Na foto: Luiz Fernando Almeida
Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota - tá me entendendo, garotão?
Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota - tá me entendendo, garotão?
Nada, você não entende nada. Dama da noite. todos me chamam
e nem sabem que durmo o dia inteiro. Não suporto: luz, também nunca tenho nada
pra fazer - o quê? Umas rendas aí. É, macetes. Não dou detalhe, adianta
insistir. Mutreta, trambique, muamba. Já falei: não adianta insistir, boy .
Aprendi que, se eu der detalhe, você vai sacar que tenho grana e se eu tenho
grana você vai querer foder comigo só porque eu tenho grana. E acontece que eu
ainda sou babaca, pateta e ridícula o suficiente para estar procurando O
verdadeiro amor. Pára de rir, senão te jogo já este copo na cara. Pago o copo,
a bebida. Pago o estrago e até o bar, se ficar a fim de quebrar tudo. Se eu tô
tesuda e você anda duro e eu precisar de cacete, compro o teu, pago o teu.
Quanto custa? Me dil que eu pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago foda
também, se for preciso.
Pego, claro que eu pego. Pego sim, pego depois. É grande?
Gosto de grande, bem grosso. Agora não. Agora quercì falar na roda. Essa roda,
você não vê, garotão? Está por aí. rodando aqui mesmo. Olha em volta, cara. Bem
do teu lado. Naquela mina ali, de preto, a de cabelo arrepiadinho. Tá bom, eu sei:
pelo menos dois terços do bar veste preto e tem cabelo arrepiadinho, inclusive
nós. Sabe que, se há uns dei anos eu pensasse em mim agora aqui sentada com
você, eu não ia acreditar? Preto absorve vibração negativa, eu pensava. O
contrário de branco, branco reflete. Mas acho que essa moçada tá mais a fim
mesmo é de absorver, chupar até o fundo do mal - hein? Depois, até posso. Tem
problema, não. Mas não é disso que estou falando agora, meu bem.
Você não gosta? Ah, não me diga, garotinho. Mas se eu pago
a bebida, eu digo o que eu quiser, entendeu? Eu digo meu-bem assim desse jeito,
do jeito que eu bem entender. Digo e repito: meu-bem-meu-bem-meu-bem. Pego no
seu queixo a hora que eu quiser também, enquanto digo e repito e redigo
meu-bem-meu-bem. Queixo furadinho, hein? Já observei que homem de queixo
furadinho gosta mesmo é de dar o rabo. Você já deu o seu? Pelo amor de Deus,
não me venha com aquela história tipo sabe, uma noite, na casa de um pessoal em
Boiçucanga, tive que dormir na mesma cama com um carinha que. Todo machinho da
sua idade tem loucura por dar o rabo, meu bem. Ascendente Câncer, eu sei: cara
de lua, bunda gordinha e cu aceso. Não é vergonha nenhuma: tá nos astros, boy.
Ou então é veado mesmo, e tudo bem.
Levanta não, te pago outra vodca, quer? Só pra deixar eu
falar mais na roda. Você é muito garoto, não entende dessas coisas. Deixa a
vida te lavrar a cara, antes, então a gente. Bicho, esquisito: eu ia dizer
alma, sabia? Quer que eu diga? Tá bom, se você faz tanta questão, posso dizer.
Será que ainda consigo, como é que era mesmo? Assim: deixa a vida te lavrar a
alma, antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e
cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles
chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de
ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na
cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora
ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas
futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo
caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha.
A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra
mim - tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim,
todo mundo já tinha decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu
lugarzinho seguro, rodando na roda. Menos eu, menos eu. Quem roda na roda fica
contente. Quem não roda se fode. Que nem eu, você acha que eu pareço muito
fodida? Um pouco eu sei que sim, mas fala a verdade: muito? Falso, eu tenho uns
amigos, sim. Fodidos que nem eu. Prefiro não andar com eles, me fazem mal.
Gente da minha idade, mesmo tipo de. Ia dizer problema, puro hábito: não tem problema.
Você sabe, um saco. Que nem espelho: eu olho pra cara fodida deles e tá lá
escrita escarrada a minha própria cara fodida também, igualzinha à cara deles.
Alguns rodam na roda, mas rodam fodidamente. Não rodam que nem você. Você é tão
inocente, tão idiotinha com essa camisinha Mr. Wonderful. Inocente porque nem
sabe que é inocente. Nem eles, meus amigos fodidos, sabem que não são mais. Tem
umas coisas que a gente vai deixando, vai deixando, vai deixando de ser e nem
percebe. Quando viu, babau, já não é mais. Mocidade é isso aí, sabia? Sabe
nada: você roda na roda também, quer uma prova? Todo esse pessoal da preto e
cabelo arrepiadinho sorri pra você porque você é igual a eles. Se pintar uma
festa, te dão um toque, mesmo sem te conhecer. Isso é rodar na roda, meu bem.
Pra mim, não. Nenhum sorriso. Cumplicidade zero. Eu não sou
igual a eles, eles sabem disso. Dama da noite, eles falam, eu sei. Quando não
falam coisa mais escrota, porque dama da noite é até bonito, eu acho. Aquela
flor de cheiro enjoativo que só cheira de noite, sabe qual? Sabe porra: você
nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não sabe nada. fora essas coisas
de vídeo, performance, high-tech, punk, dark. computador, heavy-metal e o
caralho. Sabia que eu até vezenquando tenho mais pena de você e desses
arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles meus amigos fodidos? A gente
teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia dar, ia dar. sabe quando vai
dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão, mas vocês chegaram depois que
mataram a ilusão da gente. Tava tudo morto quando você nasceu, boy, e eu já era
puta velha. Então eu tenho pena. Acho que sou melhor, sei porque peguei a coisa
viva. Tá bom, desculpa, gatinho. Melhor, melhor não. Eu tive mais sorte, foi
isso? Eu cheguei antes. E até me pergunto se não é sorte também estar do lado
de fora dessa roda besta que roda sem fim, sem mim. No fundo, tenho nojo dela -
você?
Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem,
vinte? Tem cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de
pegar Aids. Vírus que mata. neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu
cuzinho. pronto: paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e
salve-se quem puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados.
Õ boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na
boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você
nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão. Transmite pelo suor,
você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia: você lê,
meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei. Mas na tevê também
dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata. Pega até de ficar do lado,
beber do mesmo copo. Já pensou se eu tivesse? Eu, que já dei pra meia cidade e
ainda por cima adoro veado.
Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu
perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te
entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama
maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos,
contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que
mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro que não, eu sei: pode matar. Nem
caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele cheiro molhado que as pessoas
têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está escrito na sua cara, tudo que você
não viu nem fez está escrito nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada.
Você já nasceu proibido de tocar no corpo do outro. Punheta pode, eu sei, mas
essa sede de outro corpo é que nos deixa loucos e vai matando a gente aos
pouquinhos. Você não conhece esse gosto que é o gosto que faz com que a gente
fique fora da roda que roda e roda e que se foda rodando sem parar, porque o
rodar dela é o rodar de quem consegue fingir que não viu o que viu. O boy, esse
mundo sujo todo pesando em cima de você, muito mais do que de mim e eu ainda
nem comecei a falar na morte...
Já viu gente morta, boy? É feio, boy. A morte é muito feia,
muito suja, muito triste. Queria eu tanto ser assim delicada e poderosa, para
te conceder a vida eterna. Queria ser uma dama nobre e rica para te encerrar na
torre do meu castelo e poupar você desse encontro inevitável com a morte. Cara
a cara com ela, você já esteve? Eu, sim, tantas vezes. Eu sou curtida, meu bem.
A gente lê na sua cara que nunca. Esse furinho de veado no queixo, esse olhinho
verde me olhando assim que nem eu fosse a Isabella Rossellini levando porrada e
gostando e pedindo eat me eat me, escrota e deslumbrante. Essa tontura que você
está sentindo não é porre, não. É vertigem do pecado, meu bem, tontura do
veneno. O que que você vai contar amanhã na escola, hein? Sim, porque vocé
ainda deve ir à escola, de lancheira e tudo. Já sei: conheci uma mina meio
coroa, porra-louca demais. Cretino, cretino, pobre anjo cretino do fim de todas
as coisas. Esse caralhinho gostoso aí, escondido no meio das asas, é só isso
que você tem por enquanto. Um caralhinho gostoso, sem marca nenhuma. Todo rosadinho.
E burro. Porque nem brochar você deve ter brochado ainda. Acorda de pau duro,
uma tábua, tem tesão por tudo, até por fechadura. Quantas por dia? Muito bem,
parabéns: você tá na idade. Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa
sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na
imaginação. Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma
pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com
quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy.
Eu, cansei. Já não estou mais na idade. Quantos? Ah, você
não vai acreditar, esquece. O que importa é que você entra por um ouvido meu e
sai pelo outro, sabia? Você não fica. você não marca. Eu sei que fico em você,
eu sei que marco você. Marco fundo. Eu sei que, daqui a um tempo, quando você
estiver rodando na roda, vai lembrar que, uma noite. sentou ao lado de uma mina
louca que te disse coisas, que te falou no sexo, na solidão, na morte. Feia,
tão feia a morte, boy. A pessoa fica meio verde, sabe? Da cor quase assim desse
molho de espinafre frio. Mais clarinho um pouco, mas isso nem é o pior. Tem uma
coisa que já não está mais ali, isso é o mais triste. Você olha, olha e olha e
o corpo fica assim que nem uma cadeira. Uma mesa, um cinzeiro, um prato vazio.
Uma coisa sem nada dentro. Que nem casca de amendoim jogada na areia, é assim
que a gente fica quando morre, viu, boy? E você, já descobriu que um dia também
vai morrer?
Dou, claro. Ficou nervosinho, quer cigarro? Mas nem fumar
você fuma, o quê? Compreendo, compreendo sim, eu compreendo sempre, sou uma
mulher muito compreensiva. Sou tão maravilhosamente compreensiva e tudo que, se
levar você pra minha cama agora e amanhã de manhã você tiver me roubado toda a
grana, não pense que vou achar você um filho da puta. Não é o máximo da
compreensão? Eu vou achar que você tá na sua, um garotinho roubando uma mulher
meio pirada, meio coroa, que mexeu com sua cabecinha de anjo cretino desse
nojento fim de todas as coisas. Tá tudo bem, é assim que as coisas são:
ca-pi-ta-lis-tas, em letras góticas de neon. Mulher pirada e meio coroa que nem
eu tem mais é que ser roubada por um garotinho ïmbecil e tesudinho como você.
Só pra deixar de ser burra caindo outra vez nessa armadilha de sexo.
Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando girando sem
parar. Olha bem: quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a
fim de grana pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares,
os casais de saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é
não segurar nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero
ninguém. Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se
apenas de um cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu
quero mais é aquilo que não posso comprar. Nem é você que eu espero, já te
falei. Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar.
Diferente dessa gente toda vestida de preto, com cabelo arrepiadinho. Se quiser
eu piro, e imagino ele de capa de gabardine, chapéu molhado, barba de dois
dias, cigarro no canto da boca, bem noir. Mas isso é filme, ele não. Ele é de
um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai
sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho
quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui,
boy, quase toda noite. Não por você, por outros como você. Pra ele, me guardo.
Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio
desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro.
Só por ele, por esse que ainda não veio, te deixo essa
grana agora, precisa troco não, pego a minha bolsa e dou a fora já. Está quase
amanhecendo, boy. As damas da noite recolhem seu perfume com a luz do dia. Na
sombra, sozinhas. envenenam a si próprias com loucas fantasias. Divida essa sua
juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora sozinha.
Eu tenho um sonho, eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara
toda saindo daqui. continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura.
Parada pateta ridícula porra-louca solitária venenosa. Pós-tudo, sabe como?
Darkérrima, modernésima, puro simulacro. Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta
frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez
aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e
de tudo: uma criança assustada.
Caio Fernando Abreu. "Os Dragões não conhecem o Paraíso." Ed. Cia. das Letras, 1988.