O
bisturi me descascou como uma cebola, desdobrou origamis das minhas vísceras,
foi deixando listras de fogo-napalm por onde passava, e enquanto isso as
algemas laceravam meus pulsos e eu cravava os dentes no trapo cheirando a
querosene que me mandaram morder num acesso de piedade. A dor quando surge
colapsa todo o resto do Real. Somente ela existe no Universo, somente os seus
dois polos: o corpo que a sente e ela que ferve nesse corpo, como o bilhão de
explosões nucleares que o Sol ruge por minuto. Resolvi gostar. Resolvi me
entregar por completo àquela dor. Desisti de lutar contra ela, de pedir que
parasse, resolvi aceitar que ela fazia parte de mim ou eu que fazia parte dela,
e assim deixar que a dor crescesse a ponto de dissolver o conflito.
Fui
manipulado como cabra-cega, seduzido por hipóteses e promessas, enleado por
sorrisos, tapinhas nas costas e adiantamentos bancários, e todo dia pisava numa
armadilha, caía numa arapuca, despencava num alçapão. Assinei folhas em branco
confiando na descrição do que em breve seria impresso ali. Aceitei sem checar.
Acreditei sem conferir. Fiz de conta que não vi o que se escancarou na minha
frente, fiz de conta que não entendi o fato consumado que rolava de boca em
boca. Fui bobo da corte, peão no roque alheio, inocente útil... Resolvi gostar.
Virou um teste de até-onde-isso-vai. Virou uma experiência de laboratório onde
o rato resolveu assumir o controle porque entendeu, enfim, que era uma
experiência. Resolvi entender. Me interessei por tudo, como quem pela primeira
vez entende um jogo de críquete, e transformei meu opróbrio em espetáculo.
Me
depuseram, me manietaram, me sacanearam, me expuseram ao ridículo, me traíram,
me bateram a carteira, me rasgaram os documentos, me enxovalharam a reputação
em todos os órgãos de imprensa em quarenta idiomas, arrastaram minha estátua
puxada por burros e alvejada por ovos podres. Meus partidários, meus cupinchas
e meus apaniguados foram os primeiros a esfregar a sola suja do pé na minha
cara. As mulheres me enxotaram rua afora com vassouras. As crianças surgiram
excitadas à janela e gritaram à minha passagem seu primeiro palavrão. Aguentei
as gargalhadas impiedosas dos bem-falantes, a mangação dos mendigos, a
maledicência dos despeitados, o chute-no-traseiro com o sapato feroz dos
ressentidos. Resolvi gostar. Resolvi permitir que aquele enxovalhamento fosse
uma lavagem, uma purgação, um massacre de mim mesmo, uma sessão de bate-tapete
que improvavelmente me restituísse a mim mais cru, mais mineral, mais resíduo de
essência indestrutível. Àquela altura valia tudo. E eu só gosto quando chega
nesse ponto.
*Braulio
Tavares in. Mundo Fantasmo