Este
ano se comemora o centenário de nascimento de dois ícones da cultura brasileira,
Luiz Gonzaga (1912 – 1989) e Jorge Amado (1912 – 2001), ambos representantes de
um discurso regionalista nordestino marcado pelo folclore e pela tradição. O
Nordeste, ao que parece, ganhou em virtude desse fato mais espaço na TV, são
novelas, musicais, entrevistas e programas especiais em torno da cultura, da
natureza e do povo nordestino.
Eis
que emerge dessa curiosidade “estrangeira” um Nordeste exótico recortado e
recontado através de regularidades imagético-discursivas que o dotam de certas
características invariáveis. A seca, a rusticidade do povo, o cangaço, o
retirante, a religiosidade e a dureza da caatinga foram (e ainda não deixaram
de ser) ao longo de décadas imagens utilizadas para ser referir ao Nordeste e
ao modo de ser nordestino. Segundo o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior:
“Antes
que a unidade significativa chamada Nordeste se constituísse perante nossos
olhos, foi necessário que inúmeras práticas e discursos ‘nordestinizadores’
aflorassem de forma dispersa e fossem agrupados posteriormente.” (in: A invenção do Nordeste e outras artes.
Ed. Cortez, 2009, p. 79).
Nessa
linha de pensamento, o Nordeste da Tv – naturalizado e folclorizado – tende a
encobrir as disputas políticas, econômicas e ideológicas por trás da produção
desse espaço no imaginário coletivo do país. Esse Nordeste, a-histórico,
tradicional e mitificado, se apropria da literatura acadêmica (especialmente do
romance de 30), do cordel, da música popular (especialmente de Luiz Gonzaga),
da iconografia, etc. E se une a estes “discursos nordestinizadores” apagando as
múltiplas possibilidades de práticas, costumes, modos de ser e de fazer de um Nordeste
atual em nome de um Nordeste inventado, gestado a partir de estratégias midiáticas
e de interesses escusos.
A
força desse discurso gera, dentro e fora deste recorte geográfico (Nordeste),
uma busca pelas raízes mais profundas e originais de uma nordestinidade. Inventa-se dessa forma um Nordeste da tradição, da
festa junina, da comida típica, do cabra da peste, das Vidas Secas e dos Sertões,
onde o sertanejo é antes de tudo um forte, um sujeito resignado na vida e
fervoroso na fé. Neste percurso esquece-se, por exemplo, no Nordeste a
prevalência do urbano (73,2%) sobre o rural (26, 8%); o aumento da
escolarização; a melhoria na qualidade e expectativa de vida; o crescimento da
geração de emprego e renda; a modernização de certos setores da economia; o
movimento de retorno daqueles que se alocaram por anos a fio em
subempregos e submoradias no Sul e Sudeste do país, etc. Enfim, nega-se o
estágio atual de desenvolvimento do Nordeste, que obviamente ainda apresenta
indicadores sociais bastante negativos, e procura-se reforçar uma imagem secular
de atraso e subdesenvolvimento. Dessa forma, não é de se espantar as manifestações
de preconceito contra nordestinos, amplamente divulgadas em redes sociais, e, o
que é mais grave, essa estereotipizacão tem levado também a baixa auto-estima
do próprio nordestino em relação à sua condição.
O
Nordeste da Tv, em grande medida, é uma caricatura do Nordeste de fato e não
serve à informação do grande público. Assim como sabemos que o Rio de Janeiro
não se resume à violência, São Paulo aos congestionamentos e Brasília à
corrupção, o Nordeste também não se resume à seca e à pobreza congênita. Todos
estes espaços são produtos de embates históricos e processos políticos, não
foram dados ao natural, portanto, reduzi-los a meros estereótipos é um risco
que se corre em um país que ainda está em processo de auto-reconhecimento como
o Brasil.
[Josenias
Silva é Professor, Mestre em História do Brasil]
Ps.: O autor do texto, que é nordestino, reconhece o problema gravíssimo enfrentado por milhares de famílias vitimas da estiagem e lamenta o fato de o mesmo ser agravado por questões meramente "politiqueiras", quando não por desvio de verbas e sucateamento dos órgãos responsáveis para o combate à estiagem.
Ps.: O autor do texto, que é nordestino, reconhece o problema gravíssimo enfrentado por milhares de famílias vitimas da estiagem e lamenta o fato de o mesmo ser agravado por questões meramente "politiqueiras", quando não por desvio de verbas e sucateamento dos órgãos responsáveis para o combate à estiagem.