quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Os ninguéns*



As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte , por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, e sim folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

Eduardo Galeano, O livro dos abraços, 2010.

_________
*Poucos escritores chegaram ao nível de Eduardo Galeano, dizer muito em poucas linhas. Gosto sempre de citá-lo, Eduardo Galeano ainda representa aquela nesga de sinceridade e de utopia há muito perdida. Ele ainda é um dos poucos a ensinar com palavras. Suas micro-histórias são poesia e arte em favor de uma causa, a humana.

Por Josenias Silva
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...