Pra que serve o índio? Índio não colabora com o PIB, não
contribui com a ciência, não dourará nosso quadro de medalhas nas Olimpíadas e
ainda é dono de Bélgicas e Bélgicas de terra improdutiva! Esses folgados deviam
era tomar vergonha na cara, botar uma roupa, arrumar um emprego, mudar pra um
apartamento de 25 metros quadrados e passar duas horas no trânsito, todo dia,
como qualquer ser humano normal, é ou não é?!
Tirando a ironia do apartamento e do trânsito, o discurso
acima não é muito diferente do que eu ouvi tantas vezes, na época em que
cursava ciências sociais e explicava a algum curioso do que tratava a
antropologia.
Lembrei-me dessas pérolas na semana passada, ao ler aqui na
Folha a notícia de que uma portaria da Advocacia-Geral da União prevê a
possibilidade de o setor público construir em áreas indígenas sem consultar
seus habitantes. A ideia, pelo que eu entendi, é que as reservas não sejam
reservadas. Genial.
Uma vez perguntaram a um antropólogo "por que os
índios precisam de reserva?". Resposta: "porque eles existem".
Simples assim. Por existirem, viverem da caça, da pesca, da colheita, de
pequenas produções de subsistência -e, diga-se de passagem, por estarem aqui há
pelo menos 5.000 anos-, devem ter as partes que lhes cabem entre nossos
latifúndios.
Que baita desperdício! -dirá a turma do primeiro parágrafo.
Debaixo das terras onde esses pelados estão a comer pitangas há minérios
valiosíssimos! Minérios essenciais para a fabricação de celulares, por exemplo.
Enquanto eles estão lá, rezando pro grande Deus da mandioca, poderíamos estar
diminuindo em 0,001 centavo o preço dos smartphones, permitindo a mais gente
tirar fotos de seus cachorros para pôr no Facebook, possibilitando que mais
gente desse "like" nas fotos dos cachorros de mais gente,
contribuindo, assim, para a grande marcha da civilização -mas esses índios...
Não, não direi que o índio é bom e a gente é ruim, caro
leitor, nem acho que um caiapó viva necessariamente melhor do que o morador da
Caiowá. Sou feliz com os antibióticos, as séries da HBO, as cervejas artesanais
e outras conquistas da civilização. E é justamente a herança iluminista desta
civilização à qual pertenço que me obriga a concordar que, se não há uma
finalidade última para a existência, tanto faz gastarmos o tempo que nos foi
dado vestidos e postando fotos de cachorros no FB ou pelados e cantando para a
mandioca. Mais ainda: é essa mesma tradição, cujas grandes criações tanto
admiro -de Hamlet ao microchip-, que me faz lamentar o tesouro que desperdiçamos
ao menosprezar os quase 240 povos indígenas brasileiros, com suas mais de 800
mil pessoas falando cerca de 180 línguas. Quantas Ilíadas e Gênesis, Medeias e
Gilgameshs, quantos belos poemas, cosmogonias e epopeias deixam de fazer parte
do rio de nossa cultura por preconceito e ignorância?
Garantir a terra e a sobrevivência desses índios é aumentar
a riqueza da experiência humana. A deles e a nossa. E, mesmo que não fosse,
mesmo que "esses índios aí" não pudessem trazer nada de bom para nós,
ainda mereceriam as reservas. Porque eles existem. Simples assim.
Antonio
Prata in. Folha de São Paulo