Ray Bradbury (1920-2012)
Ray
Bradbury, mestre da ficção científica cujas evocações líricas do futuro
refletiam ao mesmo tempo o otimismo e as ansiedades dos seus Estados Unidos do
pós-guerra, morreu na terça feira (5/6). Tinha 91 anos.
Bradbury
foi o principal autor responsável por trazer a ficção científica moderna para o
gosto literário popular. Seu nome aparecia perto do topo de qualquer lista de
importantes autores de ficção científica do século 20, ao lado de Isaac Asimov,
Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein e o polonês Stanislaw Lem. Seus livros
venderam mais de oito milhões de exemplares em 36 idiomas.
Bradbury vendeu sua primeira história a uma revista
antes de completar 21 anos e, quando chegou aos 30, ele já tinha criado para si
uma reputação com As Crônicas Marcianas (The Martian Chronicles), coleção de
histórias publicada em 1950.
O livro celebrava o lado romântico da viagem
espacial, ao mesmo tempo condenando os abusos sociais que a tecnologia moderna
tornava possíveis, e seu impacto foi imediato e duradouro. Os críticos que
desmereciam a ficção científica como coisa de adolescente elogiaram as Crônicas como um conjunto de fábulas morais
situadas num futuro que parecia estar ao alcance.
Bradbury
não foi o primeiro autor a representar a ciência e a tecnologia como um misto
de bênção e abominação. O advento da bomba atômica em 1945 fez com que muitos
americanos adotassem uma posição ambivalente em relação à ciência. A mesma
“super ciência” que pôs fim à Segunda Guerra parecia ameaçar a própria
civilização. Os autores de ficção científica, acostumados a pensar no papel da
ciência na sociedade, tinham comentários ácidos a fazer a respeito da ameaça
nuclear.
Mas o público da ficção científica, publicada
principalmente em revistas pulp, era minúsculo. Bradbury buscava um público
maior: os leitores de revistas de tiragem maciça como Mademoiselle e The Saturday Evening Post. Estes
leitores não tinham paciência para o jargão técnico dos contos de ficção
científica. Assim, ele eliminou o jargão; embalou suas especulações a respeito
do futuro numa mistura sedutora de coloquialismos simpáticos e metáforas
poéticas.
As Crônicas Marcianas provavelmente ainda é a obra mais
conhecida de Bradbury. Tornou-se uma leitura comum nos cursos do ensino médio e
superior. O próprio Bradbury fazia pouco do ensino formal. Ele chegou a ponto
de atribuir seu sucesso como autor ao fato de nunca ter frequentado a
faculdade.
Poe e Verne
Em vez disso, Ray Bradbury lia tudo aquilo que lhe
chegava às mãos, autores como Edgar Allan Poe, Júlio Verne, H. G. Wells, Edgar
Rice Burroughs e Ernest Hemingway. Ele os homenageou em 1971 no ensaio
autobiográficoHow Instead of Being
Educated in College, I Was Graduated From Libraries (Como em vez de me formar na
universidade, me graduei em bibliotecas).
Ele
se referia a si mesmo como “autor de ideias”, expressão à qual atribuía um
significado diferente da erudição e do estudo aprofundado. “Eu me divirto com
as ideias; brinco com elas”, disse ele. “Não sou uma pessoa séria, e não gosto
de pessoas sérias. Não me vejo como um filósofo. Trata-se de algo
insuportavelmente monótono.” E acrescentava: “Meu objetivo é entreter a mim e
aos demais”.
Ele
descreveu seu método criativo como uma “associação de palavras”, com frequência
iniciada por um de seus versos favoritos de alguma poesia.
A paixão de Bradbury pelos livros encontrou
expressão no seu romance distópico Fahrenheit 451, publicado em 1953. Mas
sua principal inspiração foi a infância passada em Illinois. Ele se gabava de
recordar completamente seus primeiros anos, incluindo o momento do próprio
nascimento.
Os leitores não tinham motivos para duvidar. Nas
suas melhores histórias e no romance autobiográfico A
Cidade Fantástica (Dandelion
Wine, 1957), ele deu voz às alegrias e aos medos da infância. Quanto aos
protagonistas de suas histórias, por mais que se afastassem de casa, aprendiam
que nunca poderiam escapar ao passado.
Raymond
Douglas Bradbury nasceu no dia 22 de agosto de 1920 na pequena cidade de
Waukegan, Illinois. Criança pouco atlética que sofria de pesadelos, ele se
deleitava com as fábulas dos Irmãos Grimm e das histórias de L. Frank Baum a
respeito de Oz. Ele descobriu as revistas de ficção científica e começou a
colecionar as tiras de quadrinhos de Buck Rogers e Flash Gordon. Uma conversa
com um mágico de parque de diversões chamado Mr. Eletrico que abordou a questão
da imortalidade deu a Bradbury, então com 12 anos, o ímpeto de se tornar
escritor.
Em
1934, a família se mudou para Los Angeles, onde Bradbury se tornou um fã dos
filmes, frequentando o cinema até nove vezes por semana. Estimulado por um
professor e pelos autores profissionais que conheceu na Liga da Ficção
Científica, ele deu início à rotina de produzir pelo menos mil palavras por dia
em sua máquina de escrever, prática que manteria por toda a vida.
Capote e Huxley
Seu primeiro grande sucesso veio em 1947 com o conto Festa
de Família (Homecoming),
narrada por um menino que se sente como um forasteiro numa reunião de família
cheia de bruxas, vampiros e lobisomens, justamente por não ter poderes
sobrenaturais. A história, escolhida por um jovem editor da Mademoisellechamado
Truman Capote, valeu a Bradbury, então com 27 anos, o Prêmio O. Henry como um
dos melhores contos americanos daquele ano.
Por
mais que os puristas da ficção científica se queixassem da atitude
despreocupada de Bradbury diante dos fatos científicos – ele deu à sua versão
fictícia de Marte uma atmosfera respirável –, o establishment literário
demonstrou imenso entusiasmo. Um dos heróis pessoais de Bradbury, Aldous Huxley,
o considerou um poeta.
As Crônicas Marcianas foi criado a partir de 26 contos. A
narrativa engloba um período que vai de 1999 a 2026, relatando uma série de
expedições a Marte e suas consequências. Os marcianos nativos, capazes de ler
pensamentos, resistem aos primeiros enviados da Terra, mas acabam fracassando
diante de sua tecnologia avançada conforme os humanos passam a destruir os
vestígios de uma civilização antiga.
O
paralelismo com o destino das culturas indígenas americanas é levado aos limites
da paródia; os marcianos são finalmente extintos por uma epidemia de catapora.
Quando a guerra nuclear destrói a Terra, os descendentes dos colonizadores
humanos percebem que se tornaram marcianos, tendo uma segunda chance de criar
uma sociedade justa.
Truffaut e Orwell
Fahrenheit 451, a denúncia de Bradbury da queima de livros numa versão futura dos EUA
(o título se refere à temperatura na qual o papel pega fogo), é talvez sua
narrativa de maior sucesso nos moldes de um livro. Foi adaptado para o cinema
por François Truffaut em 1966. Fábula exemplar de um dito incendiário, Fahrenheit
451foi comparado a 1984, de George Orwell.
Conforme a reputação de Bradbury cresceu, ele
escreveu o roteiro para a versão de Moby Dick filmada por John Huston em 1956,
alguns scripts para a série Alfred Hitchcock Presents (no Brasil, Suspense), poesias e peças
de teatro.
Embora
Bradbury defendesse o programa espacial como uma aventura que a humanidade não
ousaria deixar de lado, ele se contentou em restringir as próprias aventuras ao
domínio da imaginação. Viveu na mesma casa por mais de 50 anos, criando quatro
filhas ao lado da mulher, Marguerite, que morreu em 2003. Recusou-se durante
muitos anos a viajar de avião, preferindo os trens, e nunca aprendeu a dirigir.
Por
mais que a vida sedentária de autor lhe parecesse agradável, ele não era um
recluso. Desenvolveu certo talento para falar em público, algo que fez dele uma
personalidade muito procurada para palestras. Ele falava de sua luta para
reconciliar seus sentimentos ambíguos em relação à vida moderna, tema que
inspirou boa parte da ficção que conquistou um público tão amplo e simpático.
E
falava do futuro, descrevendo como este o atraía ao mesmo tempo que o afastava,
deixando-o apreensivo e esperançoso.
Gerald
Jonas, do New York Times. Reproduzido do suplemento “Link” do Estado
de S.Paulo, 11/6/2012; tradução de Augusto Calil.