A
perversão é uma das três grandes estruturas da psicopatologia psicanalítica. Ao
lado da psicose e da neurose, ela representa um tipo específico de
subjetividade, desejo e fantasia. Comparativamente, seu diagnóstico é mais
difícil e controverso: consideram-se a extensão e variedade de seus sintomas,
bem como sua alta suscetibilidade à dimensão política. Nas perversões podemos
incluir aproximativamente três subgrupos: as perversões sexuais, as
personalidades antissociais e os tipos impulsivos. Essa subdivisão é
problemática e apenas descritiva, pois cruza categorias originadas em
diferentes tradições clínicas.
Devemos
distinguir uma perversão ordinária de uma perversão extraordinária,
representada pelos “tipos concentrados” com os quais a perversão foi
historicamente associada, para, em seguida, ser excluída, silenciada e expulsa
da condição humana. Aquela que seria a forma mais forte de perversão, como
confronto e desafio à lei, é, na verdade, expressão de um tipo coletivo de
exagero da lei, baseado na atração pela forma, desligada e deslocada de seu
conteúdo.
“Perversão”,
assim, seria o nome para o que nos desperta indignação. Mas, porque o estado
social “normal” não representa necessariamente o bem ético, torna-se difícil
pensar a perversão de modo simples. A anomalia que nega a norma pode ser um
desvio progressivo, útil ou benéfico. Além disso, mesmo a dissociação entre a
norma e seu oposto, entre real e ideal, entre o bem e o mal, é justamente uma
das características da perversão.
Tipologia da perversão
Isso posto, há três famílias principais da perversão. A primeira refere-se ao exagero ou à diminuição de algo, que, sob justa medida, seria tolerável e até mesmo desejável. O perverso, assim, estereotipa um comportamento, fixa-se em um modo de estar com o outro e de orientar sua satisfação. Tome-se o exemplo de um sujeito que, para encontrar satisfação sexual, deve empregar adereços como calcinhas, vestir-se com roupas do sexo oposto, admirar partes específicas do corpo do parceiro ou manipulá-las de modo bizarro. Tudo isso, sem “exagero”, seria parte admissível de um encontro sexual, mas, quando sua presença torna-se coercitiva, necessária e condicional, percebemos que há uma espécie de excesso. A parte toma conta do todo.
A
segunda família de perversões decorre da idéia de desvio. Trata-se aqui da
metáfora da vida como um caminho, no qual o perverso “toma um atalho” ou elege
para si “outra via”. Ele se desgarra dos outros, torna-se alguém fora da ordem,
fora do lugar adequado. Curiosamente, essa negação da “norma” funciona como
reafirmação de sua força. Se a primeira perversão é definida pelo traço de
exagero, a ideia central do segundo tipo é a de deslocamento, inversão e
dissociação.
A
terceira classe de perversão é formada pelos que marcam seu compromisso com a
transgressão, com a violação da lei, da moral ou dos costumes. Essa
transgressão não é efeito secundário, mas decorre da identificação do sujeito
com a lei. Alude-se aqui à lei materna (em oposição à lei paterna) para
designar essa relação de passividade radical e de disposição soberana sobre o
corpo do outro. Apesar da extrema variedade histórica e antropológica, há duas
maneiras básicas de perversão da lei: afirmá-la por meio de uma negação ou
negá-la por meio de uma afirmação.
Perversão e lei
No primeiro caso, a lei está escrita em alguma parte, intérpretes confiáveis e executores fiéis. Dessa perspectiva, exagera-se o caráter formal da lei, de maneira que sua execução deixe de aparecer como efeito de agentes empíricos dotados de sensibilidade. Ou seja, cria-se uma exceção à lei dentro da lei. Não importa se o modo de relação com o objeto é contrário à lei social instituída (como a pedofilia ou o assassinato do parceiro sexual); se ele é indiferente a essa lei (como o sujeito que obrigatoriamente deve “tatuar” sua parceira com uma caneta Bic durante o intercurso sexual para encontrar orgasmo); ou se ele é parasitário da lei socialmente instituída (como no filme O Cheiro do Ralo, no qual o fetiche do cheiro se especifica como traço adicional nas relações de compra e venda de objetos). O importante é que, do ponto de vista do sujeito, afirma-se a lei para negá-la.
A
segunda forma de perversão da lei aparece quando o sujeito nega a lei para
afirmá-la em outro nível. A satisfação não decorre de uma “falsa submissão a
uma falsa lei”, mas da elevação do sujeito à condição de autor da lei.Esse é o
caso dos que se identificam com o objeto para causar angústia no outro, ou
seja, para dividir o outro e assim fugir à sua própria divisão. São as chamadas
personalidades psicopáticas, hoje personalidades antissociais, nas quais
predomina o sadismo: nego a lei socialmente compartilhada para afirmar uma lei
maior, cuja enunciação está em minhas mãos.
A
questão se complica se observamos que a lei considerada como fato positivo para
a definição de perversão não é apenas a lei como ordenamento jurídico, nem a
lei como conjunto de costumes, mas a lei que, a cada momento, é a pré-condição
que orienta nossa escolhas, juízos e desejos. Mesmo que ela não esteja escrita
nem encontre corpo em um código formal ou informal, essa lei está pressuposta a
cada vez que agimos. O problema da perversão torna-se mais interessante se
observarmos que a lei que orienta a vida desejante do sujeito, a partir de seu
inconsciente, não é outra que uma versão da lei social corrente, institutiva
das relações de autoridade e pertinência, de ordem e de poder, de família e de
Estado. Uma é versão da outra, uma père-version (versão do pai) como diria
Lacan (psicanalista francês, 1901-1981).
A matriz das perversões
A psicanálise chama de supereu essa lei interna ou essa voz que interdita certos tipos de satisfação, obrigando a outros. O supereu é a matriz ordinária de nossas perversões particulares e, ao mesmo tempo, a língua na qual expressamos e somos expressos pela lei social. Segundo essa tese, nossa consciência crítica, tida por muitos como a maior realização da razão humana, é ao mesmo tempo um olhar no qual nos aprisionamos, a voz do exagero e engrandecimento (das exigências, dos ideais e das expectativas normativas) e o núcleo de nossa satisfação e de nossa culpa em transgredir.
Por
exemplo, vibrar em êxtase vendo um formigueiro pegar fogo não é um ato ilegal,
mas sugere um tipo de gozo associado com a perversão. Qualquer criança explora
esse tipo de satisfação, até que seus pais a convidem à seguinte “inversão de
perspectiva”: “Imagine se você fosse uma formiga? Iria gostar de ver a casa
pegar fogo?”. Esse tipo de inversão faz com que abandonemos uma gramática da
satisfação – nesse caso o sadomasoquismo – em prol de outra. Cada um de nós
possui uma história composta de gramáticas como estas: exibicionismo e
voyeurismo, heterossexualidade e homossexualidade, feminilidade e
masculinidade. Há gramáticas pulsionais mais simples, tais como ingerir e
expelir, dar e receber, bater e apanhar, e há gramáticas mais complexas e mais
abrangentes tais como ser e ter ou aceitar ou recusar.
Contudo,
a tese psicanalítica é a de que a sexualidade infantil possui a característica
de ser perversa, por explorar, exagerar e transgredir os diferentes modos de
satisfação, e de ser polimorfa, por admitir muitas formas, plásticas e
mutáveis. A perversão no adulto diferencia-se disso por seu caráter de
fixidez (uniforme) e pela função subjetiva de desautorização da lei. Assim, a
perversão não é só uma questão de infração procedimental da lei, mas refere-se
ao tipo de intenção (ou de desejo), ao modo como nos colocamos, e situamos o
outro, diante do que fazemos.
É
nesse ponto que a definição popular de perversão argumentará que ela ocorre
justamente por falta de sentimentos morais como a culpa, a vergonha e o nojo.
Daí a ausência de arrependimento, de reparação e de consideração pelo outro que
historicamente fez dos perversos os ícones da maldade. Eles não apenas praticam
o mal, mas, principalmente, gostam de fazer mal aos outros, especialmente
quando se comprazem em causar angústia, terror e tortura. Ora, o que acontece
aqui não é a ausência de supereu, que poderia ser curada com a administração
massiva da lei, mas a construção de uma espécie de supereu ampliado, como
se algumas de suas funções fossem experienciadas, de modo deslocado, fora do
sujeito, ou seja, no seu infeliz e circunstancial parceiro.
Perversão e experiência comum
Os mais diferentes e insólitos tipos de satisfação estão presentes em todos nós, de forma atenuada, disfarçada ou restrita. Não é pela ausência ou presença dessas tendências que podemos definir a perversão. Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos. O problema para definir a perversão, nesse sentido, é que temos de resolver o chamado paradoxo ético do ato. Não basta saber se ele é conforme ou contrário à lei, mas saber qual tipo de experiência ele produz em quem o realiza e o tipo de posição que ele confere ao outro.
Há
vários exemplos de como o gozo, ou seja, o tipo de satisfação ordenado pelo
supereu constitui uma perversão particular e ao mesmo tempo um fator político
incontornável. Há, por exemplo, um fascínio espontâneo por aquele que se coloca
no lugar de supereu. A atração exercida por líderes e “celebridades”,
assim como pelos sistemas totalitários, sejam eles nações, instituições,
corporações ou mesmo empresas e grupos, baseia-se neste sentimento de que eles
expressam em exterioridade nossa própria relação perversa com a lei. Diante
disso, estaremos voluntariamente dispostos a servir como instrumento do gozo do
outro, posto que ele é o meio pelo qual posso ter acesso deslocado à minha
própria fantasia, exagerada pelo fato de ser vivida em massa. Isso tudo sem o
ônus da culpa e do risco que estariam em jogo se eu me dispusesse a realizá-la
por meios próprios.
A
chave para entender esse tipo de perversão ordinária está na dissociação e na
simplificação produzidas pela montagem da fantasia. Dissociação e simplificação
encontradas na principal expressão sintomática da perversão, a saber, o
fetiche, ou seja, esta propriedade ou esta função que permite transformar outro
em objeto inanimado (meio de gozo para meus fins) e reversamente o objeto em
outro animado (fim para o qual todos os meios se justificam). Em acordo com a
regra perversa da inversão, o fetiche é a condição básica a que todo objeto
deve atender para tonar-se viável no universo de consumo. Para funcionar como
tal, ele deve conseguir dissociar seu potencial de ilusão, por um lado, de seu
efeito de decepção, por outro. Não é um acaso que Karl Marx (1818-1883) tenha
descrito a economia capitalista baseando-se no fetiche da mercadoria.
Outro
exemplo de montagem perversa são os sistemas e dispositivos burocráticos
responsáveis pela judicialização da vida cotidiana. A burocracia é uma forma
regrada e metódica de produzir anonimato e álibi para nosso desejo e, portanto,
para confirmar a máxima perversa de que “o outro deseja, mas segundo a lei que
eu determino”. Nessa medida, há tanta perversão nos excessos alimentares – no
bulímico e no anoréxico – quanto no discurso de vigilância sanitária sobre
nossa alimentação, para não falar do exibicionismo de uma infância sexualizada
pela moda, o voyeurismo de nossos reality shows, a estética pornográfica de
nossas produções culturais, o sadismo de nossos programas de violência ao vivo,
o masoquismo do trabalho e da “vida corporativa”, o descompromisso “líquido” de
nossa vida amorosa, a cultura da drogadição (legal e ilegal), e tantos
fenômenos que costumam ser reunidos sob a hipótese da perversão generalizada.
Ao contrário da perversão clássica, a perversão ordinária de nossos tempos é
uma perversão flexível, silenciosa e pragmática. Ela não se mostra como experiência
“fora da lei”, que convidaria a ajustar as contas com os limites de nossa
própria liberdade, mas, ao contrário, é mais perniciosa, pois reafirma nossa
realidade assim como ela é.
As
articulações que constituem a perversão, tais como a transgressão, a exageração
e a dissociação, tornaram-se aspectos decisivos de nosso laço social
ordinário. Bem-vindos à perversão nossa de cada dia.