sábado, 25 de fevereiro de 2012

A muralha e os livros*


Por Jorge Luis Borges

                                                                                                                               Shih Huang Ti

Li, há dias, que o homem que ordenou a edificação da quase infinita muralha chinesa foi aquele primeiro Imperador, Shih Huang Ti, que também ordenou que se queimassem todos os livros anteriores a ele. Que as duas vastas operações – quinhentas ou seiscentas léguas de pedras, opostas aos bárbaros, a rigorosa abolição da história, isto é, do passado – tenham procedido de uma só pessoa e tenham sido de certo modo seus atributos, inexplicavelmente me satisfez e, ao mesmo tempo, me inquietou. Indagar as razões dessa emoção é a finalidade desta nota.

Historicamente, não há mistério nas duas medidas. Contemporâneo das guerras de Aníbal, Shih Huang Ti, rei de Tsin, submeteu a seu poder os Seis Reinos e eliminou o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas serviam para defender; queimou os livros, porque a oposição os invoca para louvar os antigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum entre os príncipes; a única coisa singular em Shih Huang Ti foi a escala em que agiu. É o que deixam entrever alguns sinólogos, mas sinto que os fatos que narrei não são apenas um exagero ou hipérbole de disposições triviais. Cercar um horto ou jardim é uma coisa comum, mas não cercar um império. Também não vão pretender que a raça mais tradicional renuncie à memória do seu passado, mítico ou verdadeiro. Três mil anos de cronologia tinham os chineses (e nesses anos, o Imperador Amarelo e Chuang Tzu e Confúcio e Lao Tzu), quando Shih Huang Ti ordenou que a história começasse com ele.


[fragmento]


in. Nova antologia pessoal, 1969, pp. 202-203.


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...