A
inveja é um afeto sobre o qual costuma-se dizer que é humano como dizemos de
tudo o que é errado como reza o ditado. Deste modo, estabelecemos o significado
– perigosíssimo – do que é ser humano, como algo imperfeito e passível de
falhas. Também derramamos um balde de perdão sobre aquilo que antigamente e de
um ponto de vista religioso, chamávamos, pecado. Daí a dizer-se que é preciso
ser perdoado por se ser humano, não se precisa de muitos passos. É também
lógico, deste momento em diante, considerar que para se ser um ser humano é
preciso errar, ou “pecar”. A conseqüência é a curiosa permissão ao erro.
Passa-se do “ser errado” ao “dever-ser errado”. O que se conquista com isso,
espera-se, é a humanidade. Porém, o contrário também pode ser válido: reduzir a
humanidade à minha capacidade de errar. Neste ponto, o conceito de humanidade é
que não vale mais nada, pois serve apenas a minha própria incompetência para
ser melhor ou como esconderijo para a permissividade.
Mal democrático
A inveja - que já foi pecado no passado, quando a religião aparecia como esfera principal da experiência humana - hoje é apenas erro, pois vivemos numa sociedade secularizada. Que assim seja é bastante mais confortável, até porque atualmente somos capazes de medir a “tão humana” inveja pelos parâmetros do bem e do mal. Fazemos isso porque a inveja é muito comum, tão comum que muitos consideram-na natural. Tão natural que se tornou banal e, como tal, menos grave. Tão comum que, desavisados, podemos considerá-la boa, já que é um afeto democrático, ou seja, um afeto partilhado. E nosso anseio de sermos iguais, mesmo que pelo mal, ganha força. Grande engodo.
A cor da inveja
Fala-se
de inveja branca como contrária da inveja má. Quem faz tal diferenciação pode
até estar correto se for capaz de perceber o real modo de ser da inveja. Mas o
termo é, sem dúvida, inadequado. Toda palavra, deve-se desconfiar, guarda sua
história, seu sentido e, a cada vez que é pronunciada ou escrita, aciona sua
função. É preciso fazer uma correção inicial e urgente: uma inveja boa, a
rigor, já não seria inveja. Muito menos porque eu a admito ela seria melhor.
Admitir que se fez algo errado é bom, mas não torna o erro melhor.
Foi
Santo Agostinho, o filósofo da Patrística que, no terceiro século da idade
média, percebeu pela primeira vez a conexão da inveja com a constituição
primeira do ser humano. No famoso texto dasConfissões ele narra sua dúvida
sobre a inocência das crianças que, primeiro anseiam pelos peitos de sua mãe e,
logo maiores, ao verem o irmão pequeno que os possui, sentem inveja. A partir
daí Santo Agostinho explicou sua conversão e fundou uma ética, a de que todo
homem de bem deveria ser santo e, portanto, eliminar de si, com consciência e
lucidez, um afeto negativo como este, mesmo que ele faça parte da constituição
mais íntima do humano.
Santo
Agostinho elaborou uma frase que informa sobre o significado menos banal da
inveja: Video, sed non invideo, ou seja, vejo, mas não in-vejo. A
inveja tem nexo com o ver. Se vejo, posso invejar. Se vejo, devo não in-vejar.
Ver e não invejar seria o mérito daquele que vê. Ora, a inveja nasce do desejo
de se ter o que o outro tem e, como quase dez séculos mais tarde disse Santo
Tomás, é a tristeza que advém da felicidade do próximo. O in-vejoso tem uma
espécie de olho grande, um “olho gordo”, mau, para tudo o que cabe a outrem.
Tudo o que não se refere a ele.
Para
Santo Tomas, a inveja é a mãe de diversos outros afetos terríveis com o ódio e
filha da soberba que é a incapacidade de julgar-se igual aos demais por
considerar-se melhor que eles. Ela nunca é boa, pois, nascida de um afeto mau
ela produz ações destrutivas: a maledicência, a competitividade, a falta de
caridade, ou seja, de amor ao próximo. Em seu lugar fica o amor doentio de si,
a que chamamos narcisismo.
Invejar é ressentir
Como
muitos de nossos afetos negativos, a inveja está associada ao ressentimento.
Desde a antiguidade de Agostinho se diz que aquele que inveja é como uma traça
que rói as vestes como quem destrói o amor. Ela age ocultamente. Seu silêncio
de ressentido não é inerte. Revela-se em suas falas e ações destrutivas
mergulhadas no ódio ao outro. Mas de quem seria a responsabilidade por um tal
afeto?
Rói-se
de inveja, sempre em silêncio e fingindo não sentir nada, aquele que não
consegue esquecer. Mas esquecer o quê? A visão de seu lugar ocupado por outrem.
É como a criança que guarda a mágoa de ter sido preterida pela mãe que
precisava dar atenção ao irmão mais novo. O que o pequeno Agostinho da
narrativa sentia, não era apenas o desejo do seio que lhe tinha sido afastado,
mas a perda da centralidade que o seio lhe dava. Aquele que não souber ver com
bons olhos, o que equivale a partilhar o amor com seu irmão, não saberá ser
amigo. O invejoso, em geral, não tem amigos, ele quer o seio só para si.
Inveja boa sem inveja?
A
inveja superada chama-se desejo. O desejo é o contrário do egoísmo. O desejo
tem algo em comum com a inveja, pois também envolve um olhar e um querer dele
advindo. Porém, enquanto a inveja é sinuosa e oculta sua ação sobre a
passividade aparente, o desejo é direto. O desejo não engana nunca.
Marcia
Tiburi. in. Revista Vida Simples.
Dezembro de 2006. Ed. 48. pp. 50-51.