O
“romance noir” norte-americano conta histórias angustiadas de crime, carregadas
de fatalidade, desesperança, e da sensação de quem está num mundo movido por
forças incompreensíveis e inconscientes de si mesmas. Nada nos impede de ver
dessa maneira “O Estrangeiro” de Albert Camus. Ele é um equivalente
filosoficamente mais denso das histórias policiais soturnas de James M. Cain,
David Goodis, Horace McCoy. Lançado em 1942, sua repercussão crítica ao longo
das décadas seguintes (aumentada com a concessão do Prêmio Nobel a Camus em
1957 e sua morte precoce, aos 46 anos, em 1960) foi associada à visão
existencialista do mundo e à visão do absurdo.
Seria
uma atividade tipo “o ovo ou a galinha” tentar descobrir se Camus lia romances
policiais norte-americanos na Argélia ou se via os “filmes noir” dos anos 1940.
Em muitos desses filmes encontramos perfeitos equivalentes do Meursault de seu
livro: indivíduos sem um projeto de vida, sem um propósito, vivendo para o
presente e aceitando, meio atordoados, o que o presente lhes impõe. Não têm
ambições nem fazem planos para o futuro; não são capazes de grandes afetos nem
de grandes ódios; avançam pela vida como que anestesiados, meio indiferentes,
cultivando pequenos objetivos – arranjar algum dinheiro, ter onde dormir, comer
sem fome, amar sem amor.
Meursault
é assim, e é até surpreendente que uma garota como Marie Cardona queira casar
com ele. A resposta dele é típica: concorda em casar com ela, “se isso a faz
feliz”, mas dá a entender que nunca tomaria a iniciativa de pedi-la, e que se
outra mulher lhe fizesse a proposta ele provavelmente aceitaria também. A
passividade de Meursault o conduz ao crime e à condenação, quando todas as
provas, em retrospecto, parecem defini-lo como um homem frio, insensível,
cruel. Ele é o indivíduo alienado, disponível, sem projeto, exposto ao vento
das vontades alheias, que podem levá-lo em qualquer direção. Atentados
políticos são muitas vezes praticados por gente assim, gente como Lee Oswald,
Sirhan Sirhan, Ali Agca. Foram soprados por uma doutrina assim como um barco é
soprado pelo vento, mas essa doutrina lhes é essencialmente estranha.
“O
Estrangeiro” é uma história de crime tipo “whydunit”, onde o que importa
não é “quem” cometeu o crime nem “como”, e sim “por quê”. “Por causa do calor”,
diz ele ao explicar ao tribunal por que abateu um árabe a tiros, na praia.
Meursault é o homem absurdo, num mundo em que não chorar no enterro da mãe é
tão crime quanto matar um homem. O livro se passa em Argel, mas não é difícil
imaginá-lo nos EUA, a história de um rapaz do Bronx que mata um negro a tiros
durante um passeio a Coney Island.
*Braulio
Tavares in. Mundo Fantasmo