domingo, 16 de junho de 2013

A impunidade do sagrado motor*


Os direitos humanos se humilham aos pés dos direitos das máquinas. São cada vez mais numerosas as cidades, sobretudo cidades do sul, onde as pessoas são proibidas. Impunemente, os automóveis usurpam o espaço humano, envenenam o ar e, frequentemente, assassinam os intrusos que invadem seu território conquistado. Qual a diferença entre a violência que mata com motor e a violência que mata com faca ou bala? (...) A caçada aos que caminham integra as rotinas da vida cotidiana nas grandes cidades latino-americanas, onde a armadura de quatro rodas estimula a tradicional prepotência dos que mandam e dos que agem como se mandassem. A carteira de motorista equivale ao porte de arma e dá permissão para matar. Há cada vez mais energúmenos dispostos a esmagar quem lhes atravesse o caminho. Nestes últimos tempos, tempos de histeria da insegurança, à impune truculência sobre rodas soma-se o pânico dos assaltos e dos seqüestros. Torna-se cada vez mais perigoso, e cada vez menos freqüente, parar o carro diante da luz vermelha da sinaleira: em algumas cidades, a luz vermelha é como uma ordem de aceleração. As minorias privilegiadas, condenadas ao medo perpétuo, pisam no acelerador para fugir da realidade, e a realidade é essa coisa muito perigosa que espreita do outro lado dos vidros fechados do automóvel.


*Eduardo Galeano in. “De Pernas pro Ar: a escola do mundo ao avesso”. Ed. l&pm, 2011, pp. 237-250.
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