segunda-feira, 25 de junho de 2012

Snuff Movie na TV*




“A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar. A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Por que a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona”. (GALEANO, Eduardo. "O livro dos abraços". 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 2010, p.149).

Confortavelmente sentados em nossas poltronas somos “atacados” pela realidade, claro, uma realidade editada e ordinária. O espetáculo televisivo nos convida a participar, embora passivamente, do grande Show da vida. As telas cada vez maiores parecem colocar diante de nossos olhos enfeitiçados um mundo real. Somos aprisionados pela “grade” de programação. Somos atraídos por bundas, requebros, lágrimas, risos, tragédias, banalidades culinárias, falas discordantes e concordantes, produtos e Sangue.

Gostaria de me ater a esta última oferta, o Sangue. Não sei se vocês já repararam, mas nós temos uma atraçãozinha sádica pelo sangue. (O dos outros, óbvio!). Acidentes, desastres, morticínios, homicídios, suicídios, crimes de toda e qualquer monta nos prendem a atenção, mesmo que nos neguemos a olhá-los. As imagens de corpos dilacerados, carbonizados, fraturados, desmembrados, deformados etc., acabam alimentando o nosso pervertido e muitas vezes “inocente” desejo de sangue.

Incrível, mas não demorou muito a tornamos este fetiche algo comercial. A literatura, os jornais, o cinema, o rádio, a TV, e hoje a internet, são canais que nos alimentam, nos vendem e nos ligam a esta obscura faceta humana. O sangue corre solto por todos os lados, geralmente é o sangue alheio, e quanto mais distante, mais regozijo.

O cinema “clandestino” chegou mesmo a vender cenas de mortes REAIS de pessoas, não como estas que nos acostumamos a ver no noticiário jornalístico, mas cenas reais gravadas com o único fito de retratar alguém sendo assassinado. Estes filmes, conhecidos como Snuff Movie, atendem ao prazer perverso de determinados sujeitos. Os Snuff Movies representam o ápice do estado catártico de um indivíduo que se identifica com a violência potencializada na morte, no sofrimento, na dor e no sangue alheio.

O espetáculo em si tem o poder de extravasamento e purgação dos sentimentos reprimidos. Assim, por exemplo, o fazemos diante da tela mágica da TV quando nos mobilizamos para assistir um crime, uma violência qualquer, uma pornografia, uma traição, um ato incontido, uma revolta da carne ou do instinto, enfim, coisas que jamais teríamos a coragem de fazer, que teríamos medo, mas que naquele instante nós realizamos potencialmente, liberados que fomos dos demônios particulares, do sofrimento próprio e da morte própria.

Hoje, as câmeras espalhadas em cada fresta, em cada canto por nós frequentado alimentam nosso voyeurismo, nossa vontade de ver. Elas potencializaram nossa catarse porque tornaram pública a morte e a dor alheia, que já não pertencem mais ao foro íntimo, porque se transformaram em pauta jornalística. A dor e a morte reais estão na TV por vários ângulos, com nitidez de som e imagem em alta definição.

Quem não parou para assistir ao vivo, por exemplo, o ataque ao World Trade Center? Quem ainda não viu um crime registrado por “um circuito interno” de câmeras? Quem não acompanhou o passo a passo da morte da Juíza Patrícia Acioli, dado com “exclusividade” pelo Fantástico? Ou assistiu a morte, também ao vivo, da Professora Geísa no ônibus 174? A chacina na escola de Realengo no Rio? Ou coberturas feitas por programas "policiais" especializados no sensacionalismo? Sem falar de novelas, filmes, desenhos animados etc. Enfim, ossos, vísceras, tiros, facadas, membros contorcidos, cadáveres, gemidos, gritos, sangue... Tudo isso nos induz ao gozo coletivo, paramos para ver, ficamos chocados, comentamos, mas no intimo saímos com uma satisfaçãozinha perversa, parece até ficção, embora as mortes e os crimes sejam reais.

Os Snuff Movies estão na nossa programação diária, como um cardápio eles compõem nossa dieta visual. Eles tranqüilizam “quem se comporta bem”. Desligada a TV, levantamos ensanguentados e felizes da poltrona. Podemos até dizer que após esta pausa digestiva estamos prontos para encarar a vida lá fora.



Josenias Silva. in. Publicado no jornal O Dia, de Teresina – PI, em 01/10/2011. Caderno Em Dia, Coluna Fórum, pág. 4.


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