quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O amor nos tempos do cólera*

E aí, alguém ainda lembra de algum "amor" da adolescência? Dizem que amor, se é Amor, é para toda a vida. Assim, imaginem-se vivendo um amor de adolescência que não deu certo. A vida passa, passa, as coisas acontecem no seu ritmo próprio. Você encontra e casa com alguém que aprendeu a gostar. Constrói uma vida ao lado dessa pessoa. Se acomoda a ela e de repente, após mais de meio século de convivência, ela morre. Não sem uma dose de ironia, aquele seu amor de adolescência aparece no velório do seu querido e lhe jura amor e fidelidade eterna. Você naquele momento sente raiva, pensa em maldizê-lo e expulsá-lo da casa onde ainda está quente o cadáver do seu esposo. Mas você se controla. Não diz nada. Espera todos irem embora, tranca-se no seu quarto e chora. Acha que a vida não terá mais sentido, deseja a própria morte, tudo lhe lembra o querido esposo. Você sente a ausência daquela vida compartilhada. Assim você vai dormir soluçando no lado que sempre dormia, e mas uma vez sente o peso da ausência do companheiro. Mas a noite corre e aos poucos, ao despertar na manhã seguinte, você percebe que enquanto dormia pensava mais no amor da adolescência do que no próprio marido morto. 


Bem, este poderia ser um drama da vida real, mas é um episódio da história de "amor" de Fermina Daza e Florentino Ariza, personagens d"O Amor nos tempos do cólera" de Gabriel Garcia Márquez. A seguir um dos meus trechos prediletos: 

[...]

Quando ouviu que se apagavam os passos na rua solitária, fechou a porta bem devagar, com a tranca e os ferrolhos e encarou sozinha seu destino. Nunca, até este momento, tinha tido a plena consciência do peso e do tamanho do drama que ela própria desencadeara quando tinha apenas dezoito anos, e que havia de persegui-la até a morte. Chorou pela primeira vez desde a tarde do desastre, sem testemunhas, que era seu único jeito de chorar. Chorou pela morte do marido, por sua solidão e sua raiva, e quando entrou no quarto vazio chorou por si mesma, porque muitas poucas vezes tinha dormido sozinha nessa cama desde que deixara de ser virgem. Tudo que era do esposo lhe atiçava o pranto: os chinelos de borlas, o pijama debaixo do travesseiro, o espaço sem ele no espelho da penteadeira, o cheiro pessoal dele em sua própria pele. Abalou-a um pensamento vago: "As pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas." Não quis ajuda de ninguém para se deitar, não quis comer nada antes de dormir. Na angústia de sua desolação, rogou a Deus que lhe mandasse a morte esta noite durante o sono, e com essa ilusão se deitou, descalça mas vestida, e dormiu no mesmo instante. Dormiu sem saber, mas sabendo que continuava viva no sono, que lhe sobrava metade da cama, que jazia de costas na margem esquerda, como sempre, mas que lhe fazia falta o contrapeso do outro corpo na outra margem. Pensando adormecida, pensou que nunca mais poderia dormir assim, e começou a soluçar adormecida, e dormiu soluçando sem mudar de posição na sua margem, até muito depois de acabarem de cantar os galos, e a despertou o sol indesejável da manhã sem ele. Só então descobriu que havia dormindo muito sem morrer, soluçando no sono, e enquanto dormia soluçando pensava mais em Florentino Ariza do que no marido morto. 

[Fragmento]

Gabriel Garcia Márquez in. "O amor nos tempos do cólera". Ed. Record, 1998, pp. 68-69.

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