sexta-feira, 20 de julho de 2012

Uma história do corpo feminino*

A medicina é uma disciplina dominante na percepção da carne e dos ossos humanos, e a medicina grega persistiu como modelo para a ciência ocidental por séculos. Galeno, o principal médico do século II d.C., foi o livro-texto em hospitais europeus mesmo após Willian Harvey descobrir a circulação do sangue 1.500 anos depois; a compreensão da histeria, por exemplo, a doença feminina par excellence, sempre dependeu de modelos da mente e do corpo feminino profundamente influenciados por essa longa tradição. A medicina formula nossa compreensão do corpo, e a medicina grega concebia o corpo feminino através de maneiras particularmente significativas.

Para a medicina clássica dos textos hipocráticos, o corpo de uma mulher é como um cântaro, com tubos interconectados para a circulação do sangue e dos fluidos - tubos que podem ser perigosamente obstruídos. Portanto, caso se queira verificar a fertilidade de uma menina, deve-se colocar um pedaço de alho em sua vagina à noite. Se de manhã ela tiver mau hálito, isso indica que, por sorte, seus tubos estão devidamente desobstruídos e que não há impedimento para a gravidez. O tubo que se estende das narinas até o útero deve estar desobstruído. Essa via de conexão explica por que os médicos gregos podiam pensar que a voz da mulher engrossava depois da primeira relação sexual: a desobstrução do orifício de baixo naturalmente afeta o orifício de cima. A conexão entre boca e vagina ainda vigora no vocabulário médico moderno: médicos se referem aos "lábios" vaginais e à "cérvice" (pescoço) do útero. A fisiologia feminina requer explicações científicas - e a ciência concebe ao leitor, e ao médico, poder sobre o mundo. A medicina é uma das maneiras como o lugar da mulher na sociedade é demarcado. A medicina modifica nossa visão sobre o corpo das mulheres.

[fragmento]

Simon Goldhill. in. "Amor, sexo & tragédia": como os gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Ed. Zahar, 2007. p. 44.

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