Papesse
Jeanne, c. 1695.
(...) uma personagem que nunca existiu, mas mesmo assim
deixou traços na história. (...) [Papisa Joana], a mulher que teria ocupado o
trono de são Pedro por volta de 855 e cuja existência é aventada por diversas
hagiografias. Na realidade, ela só existiu num imaginário que tem inspirado os
mais diferentes círculos até a época contemporânea. Sem existência concreta,
essa papisa constitui porém um verdadeiro acontecimento, pois suscita uma
convicção coletiva, fonte de comportamentos imitados. O relato conta o destino
de uma mulher originaria da Inglaterra, mas nascida em Mogúncia, que se teria
travestido para seguir o amante no mundo masculino dos estudos superiores. Ela
obtém êxito no empreendimento e alcança em Roma um sucesso invejável, que lhe
permite entrar para a hierarquia da Cúria e ser eleita papa. Seu suposto
pontificado teria durado apenas dois anos, terminando por um escândalo, pois
Joana não conseguia renunciar aos prazeres da carne. Para perplexidade de Roma,
ei-la grávida. A moral da história triunfa quando Joana morre durante uma
procissão, após ter dado à luz publicamente seu filho. Conta-se ainda que,
depois desse episódio tenebroso, verifica-se sistematicamente o sexo dos papas
a cada eleição. O fato serve, pois, para regulamentar o rito de entronização
dos novos pontífices. Situada no século IX, essa história seria tida por
verdade incontestável durante muito tempo, a partir do século XIII: “De 1250 a
1450 ou 1550, ao longo de dois ou três séculos, a Igreja crê e obriga a crer na
existência de Joana, embora o episódio lhe seja um desdouro”.
(...) A Igreja Apostólica Romana é unânime em apresentar a
história como autêntica, ainda que de algum modo ela comprometa a imagem de
infalibilidade papal. Por volta de 1260, a narrativa das aventuras de Joana
ganha amplitude com o “exemplum” do dominicano Estevão de Bourbon. No século
XIII, isso tem muito que ver com a insistência na prédica, que exigia a
multiplicação dos exemplos disponíveis. A história não aparece, nesse
“exemplum”, como um assunto interno do pontificado, mas como “um delito cujo
cacife aumenta-lhe a gravidade e estende-lhe o alcance”. (...) Nesse caso, a
famosa ruptura entre verdade factual e lenda não parece tão simples de
delimitar, pois a verdade de Joana é ao mesmo tempo aceita, estabelecida e
posta fora de qualquer refutação. O paradoxo chega ao extremo quando o relato
de Joana contribui para reforçar a noção de infalibilidade do pontífice.
Todavia, no século XVI, os protestantes se apossam de Joana para lançar descrédito
sobre Roma. Como o papa encarna o Anticristo, Joana se torna a prova viva da
inversão satânica que reina na Cidade Eterna. Joana não se recuperará dessa
guerra de religiões. Demonizada pelos luteranos, é abandonada pela Igreja
oficial, que passa a ver nela pura lucubração. Contudo, se Joana deixa o palco
da instituição religiosa, invade maciçamente o campo literário, onde faz uma
segunda carreira, tornando-se fonte de inspiração até para os romancistas
contemporâneos.
*François Dosse in. “O Desafio Biográfico: escrever uma
vida”. Ed. Edusp, 2009, pp.146-147.