[...] tanto
os homens como as sociedades se definem por seus estilos, seus modos de fazer
as coisas. Se a condição humana determina que todos os homens devem comer,
dormir, trabalhar, reproduzir-se e rezar, essa determinação não chega ao ponto
de especificar também que comida ingerir, de que modo produzir, com que mulher
(ou homem) acasalar-se e para quantos deuses ou espíritos rezar. É precisamente
aqui, nessa espécie de zona indeterminada, mas necessária, que nascem as diferenças
e, nelas, os estilos, os modos de ser e estar, os “jeitos” de cada qual. Porque
cada grupo humano, cada coletividade concreta, só pode pôr em prática algumas dessas
possibilidades de atualizar o que a condição humana apresenta como universal.
As restantes ficam como uma espécie de fantasma a nos recriminar pelo fato de
as termos deixado nos bastidores, como figuras banidas de nosso palco, embora
estejam de algum modo presentes na peça e no teatro.
No
fundo, essa questão do relacionamento dos universais de qualquer sistema com um
sistema específico é das mais apaixonantes de quantas existem no panorama das
Ciências Humanas. Trata-se, sempre, da questão da identidade. De saber quem
somos e como somos, de saber por que somos. Sobretudo quando nos damos conta de
que o homem se distingue dos animais por ter a capacidade de se identificar,
justificar e singularizar: de saber quem ele é. De fato, a identidade social é
algo tão importante que o conhecer-se a si mesmo através
dos outros deixou os livros de filosofia para se constituir numa busca antropologicamente
orientada. Mas o mistério, como se pode adivinhar, não fica na questão do saber
quem somos. Pois será necessário descobrir como construímos nossas identidades.
Sei que sou José da Silva, brasileiro, casado, funcionário público, torcedor do
Flamengo, carnavalesco da Mangueira, apreciador incondicional das mulatas,
católico e umbandista; jogador esperançoso e inveterado da loto, porque
acredito em destino – e não outra pessoa qualquer. Em sendo José, não sou
Napoleão ou William Smith, cidadão americano de Nova York; ou Ivan Ivanovich,
patriota soviético. Posso distinguir-me assim porque me associo intensamente a
uma série de atributos especiais e porque com eles e através deles formo uma
história: a minha história. Mas como é que sei o que sou? Como posso discutir a
passagem do ser humano que nasci para o brasileiro que sou?
Como se
constrói uma identidade social? Como um povo se transforma em Brasil? A
pergunta, na sua discreta singeleza, permite descobrir algo muito importante. É
que no meio de uma multidão de experiências dadas a todos os homens e
sociedades, algumas necessárias à própria sobrevivência, como comer, dormir,
morrer, reproduzir-se etc., outras acidentais ou superficiais: históricas, para
ser mais preciso – o Brasil foi descoberto por portugueses e não por chineses,
a geografia do Brasil tem certas características como as montanhas na costa do
Centro-Sul, sofremos pressão de certas potências européias e não de outras,
falamos português e não francês, a família real transferiu-se para o Brasil no
início do século XIX etc. Cada sociedade (e cada ser humano) apenas se utiliza
de um número limitado de “coisas” (e de experiências) para construir-se como
algo único, maravilhoso, divino e “legal”...
Sei,
então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque gosto de comer feijoada
e não hambúrguer; porque sou menos receptivo a coisas de outros países,
sobretudo costumes e idéias; porque tenho um agudo sentido de ridículo para
roupas, gestos e relações sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova
York; porque falo português e não inglês; porque, ouvindo música popular, sei
distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque futebol para mim é um
jogo que se pratica com os pés e não com as mãos; porque vou à praia para ver e
conversar com os amigos, ver as mulheres e tomar sol, jamais para praticar um
esporte; porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e
sexuais; porque sei que não existe jamais um “não” diante de situações formais
e que todas admitem um “jeitinho” pela relação pessoal e pela amizade; porque
entendo que ficar malandramente “em cima do muro” é algo honesto, necessário e
prático no caso do meu sistema; porque acredito em santos católicos e também
nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no estudo,
na instrução e no futuro do Brasil, porque sou leal a meus amigos e nada posso
negar a minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações pessoais que
não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como fazem os meus
amigos americanos, que sempre se vêem e existem como indivíduos!
Pois
bem: somando esses traços, forma-se uma seqüência que permite dizer quem sou,
em contraste com o que seria um americano, aqui definido pelas ausências ou
negativas que a mesma lista efetivamente comporta. A construção de uma
identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de
afirmativas e de negativas diante de certas questões. Tome uma lista de tudo o
que você considera importante – leis, idéias relativas a família, casamento e
sexualidade; dinheiro; poder político; religião e moralidade; artes; comida e
prazer em geral – e com ela você poderá saber quem é quem. Não é de outro modo
que se realizam as pesquisas antropológicas e sociológicas. Descobrindo como as
pessoas se posicionam e atualizam as “coisas” desta lista, você fará um
“inventário” de identidades sociais e de sociedades. Isso lhe permitirá
descobrir o estilo e o “jeito” de cada sistema. Ou, como se diz em linguagem
antropológica, a cultura ou ideologia de cada sociedade. Porque, para mim, a
palavra cultura exprime precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de
fazer coisas.
Mas é
preciso não esquecer que essas escolhas seguem uma ordem. É certo que eu inventei
um “brasileiro” e um “americano” que o acompanhava por contraste linhas atrás,
mas quem me garante que aquilo que disse é convincente para definir um
brasileiro foi a própria sociedade brasileira. Ou seja: quando eu defini o
“brasileiro” como sendo amante do futebol, da música popular, do carnaval, da
comida misturada, dos amigos e parentes, dos santos e orixás etc., usei uma
fórmula que me foi fornecida pelo Brasil. O que faz um ser humano realizar-se
concretamente como brasileiro é a sua disponibilidade de ser assim. Caso eu
falasse em elegância no vestir e no falar, no gosto pelas artes plásticas, na
visita sistemática a museus, no amor pela música clássica, na falta de riso nas
anedotas, no horror ao carnaval e ao futebol etc., certamente estaria definindo
outro povo e outro homem. Isso indica claramente que é a sociedade que nos dá a
fórmula pela qual traçamos esses perfis e com ela fazemos desenhos mais ou
menos exatos.
Roberto
DaMatta. in. “O que faz o brasil, Brasil?”. Ed. Rocco, 1986. p.15-18.