domingo, 19 de maio de 2013

A Papisa Joana*


Papesse Jeanne, c. 1695.


(...) uma personagem que nunca existiu, mas mesmo assim deixou traços na história. (...) [Papisa Joana], a mulher que teria ocupado o trono de são Pedro por volta de 855 e cuja existência é aventada por diversas hagiografias. Na realidade, ela só existiu num imaginário que tem inspirado os mais diferentes círculos até a época contemporânea. Sem existência concreta, essa papisa constitui porém um verdadeiro acontecimento, pois suscita uma convicção coletiva, fonte de comportamentos imitados. O relato conta o destino de uma mulher originaria da Inglaterra, mas nascida em Mogúncia, que se teria travestido para seguir o amante no mundo masculino dos estudos superiores. Ela obtém êxito no empreendimento e alcança em Roma um sucesso invejável, que lhe permite entrar para a hierarquia da Cúria e ser eleita papa. Seu suposto pontificado teria durado apenas dois anos, terminando por um escândalo, pois Joana não conseguia renunciar aos prazeres da carne. Para perplexidade de Roma, ei-la grávida. A moral da história triunfa quando Joana morre durante uma procissão, após ter dado à luz publicamente seu filho. Conta-se ainda que, depois desse episódio tenebroso, verifica-se sistematicamente o sexo dos papas a cada eleição. O fato serve, pois, para regulamentar o rito de entronização dos novos pontífices. Situada no século IX, essa história seria tida por verdade incontestável durante muito tempo, a partir do século XIII: “De 1250 a 1450 ou 1550, ao longo de dois ou três séculos, a Igreja crê e obriga a crer na existência de Joana, embora o episódio lhe seja um desdouro”.

(...) A Igreja Apostólica Romana é unânime em apresentar a história como autêntica, ainda que de algum modo ela comprometa a imagem de infalibilidade papal. Por volta de 1260, a narrativa das aventuras de Joana ganha amplitude com o “exemplum” do dominicano Estevão de Bourbon. No século XIII, isso tem muito que ver com a insistência na prédica, que exigia a multiplicação dos exemplos disponíveis. A história não aparece, nesse “exemplum”, como um assunto interno do pontificado, mas como “um delito cujo cacife aumenta-lhe a gravidade e estende-lhe o alcance”. (...) Nesse caso, a famosa ruptura entre verdade factual e lenda não parece tão simples de delimitar, pois a verdade de Joana é ao mesmo tempo aceita, estabelecida e posta fora de qualquer refutação. O paradoxo chega ao extremo quando o relato de Joana contribui para reforçar a noção de infalibilidade do pontífice. Todavia, no século XVI, os protestantes se apossam de Joana para lançar descrédito sobre Roma. Como o papa encarna o Anticristo, Joana se torna a prova viva da inversão satânica que reina na Cidade Eterna. Joana não se recuperará dessa guerra de religiões. Demonizada pelos luteranos, é abandonada pela Igreja oficial, que passa a ver nela pura lucubração. Contudo, se Joana deixa o palco da instituição religiosa, invade maciçamente o campo literário, onde faz uma segunda carreira, tornando-se fonte de inspiração até para os romancistas contemporâneos.

*François Dosse in. “O Desafio Biográfico: escrever uma vida”. Ed. Edusp, 2009, pp.146-147.

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