segunda-feira, 16 de abril de 2012

O livro de todo o saber*

Cena do filme O Livro de Eli

Conta uma velha lenda talmúdica que, nas vésperas do Dilúvio, dois sábios, dois videntes, que eram filhos de Seth e conheciam as tensões de Deus, descendo por um caminho da Mesopotâmia, numa tarde triste, naquela imensa tristeza das últimas tardes do Mundo, estremeceram, pararam ao avistar por trás dos montes Górdios as nuvens que subiam, tenebrosas, enroladas, já carregadas da chuva suprema e vingadora. E o que então os contristou não foi a destruição dos rebanhos, das fortes cidades muradas, de tantos povos dóceis, pois bem sabiam os dois videntes que, retiradas as águas, encalhada a Arca nas colinas moles, em breve outros homens, pais de outros povos, pastoreariam rebanhos mais densos através de prados mais férteis, e ergueriam novamente cidades com vigias nas torres e o incenso fumegando nas aras. Não! o que os angustiou foi pensar que a ciência, a ciência tão penosamente adquirida e acumulada desde o Paraíso, pereceria com os homens sapientes que a possuíam, de repente, como se evapora a essência rica do nardo quando o vaso fino se quebra; - e que as raças, renascidas sobre a terra renascida, deveriam recomeçar a áspera aprendizagem, e por longos tempos errar de rio a monte numa apagada e muda simplicidade de espírito, não sabendo mais que matar a caça com uma lasca de rocha, e ao desdobrar da sombra buscar o refúgio de alguma toca, com medo da noite e dos seus astros incompreendidos.

Então, naquele caminho perdido da Mesopotâmia, sob a tristeza imensa da tarde, os dois sábios, filhos de Seth, determinaram arquivar, escrevendo em matéria imperecível, a ciência que possuíam, que era a ciência total daquela primeira humanidade. Durante três dias, durante três noites, num vale onde acendiam fogos, à beira de uma fonte que rugia, inchada com a cólera que Deus já comunicara a todas as águas - os dois sábios, sem repouso, ansiosamente, espreitando as nuvens, gravaram sobre o granito e gravaram sobre o tijolo o livro de todo o saber. Depois, na derradeira madrugada, finda a obra, estendidos como páginas pelo vale, os tijolos e os granitos onde ficava inscrita toda a ciência inicial, os dois sábios, levantando as faces cansadas, louvaram o Senhor que lhes concedera tempo de cumprirem, para com os homens da outra humanidade, aquele dever final de fraternidade magnifica: - e do céu caíram lentamente, sob as faces erguidas dos dois filhos de Seth, as primeiras gotas, pesadas e mudas, da grande chuva de Deus.

Eça de Queirós. in. Notas Contemporâneas. Ed. Lello & Irmão, 1945, pp. 509-511.


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