças
estão tão carregadas de cascalho que a água espirra por cima do verdugo, a
construção civil está em alta. Os observadores do Sena souberam que a França
estava viciada na televisão americana quando a polícia começou a chispar
pequenas lanças de patrulha, o piloto ereto ao volante, a caminho do almoço à Miami Vice.
E
rio abaixo, além de Rouen, aquela olhada no Sena pode contar sobre o estado do
mundo. Muito antes de a maioria das pessoas começar a pronunciar em família a
nova palavra, perestroika, Jacques
Mavel já sabia que a cortina cairia. Piloto de rio, ele viajava pelo mundo
todos os dias, sem sair do Sena. Notou que os capitães marítimos soviéticos
começaram de repete a sorrir e a falar com estranhos.
Desde
o princípio, a alma francesa já flutuava nas águas do Sena. Em suas pontes
floresce o amor; embaixo delas, vidas terminam. Ninguém sabe dizer com exatidão
onde o rio começa, ou algo mais a respeito, mas ele flui no espírito de todos
os românticos. Irrigou a pena de Maupassant e irrigou o lago de flores-de-lis
de Monet.
Paris,
já era a Cidade Luz muito antes de haver interruptores elétricos. A rayonnement, aquela radiância que os
franceses sempre exibiram para os iluminados, emana dos rosas, laranjas e
lampejos cintilados de sol mergulhado no Sena. Quando Baudelaire escreveu que
tudo à sua volta não passava de “ordre et
beauté; luxe, calme et volupté”, ele olhava para o rio da Île Saint-Louis.
[...]
Mas
o rio não é sempre como os poetas descrevem, voluptuoso e imutável. No fim do
inverno, seu temperamento muda. Basta uma pequena provocação para transbordar
pelas pistas da Rive Gauche, engarrafando o trânsito desde Saint-Michel até a
torre Eiffel. Em 1910, firmemente decido a machucar, chegou à altura dos
joelhos nas lojas chiques da Champs-Elysées. Um século atrás, as plácidas
margens de uma cidadezinha da Normandia, a correnteza engoliu Léopoldine, filha
de Victor Hugo, que caiu de um barco e afundou com seus trajes domingueiros.
Por
dois mil anos o Sena foi o canal de uma nação que leva sua alimentação a sério.
Os grãos iam rio acima, carregamentos de vinho rio abaixo. Hoje em dia a maior
parte dos alimentos viaja pelas estradas ou ferrovias, mas uma olhada para o
Sena sugere que continua a ser, pelo menos, o trato digestivo da França. Quando
alcança Paris, o rio carrega tantos detritos da civilização que é capaz de
virar o estômago de qualquer rato de esgoto comum. Isso, claro, não desencoraja
os nadadores que participam de competições da Notre-Dame até Neuilly, aflorando
incólumes das águas. O Sena é sempre desconcertante.
Visitantes
não se cansam do Sena. Gertrude Stein passeava com seus cães pelas margens do
Sena. Henry Miller caminhava ao longo dele para curar seus excessos. Numa casa
flutuante, Anaïs Nin levava seus excessos a novos níveis. Peixe era o primeiro
prato do banquete móvel de Hemingway. Ele adorava ficar olhando os pescadores
ao longo da passarela para pedestres da Ponte des Arts. “Era mais fácil
pensar... vendo as pessoas fazendo algo que compreendiam” A ideia de sushi do
Sena é bem repugnante, mas os caras continuam lá no fim da primavera, quando a
pescaria é melhor.
A
geração atual, embora talvez menos perdida que a de Hemingway, continua a vir
para o Sena no verão para livra-se de inibições. Os parisienses ficam pelados e
bronzeiam-se nas quentes margens de pedra. Escondem seus vinhos em sacos de
papel pardo, só quando têm vergonha dos rótulos. Em certos pontos do cais,
Paris é gay. Em outros, crianças e cachorros brincam. Idosos alimentadores de
pombos ocupam os bancos durante o dia, mas amantes os tomam à noite.
Mesmo
seus menores mistérios intrigam. Uma noite um sapato preto flutuou pelo lado de
meu barco, seco por dentro, a sola boiando reta na superfície da água. Um
número significante de parisienses insiste que consegue caminhar sobre a água.
Será que um deles apareceria logo atrás, com passos largos? Meu vizinho rio
acima, Pierre Richard, saiu-se bem como protagonista de um filme chamado O Alto Homem Louro com um Pé de Sapato
Preto. Quem Sabe?
As
pessoas marcam suas histórias com lembranças do Sena. Uma noite, em 1958, minha
amiga Jo Menell estava na Pont-Neuf e vi formas misteriosas que pareciam toras
de madeira flutuando às dúzias na correnteza rápida. A França estava em guerra
para manter a Argélia sob sua asas, e as formas eram argelinos assassinados por
fanáticos franceses, que compensavam o terror na Argélia com terror em Paris.
Os corpos, conforme mandava a tradição, eram jogados no rio.
[...]
“O
Sena é o primeiro grande receptáculo que abriga as vítimas de assassinato ou do
desespero”, escreveu Fanny Trollope em 1836. “Mas não escapam por muito tempo
da vigilância parisiense; uma enorme rede, esticada de um lado ao outro do rio
em Saint-Cloud, recebe e retém qualquer coisa que desça com a água; e qualquer
coisa que tenha alguma semelhança com a forma humana encontrada no meio do produto
daquele lixo assustador é diariamente levada para La Morgue. Diariamente,
porque é raro os melancólicos esquifes ficarem vinte e quatro horas
desocupados; muitas vezes chegam até oito, dez, doze corpos juntos, na terrível
caravana de Saint-Cloud.”
Hoje
esses números diminuíram. Durante o ano de 1992 a polícia de Paris resgatou
treze corpos do Sena. Salvaram outras vinte e três pessoas que caíram,
acidentalmente ou de propósito. E retiraram nove carros. Foi um ano normal.
A
rede de Saint-Cloud também foi retirada. Hoje em dia, só Deus sabe o que
poderia arrebentá-la ou enchê-la, em minutos. Quando a correnteza está mais
rápida, árvores enormes são carregadas rio abaixo, como aríetes. Outros itens,
menores que árvores e às vezes impronunciáveis, também flutuam no Sena. Aqui,
por exemplo, está uma breve amostra do diário de um jovem visitante de La Vieille, que ficou observando as
águas durante meia hora: um colchão, inúmeras caixas de isopor, um porco
inchado, várias camisinhas, peixes mortos, patos vivos, um aparelho de
televisão, um casaco de alguém, calças de outro alguém, almoços de muita gente
– em diversos estágios.
[Fragmento]
Mort
Rosenblum in. “A vida secreta do Sena”. Ed. Rocco, 1998, pp. 13-17.