quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A doçura de um poeta triste*

Por AUGUSTO DOS ANJOS


A um carneiro morto

Misericordiosíssímo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia do juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!

Augusto dos Anjos, Toda a Poesia, 1976.

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*Como quase todo mundo, a primeira poesia que conheci de Augusto dos Anjos (1884-1914) foi Versos Íntimos (aquela que diz: ‘o beijo, amigo, é a véspera do escarro/ a mão que afaga é a mesma que apedreja... ’). Na época minha professora de literatura fez questão de declamá-la para a turma e foi aquele reboliço. Enfim, muito tempo depois, não sem algum sacrifício, tive a oportunidade de comprar um livro com toda a poesia de Augusto dos Anjos. Após sua leitura integral vi o quanto o poeta havia sido mutilado. Ora, Augusto dos Anjos é maior que Versos Íntimos. Aprendi, por exemplo, que dos poemas e sonetos de sua obra (completa) pode-se extrair, além do cuspo e do escarro, certa doçura incrustada em versos como este dedicado a um carneiro morto. Um tema insólito, eu sei. Mas de uma sensibilidade poética tal que só quem já olhou fundo no olho de um carneiro prestes a ser abatido reconhece.

Por Josenias Silva
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